Nos dias 23, 24, 25 de março e 2 de abril, o ICArabe (Instituto da Cultura Árabe), juntamente com a Boitempo Editorial e a PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), promoveu o curso “A história da Palestina e os desafios da atualidade”. A iniciativa teve o apoio do Centro de Estudos Árabes da USP (Universidade de São Paulo) e da Frente em Defesa do Povo Palestino. Mais de 300 pessoas, entre estudantes e profissionais das mais diversas áreas, acompanharam as aulas, sediadas na PUC-SP.
Inaugurando-as, a professora de História e Cultura Árabe da USP, Arlene Clemesha, membro do Conselho do ICArabe, abordou os precedentes históricos na Palestina e como esta chegou ao século XIX, quando teve origem o sionismo. A especialista avançou ainda até a primeira metade do século XX e apontou a realidade convulsionada naquele território. Trazendo à luz parte fundamental da história da Palestina ainda pouco conhecida – e que tem sido alvo de confusões e manipulações da verdade -, Clemesha elucidou que desde tempos imemoriais a região tem sido ocupada por diferentes povos. A arabização era realidade já a partir do primeiro século depois de Cristo.
A historiadora listou uma série de momentos importantes, tais como a conquista em 1218 de Jerusalém por Saladino, o qual abriu as portas da cidade – berço das três religiões monoteístas – ao retorno de judeus e muçulmanos. E a reconquista católica na Espanha, em 1492, que culminou com a busca destes por refúgio inclusive na Palestina. De 1516 ao final do século XIX, todo o território árabe estava sob domínio do Império Otomano. A sociedade ali era rural e camponesa e predominava a agricultura de subsistência. A comprovar a falácia de famoso lema usado pelo sionismo para garantir a implantação de seu projeto contraditoriamente nacionalista e colonialista – de que se tratava de “uma terra sem povo para um povo sem terra” -, a professora mostrou imagens por exemplo da cidade de Jaffa no período, que indicavam um porto muito ativo e a prevalência de atividades como pesca e produção de laranjas. Ao final do século XIX, segundo sua informação, havia na Palestina 500 mil habitantes, a esmagadora maioria formada por muçulmanos; eram apenas 60 mil cristãos árabes, 20 mil judeus árabes, 10 mil missionários e 5 mil soldados do Império Otomano.
Clemesha desmontou ainda a tão propalada desavença milenar entre judeus e muçulmanos. Quanto aos primeiros, minoria na região, ela foi categórica: “Nada havia que indicasse discriminação, ao contrário do que ocorria na Europa”. Desmistificando a ideia de que se trata de uma disputa religiosa, a professora deixou claro que o sionismo – que culminaria com a criação do Estado de Israel em 1948 – era um movimento político e laico do final do século XIX. E organizava já desde então a imigração para a Palestina, um dos seus pilares para levar a cabo seu projeto. Além da política de conquista da terra, outro era a conquista do trabalho. “Cada posto aberto não empregaria mão-de-obra árabe-palestina”, afirmou Clemesha. Um dos problemas a serem enfrentados era convencer os judeus a imigrar para a Palestina. A imensa maioria dos provenientes da Europa Oriental – 2 milhões ao todo – queria ir para os Estados Unidos. Ao final, mesmo com todo o incentivo e pressão, não mais do que 450 mil desembarcaram no território escolhido pelo sionismo para a implantação do Estado judeu.
Influência inglesa
Para entender a trágica realidade local, a professora abordou ainda a divisão feita após a Primeira Guerra Mundial em toda a região, a partir da derrota do Império Otomano para os aliados – encabeçados por França, Inglaterra e Rússia -, com o apoio dos árabes, a quem foi prometida a independência de seus estados, e não cumprida. A Palestina ficou sob mandato britânico, sob a alegação de que este a prepararia para ser, enfim, uma nação soberana e autônoma. Nova traição à vista. Em 1917, o banqueiro Lord Balfour emitiu sua famosa declaração, que dava sinal verde ao projeto sionista. Isso detonou revolta árabe entre os anos 1920 e 1930. De acordo com Clemesha, há inclusive autores que consideram que a primeira intifada ocorreu entre 1936 e 1939, a partir de uma greve geral, abafada. O resultado foram 5 mil palestinos mortos, 10 mil feridos e 5.679 presos. A repressão britânica a toda forma de organização da população nativa foi gigantesca. E no decorrer da limpeza étnica no período que antecedeu a criação do Estado de Israel – minuciosamente preparada, conforme ensinou a professora, inclusive com o mapeamento de todos os vilarejos e famílias – e o processo de transferência forçada, compulsória e sem escrúpulos, os habitantes das aldeias não tiveram meios de se defender. Armas, quando haviam, eram obsoletas. Assim, o sionismo – com o apoio do mandato britânico – promoveu grandes massacres.
Dois anos após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1947, a ONU (Organização das Nações Unidas) votou a partilha do território e foi aprovada por 33 votos a 30 a Resolução 181, que destinava 55% aos judeus e 45% aos árabes-palestinos. Em 1948, com a consolidação do projeto sionista, tem então início a segunda fase da limpeza étnica, ensinou a professora – e como conseqüência, juntando as duas etapas, mais de 800 mil palestinos foram expulsos de suas terras. Em 1967, o Estado de Israel expande-se e ocupa praticamente 80% do território, incluindo Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – o que é reconhecido como ilegal pela própria ONU. Como resultado, informou Clemesha, no mundo há em torno de 8 milhões de refugiados palestinos, cujo direito ao retorno, observado pelas Nações Unidas desde 1948, continua a ser negado.
Situação desumana
No dia 24, durante sua aula, o professor Mohamed Habib, vice-presidente do ICArabe, destacou que até quatro anos atrás havia 372 check points somente na Cisjordânia e que Israel desobedecia a 65 resoluções da ONU. Enfatizou também a situação desumana imposta aos palestinos e o papel dos Estados Unidos para que essa realidade se perpetue, bem como seu interesse na região. Com 4,5% da população global, aquele país consome 1/3 do petróleo e mais de 60% do gás natural do planeta – portanto, estaria de olho nesses recursos, abundantes no mundo árabe. Ao enfatizar os crimes cometidos contra a humanidade em especial pelos EUA e seu aliado – Israel -, Habib citou os comprovadamente ocorridos em Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, que incluíram o uso de armas proibidas. Na sua opinião, a luta deve ser por conscientizar as pessoas para uma cultura de paz, em contraposição ao ódio que se busca alimentar, em prol de interesses escusos.
A última aula dada foi do jornalista e professor da PUC-SP José Arbex, diretor de relações internacionais do ICArabe, que abordou o complexo tema “A resistência palestina: o nacionalismo laico e o islamismo nacional”. Ele salientou que o nacionalismo é um conceito produzido e construído a partir da Revolução Francesa, em 1789, e se presta a interesses determinados. “O problema é discutir o que é nação. Essa complicação é evidente ao se olhar para o mapa do Oriente Médio. Ali tem um monte de estados, alguns com 70, 80 anos, mas os povos que os habitam têm milhares de anos.” A capital da Síria, Damasco, por exemplo, tem 5 mil anos, sendo a cidade mais longeva de todas. Com esse argumento, Arbex demonstrou o caráter artificial dos estados e fronteiras na região, que nada têm a ver com a história dos povos locais e é resultado do processo de colonização. O nacionalismo árabe, que importou esse conceito, portanto, da Europa, imitou-o também no seu caráter excludente, conforme o professor. “Baseava-se na suposta superioridade do povo árabe e aí reside o debate com o islamismo, cuja tarefa é constituir a umma (comunidade) humana.”
Sob essa ótica universalista, Arbex deu o recado de que não há uma luta entre árabes e judeus, pelo contrário, predominou durante séculos a cooperação entre eles. O problema é geopolítico. “São povos que estão condenados a viver juntos para sempre. O que impede essa convivência é o racismo fabricado, por causa do petróleo”.
Reportagem publicada originalmente no site do ICArabe (www.icarabe.org)