Longe de casa

A cada hora, 58 pessoas abandonam a América Latina e Caribe, fugindo da miséria ou sonhando com rendas melhores e alguma forma de mandar dinheiro para a família que fica para trás. O fluxo de imigrantes da região é tão intenso que, sem compreender suas causas, não há como analisar os efeitos da globalização econômica sobre o continente, avaliaram participantes da Jornada Hemisférica sobre Políticas Migratórias que acontece dentro do Fórum Social das Américas, em Quito, no Equador.

A discussão fez quase lotar o auditório da Flacso, Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, para um dos debates da jornada e confirmou as migrações como um dos temas mais mobilizadores do fórum de Quito. “Somos todos estrangeiros, xenofobia não” foi a chamada que norteou seminários, conferências e debates temáticos e mostrou a principal intersecção entre o deslocamento de pessoas e a globalização neoliberal: ódios étnicos e raciais insuflados para facilitar a negação de direitos e a exploração econômica, além da exclusão dos indesejáveis.

A xenofobia foi apontada no fórum como mais um dos muros que se erguem para impedir a livre circulação de pessoas, enquanto as riquezas de seus países mudam de lugar e o capital exige a derrubada das barreiras que encontra pela frente.

Joguetes globais

O impulso ao fenômeno migratório por razões econômicas não tem uma origem só. A necessidade – inconfessa – de mão de obra barata e desprotegida pelos países desenvolvidos é sem dúvida uma das causas para a mais triste das migrações, as clandestinas, na opinião do diretor do Serviço Jesuíta de Migrantes, da República Dominicana, José Núñez. E há também, como ele aponta, os países que dependem de seus cidadãos no exterior para movimentar sua economia. Mexicanos nos Estados Unidos enviam ao país natal US$ 15 bilhões por ano, estima Núñez. Outros países pequenos, como a Guatemala e a Colômbia, contabilizam esse tipo de remessa como parte indispensável da renda nacional.

Essas remessas, no entanto, significam muito pouco comparado ao que é produzido e oferecido aos paises onde os latino-americanos e caribenhos se instalam. Segundo Luiz Bassegio, secretário nacional do Serviço Pastoral dos Migrantes, o trabalho dos 16,7 milhões de imigrantes gera nos Estados Unidos uma renda de aproximadamente US$ 450 bilhões de dólares. Destes, US$ 30 bilhões é o que retorna aos países de origem: apenas 6,6% de tudo que produziram, diz Bassegio.

Destinos compulsórios

Entre fugitivos da miséria e pessoas que se afastam das áreas de conflitos armados, houve uma reacomodação da população mundial, nos últimos dez anos, com desdobramentos difíceis de mensurar: cerca de 25 milhões de crianças nasceram fora do país natal de seus pais, segundo José Rojas. São laços comunitários e familiares que se rompem com a migração forçada. A participação da população latino-americana nesses deslocamentos foi grande: mais ou menos 500 mil pessoas indo embora a cada ano, realimentando um contingente de 175 milhões de migrantes no mundo, sendo quase 25 milhões destes na condição de desabrigados internos.

Dificilmente o “para onde ir” é uma escolha livre de quem parte – a maioria para Estados Unidos ou Espanha, países com forte participação de imigrantes na economia informal, ou para outros países da América Latina, onde os deslocamentos internos também são grandes. Naturalmente, Quito lembrou que uma parte das pessoas que deixam a América Latina – muitas delas tentando a travessia para os Estados Unidos – desaparece na viagem. Outra parte é alvo de exploração ou discriminações nos países escolhidos para viver. Passam a trabalhar sem garantias legais ou são perseguidas por sua condição, aponta Blanca Chancoso.

Vida de cão

A frase que aparece no filme “A vida é bela”, de Roberto Benigni, indicando que em determinado estabelecimento comercial não se aceitavam “nem animais, nem judeus”, não é apenas uma pérola da crueldade nazista. Segundo Oscar Chacón, dos Estados Unidos, já foi considerado normal em seu país, no século passado, que lojas selecionassem a clientela com avisos semelhantes, mas destinados a afastar tanto cães quanto imigrantes.

Placas desse tipo foram abolidas das fachadas, mas a crueldade permanece arraigada nas leis e condições que cercam os estrangeiros. Nos Estados Unidos, os imigrantes são tratados como criminosos ou, nos últimos anos, como terroristas potenciais, lamenta Chacon. “Sempre houve migrações”, diz José Núñez. Mas as regras mudaram, endureceram. O controle nas fronteiras empurra levas para a migração clandestina, impedindo que a presença de muitos estrangeiros seja reconhecida oficialmente e, portanto, protegida.


Publicado em Porto Alegre 2003: 28/07/2004

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *