Vou apresentar números que são principalmente brasileiros, e de São Paulo, mas, pelo que conhecemos, refletem o que está acontecendo na América Latina. Talvez pudéssemos incluir nessas tendências a África do Sul e alguns países asiáticos, mas os dados serão mais específicos.
Entre 1995 e 1999, tivemos a produção de 4,4 milhões de moradias no Brasil. Destas, 700 mil foram feitas dentro do mercado. O que significa isso? Significa que 700 mil moradias em 4,4 milhões tiveram a planta aprovada na prefeitura, fazendo parte, portanto, do cadastro da prefeitura, tendo o projeto feito por um engenheiro ou por um arquiteto. A maioria delas contou com financiamento. O restante, com uma pequena margem de erro, foi feito fora da lei.
Esse dado tem muitas conseqüências. A primeira delas é que mostra tratar-se de uma sociedade em que uma série de necessidades fundamentais sociais não são resolvidas pelo mercado. Em segundo lugar, nas grandes cidades, isso significa um amontoado de casas em algum lugar que podemos chamar de não-cidade. E muitas vezes não-casas.
Vamos extrair algumas ilações dessa evidência. Vamos falar um pouco da metrópole na periferia do capitalismo. Temos as ilhas de primeiro mundo, que são submetidas aos códigos de obra, às leis de zoneamento, de parcelamento do solo, toda a abundante regulação que temos. E temos um mercado residencial restrito, do qual está excluída a maioria da população. A maioria da produção das nossas moradias, portanto das nossas cidades, tem uma estrutura produtiva pré-moderna. Trata-se de territórios sem leis. Não são apenas territórios sem leis urbanísticas. São territórios sem leis para a produção da cidade, mas para a resolução de conflitos, para as relações de trabalho, são verdadeiras bombas sócio-ecológicas. Não há regras para as relações sociais ou para a ocupação do espaço. Quantas pessoas, nas nossas sociedades latino-americanas, estariam nessa situação? Estamos perto de dizer que é a maioria.
Temos também, como conseqüência dessa sociedade sem mercado, efeitos na representação ideológica das cidades. Os planos diretores são feitos para a cidade do mercado, para a cidade oficial. E a cidade oficial é a representação da cidade na universidade, na sociedade e na mídia. Por isso temos territórios absolutamente esquecidos. Temos uma flexibilidade radical na periferia das nossas cidades, para nenhum neoliberal botar defeito. E temos uma fantástica agressão ambiental. A que tem acesso a população excluída do mercado imobiliário formal, privado e legal? Às áreas que o mercado não quer. Quais são elas? As áreas de proteção ambiental. Essas áreas, protegidas por lei e desprezadas pelo mercado imobiliário, vão ser priorizadas pela população pobre para loteamentos ilegais e para a invasão de terras. A invasão de terras, no nosso país, é uma absoluta regra nas cidades, ao contrário do campo, quando uma invasão promove tanta celeuma.
Vamos verificar o percentual da população de algumas metrópoles brasileiras que mora em favelas, definindo as favelas como terras ocupadas ilegalmente. Ou seja, não há direito nenhum da população lá permanecer: pode até estar numa casa de alvenaria de boa qualidade, mas não tem qualquer direito perante a lei. No Rio de Janeiro, mais ou menos 20%; Fortaleza, 28%; Belo Horizonte, 20%; Salvador, 33%; Porto Alegre, mais ou menos 20%; Recife, 40%; e São Paulo, seguramente, acima de 20%. Se temos 2 milhões de pessoas morando em favelas na cidade de São Paulo, portanto em áreas invadidas, não podemos dizer que a invasão de terras não é admitida em nosso país – pelo menos nas cidades. Por esses dados, vê-se que quase 80% da população moradora de favela está situada em nove regiões metropolitanas.
Não nos cabe desenvolver quais são os condicionantes históricos de uma desigualdade que eu digo que é estrutural. Existe, nas nossas sociedades latino-americanas, o patrimonialismo. São sociedades marcadas pelo patrimonialismo, pelo poder político e econômico dos proprietários. Durante um período, proprietários de escravos, depois proprietários de latifúndios, e hoje dividindo aí com outros setores. O patrimonialismo levou alguns à cidadania. Alguns têm direitos, estão sob a proteção da lei. Outros, não. Outra característica da nossa sociedade é a universalização da relação de favor. Todo mundo deve alguma coisa a um político, a uma autoridade. Então, temos um clientelismo, um caudilhismo, um neocoronelismo, ou seja, figuras que comandam Estados brasileiros que têm importância nacional em alianças com os yuppies de Harvard…
A industrialização com baixos salários leva a que a reprodução da força de trabalho não se faça totalmente no mercado. Um operário da Volkswagen pode morar na favela, pois o salário que ele ganha não é suficiente para uma habitação digna. Há muita crítica, por parte dos setores conservadores, aos eletrônicos na favela. Mas é muito mais fácil, no nosso país, comprar um equipamento eletrônico e plugá-lo simplesmente na corrente elétrica, do que construir um banheiro, que precisa de um eletricista, de um encanador, de um pedreiro, de uma ligação na rede de esgoto. Estamos numa sociedade que tem acesso ao bem eletrônico de última geração e não tem acesso a um banheiro e a uma moradia digna. Não garantimos o mínimo necessário, e as cidades mostram isso com muita clareza e radicalidade. Temos a aplicação arbitrária da lei, e muita distância entre discurso e prática. Temos instrumentos urbanísticos suficientes para fazer uma reforma urbana. Temos planos abundantes. O que não temos é uma correlação de forças para implantá-los. O desenvolvimento urbano nos países latino-americanos, como destacaram Florestan Fernandes, Celso Furtado e Caio Prado, é a modernização com a reprodução do atraso. As cidades são modernas? São. São industrializadas? São. Mas carregam uma herança de arcaísmo, herança que pesa cada vez mais, se formos ver o crescimento das periferias nas nossas cidades.
O tema que nos traz ao Fórum é o pacto da reestruturação produtiva nas metrópoles. Eu gostaria de falar da fragilização dos Estados nacionais, com a decantada autonomia e aumento de importância dos poderes locais. A importância da guerra fiscal, e as ideologias que vêm de Barcelona, no caso da América Latina, e têm nome muito preciso: a cidade como ator. A cidade onde as divergências internas se acabaram, a cidade corporativa que deve lutar para ser competitiva. Quais são as conseqüências dessa sociedade que não se baseia no mercado? Enchentes, desmoronamentos, poluição dos recursos hídricos. Estamos nos acostumando com uma coisa que considero extraordinária e escandalosa. Os nossos rios são canais de esgoto, todos eles, os lagos, as praias. Por que? Porque menos de 40% do esgoto é coletado, e menos de 8% tratado. O destino dos esgotos da nossa população urbana é a rede hídrica. Aí, vêm as conseqüências. Epidemias que não tínhamos desde o começo do século estão de volta, há a questão da violência, que era desconhecida pelas nossas sociedades nessa escala até a década de 80.
Um dado bem interessante é a pesquisa do Metrô de São Paulo, que vem sendo feita há três décadas e comprova a tese do professor Milton Santos, sobre o exílio na periferia. O gráfico mostra as viagens a pé por faixas de renda. Nas rendas mais baixas se fazem muito mais viagens a pé. Quase 50% das viagens feitas na cidade de São Paulo em um dia, são feitas a pé pela população que ganha menor renda. O que isso significa? É uma população que mora em bairros muito pobres e pouco equipados. Essa é a tese do exílio. A população pobre e das favelas sai pouco de seus bairros porque não conta com um transporte público eficaz e barato. Então, há uma guetização e uma condição de exílio.
No que se refere ao crescimento de favelas, infelizmente, não dá para a gente se fiar nos números do IBGE. A prefeitura de Porto Alegre mostrou isso com um levantamento muito bom de favelas, que mostra que o IBGE mede menos de 50% dos moradores. Em São Paulo, idem. Nós não conhecemos as nossas cidades, não temos números precisos para fazermos planos. E precisamos conhecê-las e tomar consciência sobre elas. Vemos o crescimento de favelas na cidade de São Paulo, cidade que tradicionalmente não era uma cidade onde as favelas constituíam uma população muito significativa – como Recife, Salvador, Rio de Janeiro. Vemos que a população passou de 1% para 20% no ano 2000. São 2 milhões de pessoas, só na cidade de São Paulo, morando em favelas.
Passando para o que fazer, gostaria de fazer uma crítica, digamos, amistosa, à agenda Habitat 2. Evidentemente, as grandes conferências da ONU são muito importantes, conscientizam, de alguma forma, a população mundial sobre a gravidade dos problemas sociais, mas nós precisamos tomar cuidado muito com a cooptação que se faz das nossas ONGs, dos nossos movimentos, das nossas prefeituras e dos nossos países para esse discurso que também é global. Pergunto qual é o lugar da esquerda nessas grandes agendas, pois fiquei muito espantada, em Istambul, com as bandeiras da esquerda que todos os governos brandiam – inclusive, a delegada da Turquia, país que massacra os curdos, impedindo-os de participarem da conferência Habitat 2. O que se viu lá? Elogio à participação social, elogio à descentralização e, pasmem, elogio à autogestão da população sobre serviços, produção de moradia etc. Elogio às parcerias e às ONGs, e muita crítica à incompetência dos governos e ao desperdício e à corrupção dos governos. Elogios à autonomia do poder local. Resumindo, acho que essa agenda nos leva a fundamentar algumas das colocações do pensamento único. A cidade competitiva, a cidade empresa, a cidade pátria, a cidade mercadoria, a cidade que muitos consultores internacionais, como os catalães, apresentam com um discurso de esquerda e vendem com um projeto de direita… Boa parte da esquerda latino-americana, e mesmo de governos, acaba entrando nessa cantilena.
Para terminar, e para não dizer que sou muito radical e sectária, vamos analisar uma proposta da Habitat 2 que considero bem interessante: o Plano de Ação, que o nosso governo não fez, para levar a Istambul. O Plano de Ação pode ser uma ótima proposta para as nossas cidades. Por que? Porque a nossa tradição, em planejamento urbano, é o planejamento normativo, é um projeto de lei. Extremamente detalhado e complexo para a população entender, e que muitas vezes fica nas prateleiras, pois os investimentos não seguem os planos diretores… Em São Paulo, tivemos um exemplo fantástico de obras que quebraram a cidade, endividaram a cidade, e que contrariam o plano diretor. O plano diretor vai para um lado e o desenvolvimento da cidade vai para o outro. Porque, mais do que o plano, os investimentos definem o desenvolvimento da cidade. A proposta é de que haja uma lei normativa universal, ou seja, se aplique à cidade toda. Segundo: que oriente os investimentos. Terceiro: que oriente a gestão, para que não haja distância entre plano e gestão, entre discurso e prática, entre lei e ação. E, finalmente, a fiscalização, que vai ser um problema sério. Como é que vamos fazer cumprir as leis de proteção ambiental nas cidades? Se fizéssemos cumprir as leis ambientais nas cidades, teríamos uma guerra civil. Teríamos que desalojar 2 milhões de pessoas na cidade de São Paulo. Tirar de uma bacia de manancial 600 mil pessoas que ali moram ilegalmente. Como é que vamos cumprir a lei? Só ampliando o mercado e fazendo políticas sociais.
E, finalmente, o controle público. Precisamos enfrentar, na América Latina, a questão fundiária urbana. A questão fundiária urbana é um nó, tanto quanto a questão rural. Se até hoje não causou a comoção que causa no campo é porque a invasão de terras nas cidades tem sido permitida – desde que se trate de terras não valorizadas pelo mercado. Temos que enfrentar, através da correlação de forças, não só governos, ONGs, parlamentares, todos nós, a questão fundiária urbana, ampliando os impostos sobre a propriedade imobiliária, que na América Latina inteira é um mito, e raramente se aplica. E finalmente compreender que nós podemos dar um outro caminho e achar um outro modelo para o desenvolvimento das nossas cidades.
Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final da expositora.