La nueva constitución chilena entre as garras do velho Estado repressor

O ambiente latino-americano é de apreensão frente às eleições em curso, as presidenciais nos Estados Unidos e as municipais no Brasil, que podem confirmar ou descartar um início de reação à ascensão da extrema direita verificada nos últimos anos. Os acontecimentos no resto do mundo, que impulsionam guerras xenofóbicas e normalizam relações coloniais, como os acordos de países árabes com Israel, não ajudam a tranquilizar os espíritos progressistas. No caso dos Estados Unidos, vencer o extremismo do republicano Donald Trump poderá ser um alívio, mas não livrará ninguém da política imperialista, militarista e neoliberal vinda do norte. O concorrente, Joe Biden, já disse esperar que a América Latina o apoie em seu projeto de liderança mundial.

Nesse cenário, o Chile se juntou à festa recente da Bolívia com a eleição de Lucho Arce, que afastou do governo os golpistas amparados pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que assaltaram o comando do país em 2019. Uma eleição e um referendo impulsionados pelas forças populares neste ano pandêmico de 2020 parecem peças fora do jogo armado pela desesperança.

Com 78% de votos favoráveis à substituição da velha carta de Pinochet, votantes decidiram ainda que o texto será redigido por uma convenção constituinte totalmente nova, e não por 50% dos atuais congressistas – que era uma opção.

Em até dois meses devem ser definidos os nomes concorrentes para formar a assembleia constituinte. Em abril, o Chile votará novamente, para eleger 155 membros, com paridade entre homens e mulheres. A Constituição deverá ser escrita em nove meses, com tolerância de mais três meses de prorrogação, para ser submetida novamente à votação pública em meados de 2022.O professor Kamal Cuncille, do Centro de Estudos Árabes da Universidade do Chile, lembra que “a grande maioria da população votou pela nova Constituição, e isso significa que tanto esquerda como direita votaram a favor dela e agora disputarão visões de Estado”.

Nesse amplo espectro, há quase meio milhão de “chilestinos” que se identificam com a Palestina histórica e promovem laços culturais e esportivos com a terra de origem das primeiras gerações de imigrantes, opondo-se à sua ocupação por Israel. O Esporte Clube Chileno, que este ano completou seu centenário e que leva o mapa da Palestina pré-48 no uniforme, demonstra essa forte relação. A causa palestina é muito mais associada às lutas das esquerdas na América Latina. Mas, assim como o restante da sociedade chilena, a comunidade chilestina se divide no plano político e ideológico sobre a próxima Constituição. Como lembra o professor Kamal Cumsille, o próprio comitê palestino chileno-palestino é presidido hoje por um parlamentar de direita.

A nova Carta provavelmente derrubará o princípio do Estado subsidiário do setor privado que impede, por exemplo, a oferta da universidade pública, gratuita e universal. Até hoje, sempre que propostas de leis ameaçaram mais seriamente esse modelo de Estado, um tribunal criado para a defesa da Constituição foi acionado. “É um instituto chileno, formado por maioria conservadora, que hoje tem o poder de barrar políticas que a maioria de seus integrantes consideram infratoras do texto de 1980” , explica Cumsille.

Entre a defesa do Estado social e o Estado mínimo, as campanhas para eleger representantes à nova convenção constituinte devem travar uma guerra de narrativas quanto ao que seja renovação e democracia, colocando-se na oposição à velha política ou mesmo na negação da própria política. Um dos primeiros debates pós-referendo questiona a participação de partidos na indicação de candidaturas. O ambiente democrático sugerido pelo referendo não impedirá que a batalha seja feroz e violenta.

A política conservadora e privatista que fracassou em sufocar os protestos, mas deixou um saldo de mortes, prisões e ferimentos graves, continua exibindo sua raiva institucional contra manifestantes – que agora pedem a libertação de ativistas detidos nos confrontos.

A cena dos carabineiros arrancando no sábado a fantasia da “tia Pikachú” e em seguida jogando gás de pimenta no rosto da ativista Giovanna Grandóné é inacreditável. A personagem tornou-se presença habitual nas marchas chilenas, ao lado de outras figuras que ajudavam a colorir os protestos.

A relação do estado com a população indígena mapuche, que historicamente resiste à colonização, mostra que os aparatos repressivos continuam bem armados. Os interesses econômicos pelas terras indígenas têm levado à destruição de áreas florestais pelas mineradoras e o agronegócio. O Estado abre caminho utilizando a lei antiterrorismo de Pinochet, taxando os mapuches de terroristas, prolongando detenções sem acusação e cercando militarmente a região de Araucanía onde muitos vivem.

Métodos e tecnologias de vigilância, armas e treinamentos vêm principalmente de Israel. Apesar de reunir a maior e mais antiga população de imigrantes palestinos do continente, o Chile tornou-se um cliente fiel do Estado ocupante da Palestina desde a ditadura. O Movimento pelos Direitos do Povo Palestina menciona documento desclassificado da CI, segundo o qual, de 1975 até 1988, Israel vendeu sistemas de radar, mísseis ar-ar, equipamentos navais, sistemas aeronáuticos e antimísseis ao Chile. As fabricantes Elbit , IAI e Rafael estão hoje entre as principais fornecedoras de equipamentos e armas. Em 2018, os exércitos do Chile e de Israel assinaram um memorando conjunto para “cooperação em educação militar, capacitação e doutrina, liderança, comando e controle, entre outras coisas”.

A Constituição hoje em vigor atribui ao presidente o papel de definir a política externa, assinar tratados e convênios e o Congresso de aprová-los. É um modelo básico que deve permanecer. “É uma tradição chilena respeitar a soberania territorial”, explica o professor Kamal Cumsille. Por outro lado, a Constituição deverá definir os tipos de tratado que a ela se integram automaticamente após adesão do País – não cabendo mais mudanças. Exemplos são os compromissos com a Declaração dos Direitos Humanos e as grandes normas internacionais da ONU que o Chile já assinou. Ao mesmo tempo, a democracia exigirá uma categoria de acordos que o Congresso poderá modificar, suspender ou barrar. Entre eles, tratados comerciais que se baseiam no velho Estado privatista que mercantiliza suas políticas sociais ou os convênios militares que armam e treinam o Estado repressor que criminaliza sua população.

Há muitos motivos para o povo chileno exigir que a futura Constituição reflita os protestos que cobraram direito ao transporte público, à educação gratuita, acesso à saúde e aos direitos previdenciários. E também o reconhecimento dos direitos reivindicados pela população indígena. Foram essas mobilizações que levantaram o país contra as desigualdades e a violência e obrigaram o presidente Sebastián Piñera a procurar uma resposta que não significasse sua própria derrubada, anunciando o plebiscito em novembro do ano passado. Mas ,agora, trata-se de uma nova batalha que começa.

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