Talvez tão antiga quanto a música, seja a sua retratação pela pintura, escultura, literatura, bordado, tatuagem, modelagem em barro e cerâmica e muitas outras formas de expressão artística. É comum que as artes façam referência umas às outras, elas compartilham o que poderíamos chamar de UNIDADE DO PROBLEMA: como expressar uma ideia, uma visão de mundo, de vontade e existência no meio disponível — desenho, pintura, escultura, música, marcas no corpo, dança etc. —tocando diretamente um sentido humano?
Parece que cada tipo de arte prioriza um sentido de recepção, para a construção do sentido que damos à obra.
Um pintor vai priorizar a visão; o músico, a audição; o bordado ou cerâmica o toque; a escultura a visão, o ponto de vista e o desejo do toque; a tatuagem a sensação de territorialidade corporal. E assim por diante. Mas nenhuma é pura e as misturas de sensações e sentidos ocorrem de formas mais variadas entre as linguagens artísticas.
É muito comum vermos em quadros ou esculturas em tridimensionais ou virtuais (animações e renderizações) a retratação da música: no desenho de um instrumento, aparição de um mito que faça referência à sua história, imagem ou referência a uma tradição ou dança, desenhos animados.
Da escultura grega ao cinema, sempre houve também a concorrência das linguagens: na sonoridade do templo ou espaço onde se expõe, na intensidade da luz e incidência nas superfícies, na sensação associada a um toque musical, remetida por um gesto, cheiro ou associada a um recurso da linguagem.
DAS IMAGENS ÀS PARTITURAS
As artes visuais têm uma vasta galeria de obras, que retratam as PARTITURAS. E expressão também como reguladoras e mnemônicas no processo criativo e pedagógico.
Nas figuras 1 e 3 vemos alguns desenhos feitos para descrição de tons, modos e a teorização musical que utilizam o diagrama e a própria mão para relacionar, como auxílio à memória (ferramenta mnemônica) as regulações da escrita do período. Note-se que a diagramação na Figura 1 é feita com texto recorrendo e mantendo o desenho não invadido pelas letras, técnica muito utilizada no design contemporâneo, mas que se tornou mais presente depois das estruturas digitais de montagem.
O tratado mnemônico na Figura 3 (gestos para ajudar a decorar os modos) eram ensinados para a mão esquerda, pois podia-se olhar para ela, e espelhar a do mestre, harmonizando o movimento pela sua reflexão, deixando a mão direita livre para a escrita.
Na Figura 2 vemos a exatidão da partitura. A pintura do Mestre de St. Lucy, Queen of Heaven, mostra anjinhos portando partituras e cantando. As partituras são tão tem retratadas que podem ser lidas perfeitamente com a proximidade da tela. Foi transcrita e remontada por mosteiros a partir da imagem. A gravação e a imagem em alta resolução podem ser acessadas no link disponibilizado nos SERVIÇOS.
Já no quadro de Mattisse, Figura 4, vemos uma partitura apenas esboçada em diagrama, mas que reconhecemos, e de forma muito direta, que se trata de uma partitura. Mesmo apenas esboçadas, são reconhecíveis como partituras, recorrem mais à forma imagética da partitura do que à sua estrutura de escrita literal, ao contrário da Queen of Heaven, citada acima
As partituras também sempre foram realizadas com muito esmero e cuidado, na caligrafia, no aspecto visual. As partituras eram raras, caras, grandes e muito bem trabalhadas. As folhas pré-impressas de pentagramas por si só constituída um ícone de potência e criatividade, tinham que ser encomendadas pelos autores às gráficas e tinham o peso de representar, através de alguns símbolos ali encadeados, uma performance de dezenas de músicos.
Na Figura 5 vemos o original da primeira página do Guarani, ópera de Carlos Gomes, que soa como obra de arte, mas colocada ali diante de nós, também o original revela, além da partitura em si mesmo, uma espécie de “livro de autor”, pois não tem como desvencilhar-se de suas próprias anotações e comentários, ou esboços cujos posicionamentos das notas criam um aspecto visual consistente e além de portar o sentido das notas, são imagens bonitas de se observar, pela cor, textura, dissolução dos ícones, linhas e marcas do tempo.
DAS PARTITURAS ÀS IMAGENS
Quando o ruído entra em cena na música a relação com partitura exige outros tipos de descrições, chamadas de paisagens sonoras, trazendo o desafio de também trabalhar com gradientes, cores, espessuras e preenchimento. A música eletrônica já lidava bem com a escrita gráfica, ou tabelas.
O resultado é uma safra incrível de obras variadas, criativas, sonoras, visuais, muito bem resolvidas na sonoridade, esquemática e graficamente e podendo arremessar o sentido da própria música para um campo expandido, já que oferece outros meios de suporte, produção ou valor.
Os timbres, simultaneidades, acontecimentos repetidos são recursos que se sobrepõe às tonalidades, armações de clave, soluções harmônicas bem feitas.
As partituras passam a incorporar esses recursos expressivos e as soluções das notações gráficas são simples e eficientes e baseiam-se em quatro elementos: ponto, linha, plano e movimento.
Na Figura 6, vemos a partitura esférica de H. J. Koellreutter, escrita sobre estrutura de acrílico transparente com ícones como retas, pontos, quadrados, triângulos e outras figuras geométricas em toda a sua cobertura.
Koellreutter utilizou essas ideias simples para teorizar o que chamou de planimetria, ou seja, a representação musical em um plano desenhado (um gráfico) que contivesse objetos diversos, desde um fragmento de pentagrama a formas geométricas, tudo isso precedido por um conjunto de regras na produção de sentido e expressão.
Em seu Ácronon (figura 6) dá uma nova dimensão a essa ideia, pois agora o plano é ESFÉRICO. A obra torna-se “transparente e reflexiva”, ele dizia, “como deve ser a humanidade”.
Isso dá à partitura uma leitura de si e de seu reverso, pois o globo é rotacionado em determinados momentos se vê a parede do fundo pela transparência. A paisagem sonora é constituída por relações entre eventos, sonoros e não sonoros.
Esse pensamento remete diretamente ao pintor Paul Klee (1879-1940), que, em sua pintura, fornece as analogias para o movimento musical: um ponto continuado se transforma em uma linha, linhas em movimento ou se fechando constituem planos que, transladados, dão a origem aos sólidos.
Assim funcionaria a transposição gráfica da música: um ponto é uma nota ou evento sonoro; uma linha, ponto continuado no tempo, uma linha melódica; uma mistura de eventos interligados ou superpostos, constituindo os planos, relação de simultaneidade dos sons, acordes ou clusters; o movimento dá o contorno final do objeto sonoro.
As próprias partituras adquirem uma certa independência, como obras visuais, tanto o tridimensional de Ácronon quanto o designer gráfico de Artikulation.
Na Figura 8, o ensaio gráfico foi feito a posteriori, depois que a música havia sido composta e performada (em equipamento eletroacústico). O compositor, György Ligeti (1923-2006), encomendou ao artista gráfico Rainer Wehinger, que transcrevesse e recriasse graficamente a obra para ampliar a possibilidade de sua execução por vozes ou instrumentos. A partitura se realiza também como sua produção domo designer gráfico e mostra uma iconografia que revela traços do designer das formas modernas, tributadas da escola da Bauhaus (1919-1933) e depois tornadas recorrentes no designer gráfico, como os padrões, recortes, colagens e camadas (superposições).
Na Figura 07, Villa Lobos traça um esquema do perfil geográfico que vê de sua janela e de fotografias, e traça diagramas de eventos sonoros através da interpretação da imagem. O processo lhe foi sugerido por Edgar Verese (1883-1965), que procedeu do mesmo modo.
As Figuras 09 e 10 nos trazem de volta à figuração da música, evocando o ritmo, temporalidade e gesto: o primeiro (Figura 09) de Warhol retrata o diagrama de um aprendizado de tango, com esquemas do tipo “aprenda sozinho”.
Kuitca (Figura 10) reconstrói o Tango de Warhol mantendo sua estrutura como diagrama, mas literalmente rasgando as tintas com os passos por pés descalços que escorregam sobre o chão, dando ritmo e dramaticidade. Apesar de mostrar o movimento a partir do gesto que figura como “espontâneo”, o artista se valeu de auxiliares para o deslocamento pintura, um processo lento e detalhista, mas que parecerá a quem observa, fortuito e improvisado.
Assim se dá uma translação através das linguagens e traduzir por sentidos diferentes: imagens são utilizadas para lembrar das partituras, são utilizadas também como partitura e também as partituras acabam por ser obras visuais e podem ser expostas.
Um tipo de translinguagem que deu, e continua dando, muitos frutos durante a história da arte.
SERVIÇO
AGRADECIMENTO ESPECIAL ao meu orientador EDSON LEITE, Professor Titular do MAC e do PGEHA/USP (PPG Interunidades em Estética e História da Arte), pelas preciosas, precisas e profundas lições de iconografia musical.
Figura 1 – DESENHO medieval com fim de fixar a memória de tons relacionando com o diagrama da própria, gravura. Geral; Imagem
Figura 2 – MASTER OF THE ST. LUCY LEGEND (1480-1510). Mary, Queen of Heaven . óleo sobre painel, Washington: National Gallery of Art, 199 x 162 cm. 1485 a 1500. No site pode ver a imagem em alta resolução e também a transcrição e gravação por um coro.
Figura 3 – LUCE ANTONII JUNTE, “Cantorinus ad Eorum Instructionem”, 1540. Desenho de mãos como partituras e ativadoras de memória.
Figura 4 – HENRI MATISSE (1869-1954). Mulher ao piano (1924). OST.
Figura 5 – O GUARANI. Partitura de CARLOS GOMES (1836-1896), Arquivo Nacional. Carlos Gomes começou sua composição entre 1867 e 1868, mas ela só foi finalizada mais tarde e teve sua estréia no dia 19 de março de 1870, no Teatro Alla Scalla de Milão, na Itália.
Figura 6 – KOELLREUTTER, Hans-Joachim (1915-2005). Ácronon. Brasil, 1978.
Figura 7 – HEITORVILLA LOBOS (1887-1959). Desenho em Papel de seda, s.d., MVL-HVL. Escala Milimetrada 13- FE 833. Documento do acervo do Museu Villa-Lobos (MVL).
FIG 8 – ARTIKULATION. LIGETI, György; WEHINGER, Rainer. Artikulation. Mainz: B. Schott’s Sohne, 1970
Figura 9 – ANNA PIDGORNA (1985). The first six days of Soundstreams, Toronto, 2013. Apresentação; Imagem
Figura 10 – TANGO. WARHOL, Andy. Dance Diagram – Tango . Signed Andy Warhol in black pen, Zürich: POB 150389. From a VIP Book, 23 x 22 cm. 1986.
Figura 11 – TANGO. KUITCA, Guillermo (1961). Naked Tango (After Warhol), 2004. Fotogravura e pintura. 128.3 x 105.4 cm. Zürich: Daros-Latinamerica Collection. Photocredit: Peter Schälchli, Zürich. © 2007.