No cinema e na vida, um anti-fascista

Pontecorvo nos deixou ontem, dia 12 de outubro de 2006, com 86 anos. Era um gigante do cinema, que fez o maior filme político da história. Quem assiste A Batalha de Argel (1966) pode saber sem esforço de compreensão algum, que se trata do maior e mais importante filme político da história do cinema. E que Pontecorvo pode ser lembrado como um gigante apenas por ter feito este filme, cinematográfica, dramática e moralmente eterno. Ao ver só a Batalha de Argel porém, é impossível não se perguntar quem fez esse filme, quem dirigiu, quem nos deu – humanidade – essa chance de olhar-nos e vermo-nos e reconhecermo-nos, de maneira tão intransigente e bela.

Essa pergunta vem junto a outra: o que pode ser a decisão pela verdade, através da lente de uma câmera (que no caso de Pontecorvo é fotográfica e cinematográfica, como uma só)?

Esse gigante é um homem que cometeu a mais grave e honrada das decisões. Cometeu essa decisão e nunca mais abriu mão de suas exigências. Certamente pagou variados preços por isso. Pode-se assistir ao A Ditadura da Verdade, um documentário sobre sua vida, para tirar as próprias conclusões a respeito do que decidiu o nosso gigante. O que esse documentário nos possibilita, pela voz do próprio cineasta, numa entrevista dos anos 70, é a autenticação de algo que A Batalha de Argel nos apresenta de modo lapidar: Pontecorvo decidiu buscar a verdade. Nada menos.

Isso custa caro e sempre custou. Nem sempre o preço compensa, do ponto de vista do sistema de medidas dos que optam pela mentira, e assim dominam o mundo cheio de misérias e enganações – pensando bem, tudo mesmo tem seu preço, talvez. O preço do gigante italiano foi ter produzido pouco, de ter deixado inúmeros projetos inconclusos, de ter abandonado o que viria a ser filme, algumas vezes, já na fase de pré-produção. Quem não decidiu pela verdade jamais pode entender esse tipo de atitude. E Pontecorvo não parece ser o tipo de gente que se incomoda com a mesquinhez que recusa a percepção do que está diante dos próprios olhos.

Quanto a isto, a lição de Pontecorvo é nítida como um girassol em preto e branco, sobretudo na Batalha de Argel: ele fez um filme-fotografia, cujos silêncios são – como numa operação de sinestesia deliberada – transfigurados em olhares mudos e irados, altivos, dos lutadores pela independência da Argélia. E a lição é esta: a ação como verdade; como verdade, é necessário dizer, a olhos vistos.

Só quem decidiu pela verdade pode entender isso. A autoridade, para quem tem a verdade em mente, não tem por hábito depender de nenhuma negociação. Sim, mas que ninguém se engane a respeito do humanismo dessa decisão.

Gillo Pontecorvo é de uma das histórias que ainda podem restituir o século XX à dignidade que lhe pertence. E não só o século XX. Ele é exemplar de uma cepa de homens e mulheres a quem a humanidade deve dobrar-se em respeito, louvor e gratidão. Uma cepa que hoje parece a dos gigantes e, quanto mais os dias avançam, mais parece que o nosso louvor e a nossa gratidão exigem o caráter de necessidade.

Ele é um gigante anti-fascista, dos que podem restituir o século XX do sangue e da barbárie a povoar alguns dos falsos fantasmas atuais. Sobretudo porque a luta antifascista ainda é uma das poucas chamas acesas a restituir do século XX algum sentido. Ainda mais porque aquilo que nos atormentou parece ganhar uma tenebrosa força, hoje.

Quantos jovens se dispõem a mudar a vida radicalmente? A subverter a conversa fiada das superioridades de nascença, ou a dominação, disfarçada de desistência, a dizer que a Política não merece atenção? Há quem diga – nem sempre por ignorância ou com boa fé – que o tempo em que Pontecorvo decidiu pela verdade “eram tempos muito diferentes” destes que atravessamos. Que era um momento nem tão penoso, nem tão alienado, como o atual, em que até o oxigênio do ar corre o risco de se tornar commoditie. Quem faz isso denega o fascismo, atitude jamais insuspeita, é bom que se diga.

Pois Pontecorvo tornou-se comunista e resistiu – inclusive com armas – ao fascismo na Itália. Depois, abandonou o stalinismo quando da grande noite que se abateu sobre a Hungria, em 1956. Foi um dos primeiros a dizer no cinema dos campos de concentração, ao fazer Kapo (1960) e se tornou eterno quando decidiu seguir o testemunho de um ex-prisioneiro e militante da Frente de Libertação Nacional argelina, Saadi Yacef e inscrever uma batalha no norte da África, contra a França, na história do cinema. Com rigor, compromisso e lirismo estonteantes.

A Batalha de Argel, vencedor do Leão de Ouro, em Veneza, tornou-se conhecida por seu realismo. É uma obra prima realista, cujo sentido de eternidade só pode ser devidamente respeitado se lembrarmos que havia apenas três anos da consumação da independência da Argélia e que a imensa maioria dos seus atores eram argelinos de carne, osso, memória recente e altivez suficientes, para encenarem a si mesmos. E que esta escolha temporal e pessoal é nada menos que a tradução da decisão inegociável de Pontecorvo. A decisão pela verdade, que nunca subtrai, mas transfigura o registro histórico e suas imposições e, mais ainda: restitui a carne e a memória dos que sofrem, dos que lutam e dos que pereceram, lutando por liberdade e justiça.

Foi um gigante, que restitui e exige o maior legado da luta anti-fascista, ontem, hoje e onde esse mal ousar se erguer: não esquecemos. Não esquecemos com quem estamos, nem do que se faz e o que exige a verdade: olhar, ver e reconhecer, de maneira intransigente e bela, a carne e a memória dos que sofrem, dos que lutam e dos que pereceram, lutando por liberdade e por justiça.

Pontecorvo era judeu, então, talvez uma homenagem impregnada de teologia judaica esteja à altura de sua figura, por fim. É uma peculiar oração, feita pelo maior teólogo judeu e marxista da história, que lutou contra o fascismo desde sempre Que estas palavras ganhem carne e luta, diante das ameaças fascistas, que parece não cessarem de pretender a morte e destruição: “O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”(1) Que Pontecorvo e todos os homens e mulheres que restituem o antifascismo estejam seguros, porque esse historiador aí é a verdade. Nada menos.

(1) Teses Sobre o Conceito de História. Tese VI, de Walter Benjamin. In
“Aviso de Incêndio: Uma Leitura das Teses sobre o Conceito de História”, de Michel Löwy. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das Teses: Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Muller. Boitempo, 2005

Katarina Peixoto é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com

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