Ninguém Esquece Nada [Nadie olvida nada] é uma série de pinturas em acrílico sobre madeira de Guillermo Kuitca (1961), lançada em 1982 em uma exposição em Buenos Aires.
O elemento central e recorrente das imagens é uma cama vazia e desfeita, reaparecendo em lugares inusitados, como expressão minimalista da perseguição e desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar argentina: era no encontro das camas vazias que as famílias constatavam mais um desaparecimento ou rapto que ocorrera nas sombras de um temor noturno (fig. 1 a 3).
Nos quadros as silhuetas de pessoas (fig. 4 e 5), geralmente de costas, flutuam sobre um fundo desolado, mas o próprio quadro participa de uma memória tão radicalmente coletiva que cada anônimo nos parece familiar e o reconhecemos como próximos, mesmo sem ver suas faces, geralmente voltadas para a parede, como se estivessem sob revista.
As telas não apresentam figurações do mundo, tampouco são abstrações. O artista define suas próprias pinturas como diagramas: figurações incompletas e distorcidas o suficiente para abstrair-se si como imagem pronta do mundo e provocar uma busca de completude que traz para primeiro plano um fundo de memória coletiva onde a própria pintura se insere.
Sem ser o arauto de utopias ou anunciador de distopias, não deixa de lembrar, dolorosamente, que “quando morre um sonho, corre muito sangue” (Fig. 6), mensagem estampada no fundo de uma de suas telas, mesclando pintura com literatura. Apresenta um insólito cenário onde se encontram restos de uma apresentação artística, microfones abandonados com uma vala ao centro e onde reaparece a cama desfeita sendo tragada: novamente a expressão de algum desaparecimento, mas sob a certeza de que “ninguém esquece nada”.
Kuitca parece mostrar que a função que o artista deve cumprir nas grandes crises é conectar uma desesperança a uma ilusão, ou uma desilusão a uma esperança e fazer a conexão de uma continuidade da vida rumo ao futuro, mantendo a defesa intransigente do direito à memória.
A década de 1980 foi marcada por grandes mudanças em nosso continente: pareciam esgotados os “Anos de Chumbo” das Ditaduras Militares e diversos países ensaiavam as redemocratizações e a volta a uma esperada normalidade. Movimentos que mobilizavam a questão da anistia, o direito à memória, à verdade e a uma justiça de transição. Quem pode ser perdoado e por que tipo de crime? O que poderia ser esquecido em nome de uma nova ordem?
Na Argentina, com o fim da Ditadura Militar (1983) houve a instalação imediata da Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (Conadep) responsável por apurar o destino dos desaparecidos, onde eles estavam, o que tinha acontecido com eles e, principalmente, quem eram os agentes responsáveis por tanto sofrimento. A comissão levantou informações e, depois de décadas, conseguiu-se material para condenar os primeiros Generais por crimes contra a humanidade… mas não importava que fossem décadas, não onde ninguém esquecia nada.
No Brasil desse mesmo período estávamos, ao que parece, prontos para esquecer e perdoar. Nossa anistia pareceu ampla o suficiente para apontar perigosamente para uma espécie de abafamento do direito à memória, em nome de algumas trocas políticas que pareciam indicar que o saldo disso seria bom: os exilados voltariam para casa, seriam perdoados indistintamente junto com seus algozes e a vida seguiria.
Diante de um pacto que apontava para uma solução que não gerasse tanto conflito com os militares, apenas em 2011 conseguimos instalar no Brasil a Comissão Nacional da Verdade.
Entretanto, sob a sombra de uma ditadura, mesmo depois de décadas, o processo ainda continuava diante de um mesmo tabu e pressão para que fossem abafadas suas conclusões, arquivados seus inquéritos e, por fim, perseguidos os integrantes da própria Comissão sob a ascensão de um renovado anseio de totalitarismo.
O retrato da contemporaneidade parece apontar, melancolicamente, para a inversão de uma dolorida memória histórica, recontando e comemorando explicitamente suas atrocidades como normalidade.
Talvez possamos concluir que, diante do fato de que ninguém esquece nada, quem se esquece de lembrar corre o risco de esquecer sua própria humanidade.
As obras
KUITCA, Guillermo. Sueño y miseria de una generación que no es la mía (Idea de una pasión), 2004. Disponível em: Coppel Collection(figura 1)
KUITCA, Guillermo. Siete últimas canciones, 1986, 141x 226cm. Disponível em: Artnet (figura 2)
KUITCA, Guillermo. Nadie olvida nada, 1982. 20×30 cm. Disponível em: Wikimedia (figura 3)
KUITCA, Guillermo. Nadie olvida nada, 1982. 122×154 cm. Disponível em: Wikimedia (figura 4)
KUITCA, Guillermo. Nadie olvida nada, 1982. 122x154cm. Disponível em: Wikimedia (figura 5)
KUITCA, Guillermo. Cuando muere un sueño corre mucha sangre, 1987. 130x180cm. Disponível em: Artnet (figura 6)