Gilbert Garcin (1929-2020) sempre foi companheiro das luzes.
Desde cedo mergulhou nos filmes de Buster Keaton (1895-1966) e Carlitos (Charlie Chaplin, 1889-1977) frequentando o pequeno cinema dirigido por seu avô Auguste, “O Éden”, que já exibia filmes dos Irmãos Lumière — Auguste Marie Louis Nicholas (1862-1954) e Louis Jean (1864-1948) — desde o século XIX.
Em sua vida adulta trabalhou literalmente com o comércio de luz, em uma loja de lâmpadas em Marselha, até se aposentar.
Mas foi depois de se aposentar, com sessenta e cinco anos, que, tendo ganhado uma máquina de fotografia, participou de um Workshop na feira “Rencontres Internationales” em Arles, sob a direção de Pascal Dolemieux (1953) e tornou-se um dos mais importantes e originais fotógrafos da contemporaneidade.
Garcin desenvolveu uma técnica peculiar: fotografava pequenos mundos construídos artesanal e meticulosamente em maquetes, compondo cenários onde, com a ajuda de sua experiência em iluminação, conseguia imprimir textura, profundidade e consistência surpreendentes. Nesse mundo, deu vida ao Senhor G, uma persona feita com recortes de autorretratos dele mesmo transformados em pequenas estatuetas que passam a habitar esse universo simultaneamente próximo e familiar, mas estranhamente insólito e paradoxal: paisagens áridas compostas com a justaposição de objetos que, triviais, tornam-se surpreendentes pela desproporção que adquirem e pela disposição desequilibrada, mas que parece ser suficientemente consistente para sustentar toda a composição.
Sobre a mesa da sua oficina em La Ciotat, comuna da França, montava os diferentes cenários, às vezes utilizando céus ou texturas tirados de pintores do século XIX, outras pequenas superfícies de areia ou composições inspiradas em desenhos de Paul Klee (1879-1940), que homenageia em uma de suas fotos (figura 4). Utiliza objetos e utensílios cotidianos ou filmes antigos, em um jogo de escalas e sustentações insólitas, permitido pela modelagem das maquetes-cenários e que surpreendem quando colocados em proporção com as medidas humanas dos personagens-personas.
Inicialmente aparece com um chapéu (figura 1), que é abandonado e trocado por um casaco presenteado a Garcin por seu sogro e que se torna a marca registrada de sua aparição (figuras 2-7). Logo entra em cena também sua esposa, Monique (figuras 3,4), também recortes-estatuetas de alguns centímetros de altura e que passa a contracenar com o Senhor G.
Entre os elementos que mais compõe sua iconografia estão a projeção da sombra, que sugere um Sol que parece mesmo estar em translação, tamanho seu cuidado com suas configurações e pontos de vista ou fuga e as texturas possibilitadas pelos materiais, fotografados de perto. Trabalha também com elementos geométricos, como linhas delgadas e retas, que podem fazer oscilar dramaticamente o aprisionamento sob as amarras de uma relação conjugal (figura 3) com um sensível momento em que essa relação conjugal pode construir, equilibrando-se em uma estrutura desengonçada para um sonho a dois, com uma Lua serena que ousa aparecer, à frente de uma escura e densa nuvem (figura 4).
Esculpe, no tempo, no espaço e nas proporções, suas fotografias desde suas minúcias, a partir de ideias geradoras que vem ora da Filosofia, ora da Literatura, da Pintura ou do Cinema.
As fotos de Garcin, embora imagens estáticas, nos atraem justamente pela sensação de movimento que dão, como se retratassem um raro momento de suspensão, entre um gesto e outro do tempo, e nos remetesse a um abismo de pensamentos que podem ser pensados como que numa câmera infinitamente lenta, um fotograma retirado do frenesi da vida temporal e revelado como imagem pensamento que brota desde as entranhas dos gestos habituais, dando densidade e profundidade a eles.
Ao contrário dos filmes, não é a sucessão muito rápida de imagens que dá a sensação de movimento, mas a exposição estática: não o movimento do gesto, mas o movimento do próprio pensamento que parece ali, dinamicamente compartilhado entre as personas, o cenário e quem olha a foto. Pensamentos que somente são revelados para além das ações e hábitos cotidianos, a partir da composição com mitos, lendas, histórias e uma linguagem que não é dizível, apenas mostrável e observável. São revelações de um tempo que é capaz de desaparecer por completo, encobertos pelas ações, mas que é extremamente poderoso nas configurações de nossas relações, medos e contradições diante da vida.
Seus temas atingem profundidades inusitadas, que chegam a revelar alguns nós em nossa própria razão ou sólidos objetivos ou obstinações, por exemplo em “moinho do esquecimento”, que ao caminhar configura a memória como apagamento, tendo à frente sempre um caminho que, aparentemente não trilhado, é de fato apagado pelo próprio contrapeso de seu movimento (figura 2).
Finalmente é na relação entre a vida e a morte que ele parece sugerir seu mais singelo paradoxo: ao mesmo tempo em que é puxado a voar e fixado ao chão por um peso material (figura 5); ou que enfrenta uma cadeia de médicos que parecem tão tranquilos diante de alguma inexorabilidade quanto ele (figura 6) ou finalmente, quando inicia uma jornada por um caminho de nuvens, levando consigo uma maleta de viagem (figura 7) que o acompanhara desde as primeiras fotos (figura 1). Não parece expressar tristeza ou melancolia, apenas uma resignada tranquilidade diante de algo que parece paradoxalmente parte da própria vida, ou a parte mais imaterial de sua existência: a aproximação de seu fim ou recomeço diante da morte.
O ciclo se fechou. Gilbert Garcin faleceu tranquilamente enquanto dormia em 20 de abril de 2020, sem coronavírus ou algum drama de sofrimento: apenas dormiu para sempre ou, como sugerem alguns, finalmente foi reencontrar sua grande companheira de vida, a luz.
As obras
Sua obra foi gentil e organizadamente disponibilizada pelo fotógrafo.
1. Vue sur mer
2. Le moulin de l’oubli
3. La clé des champs
4. Nocturne (D’après Paul Klee)
5. Icare Contrecarr
6. L’embarras du choix
7. Le charme de l’au-delà