Dirceu Travesso
No dia 30 de outubro último, tivemos a oportunidade de visitar a cidade de Hebron com um grupo de ativistas de sete pessoas (dois brasileiros, uma norueguesa, um galizio, uma francesa e um italiano). Todos participantes de organizações presentes ao Fórum Mundial da Educação na Palestina, realizado entre os dias 28 e 31 do mesmo mês.
Hebron, situada na Cisjordânia a cerca de 30km ao sul de Jerusalém, uma das maiores cidades da Palestina, com cerca de 170 mil habitantes, vive uma situação singular sob a ocupação do exército sionista de Israel. É a única cidade palestina em que existem assentamentos* no centro. Todos os demais assentamentos espalhados pelo território ocupado situam-se fora das cidades, em geral ao seu redor, em cima das colinas. Disputam espaço, casa por casa, na região do velho mercado.
Ocupam uma faixa com cerca de 1km2 cercas, grades, câmeras, tropas espalhadas pelas ruas, telhados. Para aproximadamente 450 colonos que vivem nesses assentamentos no centro de Hebron, existem 1.600 soldados do exército sionista, dezenas de guaritas e por volta de 160 câmeras de controle visual. O que faz do centro da cidade uma região de tensão e conflitos permanentes.
Além desses 450 “assentados” que vivem no centro de Hebron, em torno de outros 7 mil vivem nos arredores da cidade, no alto das colinas, como se espreitassem os palestinos avisando: vamos tentar tomar todo o seu território. Protegidos e apoiados, sempre, pela presença do exército sionista, armados até os dentes.
Hebron é considerada sagrada por três religiões (judaísmo, islamismo e cristianismo). Pela presença no seu centro histórico da chamada Tumba dos Patriarcas, onde estão enterrados Abrahão, Sara, Isaac, Rebeca, Jacob e Lea. Ao redor da tumba, mesquitas, sinagogas e igrejas.
Acompanhados de um companheiro de um movimento de resistência contra a ocupação do centro de Hebron, fomos percorrer o velho mercado pelas vielas estreitas e sinuosas, com suas casas de telhados planos e as centenas de pequenas lojas.
No início, nas ruas do mercado, gente para todo lado, gritos que lembram os feirantes oferecendo seus produtos, barracas de comidas, verduras, roupas. Sensação de estar no cenário de um filme com as câmeras percorrendo e mostrando a movimentação e cores das pequenas vielas, pequenas lojas, seus brilhos, cheiros, contrastes, gente, vestes diferentes, outras nem tanto.
Depois de caminhar um tempo no turbilhão do velho mercado, o companheiro nos avisa. “Não vou falar nada, vocês vão ver a mudança daqui a pouco.” A rua central começa a se esvaziar. Os barulhos, gritos, cores, gente se esbarrando começam a ficar para trás. Aparecem lojas fechadas por ferrolhos colocados com solda em suas portas, que até então não tínhamos visto. Grades acima de nossas cabeças, fechando a rua pela parte de cima. Lixo jogado na grade sobre nossas cabeças. Ruelas e túneis laterais, até então abertos, fechados por grades. Telas e arames farpados. Uma construção mais nova. Toda isolada e protegida. O companheiro nos avisa: “esse é um assentamento de colonos judeus.”
No espaço onde ocuparam prédios e reformaram para que vivam os “colonos sionistas” (aquele de cerca de 1km2) foram fechadas mais de 500 lojas. Do lado em que se encontram os prédios dos assentamentos, obrigaram a cerrar todas as portas. Do outro, vão forçando, fazendo pressão. Alguns resistem e mantêm seu comércio aberto. Outros, mesmo com suas lojas fechadas (lacradas e soldadas pelo exército sionista), montam bancas, como camelôs, em frente da porta de suas lojas e expõem alguns produtos para tentar se manter. É a resistência. Acima, nas grades que fecham o espaço superior, lixo jogado. Os colonos, protegidos pelo exército sionista, atiram entulhos e rejeitos sobre a rua, para acertar os palestinos que tentam sobreviver. O senhor com quem conversamos, banca montada como camelô, nos diz: “ essa era a minha loja, em cima a minha casa. Agora, sou obrigado a tentar ganhar a vida na rua, não posso entrar na minha casa. Hoje consigo vender o ano inteiro menos do que vendia em um mês.”
Mais adiante, o companheiro que nos guiava para e mostra a outra situação que afeta a vida das pessoas. Antes, um palestino podia atravessar 200 metros caminhando (dois minutos) e chegaria ao outro lado de onde está a faixa onde se encontram os assentamentos. Hoje, seja para visitar um parente, ir à escola ou qualquer coisa que precise fazer em lugares que se encontram a essa distância mínima, é obrigado a dar uma volta de 12km, rodear toda a cidade. Além da faixa, existem ruas e avenidas controladas pelo exército sionista, cujo trânsito é bloqueado para os palestinos.
Mas a resistência se expressa, nas crianças que começam a nos alertar que está saindo um contingente maior de soldados (cerca de 15) que passou a nos seguir. Garotos, crianças e adolescentes, que se encontram na rua oferecendo pequenos produtos, e que montam uma cadeia de informação quase que instantânea da movimentação das tropas.
Rapidamente entendemos. Era sábado, dia sagrado para o judaísmo. Várias delegações de judeus de outras cidades vêm visitar e conhecer Hebron. Visitam os assentamentos e saem caminhando exatamente na área que está praticamente deserta. Algumas centenas caminham em grupos pelas pequenas ruelas tortuosas. Acompanhadas de assentados.
Mais uma surpresa. Os assentados têm autorização para andar armados. Quando nos disseram isso, imaginei uma pistola, um revólver. Passa um assentado, óculos escuro, calça jeans, camiseta, cerca de 35 anos, levando o filho pela mão. No ombro, pendurada uma metralhadora, capaz de matar algumas dezenas de pessoas em fração de segundos nessas ruas estreitas.
Outros grupos passam, e a cena é a mesma. A indignação de ver nos olhos, no queixo erguido, a atitude provocativa com que passam cantando, gritando palavras de ordem, provocando e xingando os palestinos é grande. O mesmo olhar arrogante, prepotente de todo ocupante, dominador. Tentam conversar com a gente, o silêncio é a resposta. Algum deles tenta falar em inglês. Não respondemos. O comentário do preconceito e do sentimento da superioridade: “nem sabem falar inglês, são ignorantes mesmo…”
Lembranças da resistência ao nazismo. Judeus, comunistas de tantas nacionalidades, ciganos, anarquistas perseguidos, discriminados, assassinados. No fundo, o mesmo sentimento de superioridade, a mesma arrogância, prepotência e intolerância.
E a resistência dos ocupados surge sempre surpreendendo a tudo e a todos. Com mobilizações e enfrentamentos ou com os gestos aparentemente frágeis dos que dizem não, em momentos onde a correlação de força parece estar toda favorável aos ocupantes. Estávamos parados em frente a uma banquinha onde um palestino desenhava, artesanalmente, símbolos de sua terra, sua cultura e sua luta em pequenas garrafas com areia colorida. A pedido de uma de nossas companheiras, filha de palestinos, que pela primeira vez visitava a sua terra, o artesão traçava com delicadeza as cores, sobrepondo as diversas tonalidades de areia. Movimentos finos, cuidado e atenção absolutos.
Chega mais um grupo grande de colonos e visitantes judeus. Param em frente à banca. Mais provocações, mais xingamentos, uma ruela (na verdade, um túnel), de não mais de 2,5m de largura. Tumulto, soldados sionistas e suas metralhadoras. Alguns jovens sionistas derrubam a banquinha um pouco mais à frente, espalhando pelo chão os colares, pulseiras e brincos que eram vendidos por outro palestino. O artesão continua o trabalho. Desenhando os traçados da hata, fios coloridos, impassível. Dizendo no seu trabalho e silêncio: não saio, resisto. A resistência vive no gesto impassível e nós, neste momento, pudemos ajudar a pegar os colares e brincos espalhados pelo chão. A solidariedade internacional é parte decisiva da luta pela Palestina para os palestinos. Para alguns, parecem pequenos gestos de impotência. Para quem sabe o que quer, é a preparação de novas intifadas.
Dirceu Travesso é dirigente da CSP-Conlutas (Central Sindical Popular/Coordenação Nacional de Lutas)
* palavra usada pelos sionistas para designar os postos avançados que espalha pelo território palestino, sob forte proteção militar, com o objetivo de ocupar mais e mais espaços, isolando e expulsando o povo palestino.