No livro A ideologia dos noticiários internacionais, lançado recentemente, apontei que a geopolítica mundial, em toda sua amplitude, é muito mais complexa e controversa do que o apresentado frequentemente nos noticiários internacionais da grande imprensa (seja na TV, em jornais ou na internet). Também não existe análise “neutra” sobre um determinado conflito ou foco de tensão.
No caso dos principais grupos de comunicação brasileiros (colonizados ao extremo), sempre a posição predominante será aquela difundida pelo imperialismo estadunidense e seus aliados europeus.
Em relação à atual situação do Leste Europeu, os discursos geopolíticos da mídia reduzem os antagonismos entre países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e Rússia a uma mera disputa do “bem” (Ocidente) contra o “mal” (russos) e, assim, noticiaram o ataque da Rússia à vizinha Ucrânia, ocorrido na quinta-feira (24/2), como uma ação covarde de uma poderosa potência bélica a um pequeno país.
Para tanto, lançaram mão de todo tipo de manipulação: omitiram e/ou falsificaram fatos históricos, personalizaram a geopolítica e utilizaram vídeos ou imagens comoventes da população civil ucraniana, com objetivo de direcionar o público a aderir a agenda geopolítica das nações imperialistas.
Evidentemente, não sou favorável a qualquer tipo de guerra, mas é importante levantarmos algumas questões, para não propagar narrativas tendenciosas e enviesadas.
Guerra midiática
Entre os fatos históricos omitidos na grande mídia, estão os acordos entre russos e potências europeias, firmados após a dissolução da União Soviética, no início da década de 90. Na época, foi assegurado que a Otan, a aliança militar do Ocidente, não se estenderia até nações limítrofes à Rússia (como a Ucrânia, por exemplo).
Portanto, se há algum ator geopolítico que não cumpriu as regras do jogo diplomático, ultrapassando limites, não foi a Rússia (como apontam os noticiários), mas a Otan (com a possibilidade de a Ucrânia fazer parte dessa aliança).
Outra questão a se destacar é que as recentes animosidades entre Ucrânia e Rússia tiveram início em 2014. Naquele ano, houve um golpe de Estado na Ucrânia, patrocinado pelas potências europeias e EUA, dando início a um governo fantoche, de extrema direita, pró-União Europeia e hostil à Moscou. Típico exemplo de “Guerra Híbrida” bem-sucedida.
No entanto, na imprensa, o golpe foi noticiado como consequência de uma rebelião popular “espontânea” contra o governo aliado à Rússia.
Qualquer semelhança com o que aconteceu aqui no Brasil, em 2016, não é mera coincidência.
Já no tocante à personalização dos noticiários, nos principais telejornais, a invasão da Ucrânia pela Rússia não teve “causas”, mas somente “consequências”. Foi uma ação desencadeada somente pela mente diabólica do presidente russo Vladimir Putin.
Não se trata de minimizar os pontos negativos do chefe do Kremlin, mas é fundamental alertar sobre as tentativas, por parte da mídia, de fazer analogias entre uma suposta expansão russa com as invasões nazistas à países europeus antes da Segunda Guerra.
Não por acaso, no Bom Dia Brasil, da Rede Globo, a comentarista Miriam Leitão fez uma descabida comparação entre Hitler e Putin.
Nesse sentido, todo chefe de Estado que se oponha minimante aos interesses de Washington e aliados, tem uma imagem fortemente negativa construída pela mídia. Isso serve para justificar intervenções militares ou sanções econômicas.
É fato que imagens e vídeos que ilustram o desespero da população civil ucraniana são comoventes. Porém, conforme bem destacou o filósofo da Universidade Federal do Ceará, Jonh K. Aquino, “se existe um responsável pela crise na Ucrânia é o governo dos Estados Unidos e os neonazistas da Ucrânia. A grande vítima é o povo ucraniano que só quer viver em paz”. Ou seja, o governo de Kiev, ao aceitar que seu país se transformasse em uma espécie de “bucha de canhão” do Ocidente, na empreitada contra Moscou, colocou sua própria população em risco.
Ainda segundo Aquino, “quando a URSS tentou instalar mísseis em Cuba em 1962 os EUA ameaçaram inclusive um ataque nuclear. Justificativa: seria uma ameaça estrangeira muito próximo ao país. Agora, o imperialismo norte americano quer instalar bases militares e mísseis na fronteira com a Rússia e quer que tudo fique por isso mesmo”.
Não é fácil se posicionar em relação à uma questão geopolítica. Como dito, é uma temática muito ampla e complexa. Todavia, na era das redes sociais, todos querem divulgar suas opiniões. É justo e compreensível.
Para tanto, podemos recorrer ao velho Leonel Brizola. É quase infalível. Quer se posicionar sobre geopolítica global, na dúvida, faça o seguinte: “se a Rede Globo (e a grande mídia em geral) for a favor, fique contra. Se for contra, fique a favor!”
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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor de dez livros, entre eles “10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático” (Editora CRV).
Fonte: Jornalistas Livres
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