Teriam os animais nervos para não sentirem? Músculos para não se moverem? Estômagos para não terem fome? Sentimentos para não sentirem dor?
O ponto em comum entre cientistas, artistas, racistas, sexistas e fascistas é o fato de serem todos humanos, mas também animais. Outro ponto em comum pode ser a perversão e a crueldade com que, alguns deles, tratam a alteridade animal, humana e não humana.
Gostamos de pensar que a diferença é que os racistas, sexistas e fascistas são o que são: sua própria existência execrável é a pressuposição de sua perversidade. Enquanto os cientistas e artistas não o são por definição: mas… podem ser por opção?
Mas porque fariam, e de fato alguns fazem, essa opção?
O deleite estético de alguns e a construção do conhecimento para outros, justificam que, ao praticar e constranger à dor, os cientistas e artistas estejam acima dos seus pares perversos, classificados sob uma aura autodenominada de “necessidade científica” ou “liberdade criativa”?
Os animais sempre serviram de inspiração para a criação artística, em praticamente toda a história da arte, desde as pinturas rupestres. No entanto, nas últimas décadas, alguns artistas apresentaram obras chocantes, não apenas pelo conteúdo e forma de suas instalações, mas por um crescente e cada vez mais presunçoso desprezo pela integridade física e moral das vidas animais. A fórmula parece ter dado certo, pois garante notoriedade instantânea, sem que seja preciso, em alguns casos, técnica ou habilidade propriamente artística.
Um dos casos mais emblemáticos disso é o do “artista” Guillermo Vargas, conhecido como Habacuc (1975), que passou do anonimato à celebridade mundial, com forte presença na mídia, a partir de uma “instalação perecível”, sua “Experiência nº 1” (2007), um espetáculo de horror produzido com um cachorro recolhido da rua e que foi amarrado a um dos cantos da Galeria Códice, na Nicarágua e deixado para morrer de fome, diante do público, sem nenhum tratamento de suas pulgas ou sarna (fig. 1). Na parede imediatamente à sua frente estava escrito, com ração para cachorro, a frase de efeito “eres lo que lees”, dando um ar de arte conceitual à perversão do artista. O realizador, orgulhosamente, garante em suas entrevistas que o cachorro morreu mesmo, e se defende acusando os próprios visitantes, que nada fizeram para tirar o cachorro dali ou o alimentar.
Malgrado a chuva de protestos que recebeu mundialmente, no ano seguinte foi designado como representante de seu país na bienal de Honduras, para repetir a experiência. Havia ganhado sua notoriedade e reconhecimento, ainda que o reconhecimento próprio aos carrascos e torturadores.
Outro criativo perverso, Marco Evaristti (1963), realiza uma exposição de “Peixes Dourados em Liquidificador” (2000), apresentando peixinhos vivos nadando dentro dos eletrodomésticos. As placas “conceituais” da exposição orientavam que os visitantes ligassem os aparelhos livremente, para vivenciar a experiência estética de “misturar os peixes” (fig. 2).
Já o artista Jan Fabre (1958), preferia expor cachorros mortos e empalhados, pendurados por cordas, para deleite dos visitantes do Museu Hermitage, na Rússia (2016, fig. 3). Em sua defesa, dizia que não matava os animais, apenas recolhia corpos e os “transformava em arte”.
Alguns outros gostam de parecer mais bem humorados e descolados. Por exemplo Wim Delvoye (1965), que tatuava porcos, para expô-los e vende-los como “obras vivas” por algumas centenas de milhares de dólares (2003-2010, fig. 4). Ora, deve pensar o criativo e cruel artista, porque não marcar os porquinhos, à revelia de sua vontade ou sofrimento que não pactuaram: assim como humanos pagam bem por suas tatuagens, pagam ainda melhor por porcos tatuados como souvenires.
Nuno Ramos, um dos mais importantes artistas contemporâneos brasileiros, expôs na 29ª Bienal a sua “Bandeira Branca” (2010, fig. 5), instalação que contava com o encarceramento e exibição de urubus, não apenas contrariando leis e bom senso, mas o respeito a animais tão importantes no ciclo biológico do planeta. Quando militantes da VEDDAS (ver nas referências) invadiram e pixaram a obra, e quando o artista foi publicamente cobrado por entidades, ONGs e pessoas menos perversas que ele, refugiou-se no principal chororô que parece ser comum a essa espécie de humanos particularmente cruéis: “estão mutilando a compreensão de minha obra”.
Até mesmo Cildo Meireles (1948), nosso tão amado inventor do “Quem Matou Herzog” (1975), reavivado como eco no “Quem Mandou Matar Marielle?” (1918), com toda a boa intenção de denunciar as barbáries da ditadura militar, não praticou muita empatia e compaixão pelo sofrimento, ao queimar galinhas vivas, encharcadas de gasolina e construir o seu “Totem – Monumento ao Preso Político” (1970, fig. 6).
Animais são imolados ainda vivos, para manter o “frescor vital” de suas peles, para servir ao requintado e artístico mercado da moda (ver referências). Outros são decepados para a modelagem de sapatos requintados para que as madames possam se calçar de patas de cavalos, mas com grifes e saltos altos adornados, como nos designes de “sapatos mortos” de Iris Schieferstein (1966, fig. 7).
E, claro, não poderíamos deixar de citar também nosso recém falecido artista Nelson Leirner (1932-2020), também uma das principais expressões da arte contemporânea brasileira, e o seu “O Porco” (1966, fig. 8), exibido não apenas empalhado, mas também magistralmente enjaulado em post mortem, como a dizer que eternamente terá a vida atrofiada, na exuberante Pinacoteca de São Paulo.
Será que é realmente muito importante e relevante para a arte queimar aves vivas, bater peixes em liquidificador, matar cachorros de fome, expor animais empalhados, pendurados ou engaiolados, esfolar animais vivos para a mórbida beleza da moda dos casacos?
Isso tudo é importante para a arte ou para travestir de arte uma recorrência de perversidade que encanta alguns modernos e contemporâneos — entre eles alguns dos mais medíocres? Nas galerias, bienais ou em suas salas de estar?
Talvez, assim como devemos nos reinventar para fazer frente à violência, ignorância e virulência do fascismo, da misoginia e do racismo que parecem acesos em nossa hiper moderna modernidade, também precisemos na mesma medida de uma estética que considere o próprio corpo e o outro corpo — humanos e não humanos — como de uma mesma carne do mundo e que, diante de tantos retratos cotidianos de crueldade, possa nos prover de quadros de compaixão.
SERVIÇO
ARTE CRUEL – NESTA QUINTA, DIA 27 DE AGOSTO, 20h. Mesa de conversa e aula aberta, aprofundando os temas deste artigo, com o professor ANTONIO HERCI e as participações dos Professores ARTUR MATUCK, ANTONIO RODRIGUES e SANDRO CAJÉ. Atividade realizada pelo Diversitas/USP, parte das atividades do curso de ALTERCIÊNCIA. https://meet.google.com/rty-yrby-okp
Imolação de animais vivos para indústria de modas. In: Terráqueos (2005), documentário narrado por Joaquin Phoenix (1974), Escrito, Produzido e Dirigido por Shaun Monson, Nation Earth Organization. Animais imolados vivos para retirada de pele no Canadá.
AS OBRAS
FIGURA 1 – Exposición nº 1 (2007). Guillermo Vargas Habacuc (1975). Cachorro capturado e amarrado em exposição diante de texto escrito com ração “És o que vês”. Galeria Códice, Nicarágua.
FIGURA 2 – Goldfish in blenders (2000). Marco Evaristti (1963). Peixes dourados vivos em liquidificador.
FIGURA 3 – Knight of Despair / Warrior of Beauty (2016). Jan Fabre (1958). Cachorros empalhados e pendurados por ganchos.
FIGURA 4 – Art Farm, live tatooed pigs (2003-2010). Wim Delvoye (1965). Porcos tatuados.
FIGURA 5 – Bandeira Branca (2010). Nuno Ramos (1960). Obra pixada durante a 29ª Bienal de São Paulo por Manifestantes da VEDDAS – Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos Animais e Sociedade. Urubus mantidos vivos em cativeiro durante exposição com caixas acústicas reproduzindo músicas brasileiras (“Bandeira branca”, “Carcará” e “Acalanto).
FIGURA 6 – Tiradentes – Totem – Monumento ao Preso Político (1970). Cildo Meireles (1948). estaca sobre um quadrilátero marcado por um pano branco, com termômetro clínico no topo e galinhas vivas amarradas sobre as quais se ateou fogo. Parque Municipal de Belo Horizonte.
FIGURA 7 – Bones&weapon (2013). Iris Schieferstein (1966). Material: horse hooves and hide, bones and gun barrel. Museu de sapatos de Leipzig.
FIGURA 8 – O porco (1966). Nelson Leirner (1932-2020). Porco empalhado. Pinacoteca de São Paulo.