Para ter um exemplo de como proceder com a tristemente célebre base naval estadunidense em Cuba, o Presidente Barack Obama deveria fixar sua atenção em um velho edifício da armada argentina em Buenos Aires.
Quando Ana María Careaga tinha 16 anos e estava grávida, operadores das Forças Armadas argentinas a seqüestraram na rua, a levaram a um centro clandestino de detenção e a torturaram durante quatro meses. Corria o ano 1977 e as Forças Armadas acabavam de dar um golpe de Estado na Argentina. Trinta mil pessoas foram “desaparecidas” entre 1976 e 1983 pela brutal Junta Militar na Argentina. A Junta gozava do apoio entusiasta do então Secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, a quem se atribui haver dado autorização para a criação de uma rede de terrorismo de Estado integrada por vários governos militares da região e denominada Plano Condor. Esta rede do terror de Estado assassinou a 60.000 pessoas em toda a América do Sul.
Décadas mais tarde, a Argentina saiu da ditadura e da recente depressão e colapso da economia, vindo a ser considerada como uma das novas democracias progressistas da América Latina. Ana María Careaga, que agora tem 50 anos, é a diretora do Instituto Espaço para a Memória, localizado dentro da velha Escola de Mecânica da Armada, em plena Buenos Aires, onde 5.000 pessoas foram detidas, torturadas e, em sua maioria, vindo a ser depois assassinadas. O objetivo do instituto é preservar a memória deste capítulo nefasto da história argentina.
Ana temia perder a seu bebê. Entre os horrores que teve que suportar, contam-se repetidos choques elétricos na vagina – através de um cabo de metal condutor de eletricidade. Enquanto estava detida, sua mãe, Esther Careaga, uniu-se a outras mães de jovens que tinham sido desaparecidos. Reuniam-se na Praça de Maio, levando as fotografias de seus filhos desaparecidos e marchavam em círculo para conscientizar, protestar e conseguir apoio internacional contra a violência e o terrorismo de Estado argentino.
Após Ana haver sido libertada, recebendo asilo político na Suíça, Esther Careaga não deixou de marchar ao redor da Praça de Maio. Estive em Buenos Aires nesta semana e perguntei-lhe a Ana por que: “Quando eu saí em liberdade, minha mamãe voltou à Praça de Maio e as mães lhe disseram o que você está fazendo aqui se recuperou a sua filha?’, e ela disse ’eu vou seguir até que apareçam todos, porque todos os desaparecidos são meus filhos’. Isso mostrava que o acionar não era uma busca individual, senão uma busca coletiva”.
Esther Careaga, outras duas Mães da Praça de Maio e duas freiras francesas foram desaparecidas, torturadas e assassinadas entre os dias 8 e 10 de dezembro de 1977. Foram levadas à velha Escola de Mecânica da Armada (ESMA), onde com macabra sofisticação, o governo militar argentino levava adiante o que se conhece como “vôos da morte”: depois de torturar suas vítimas, as drogavam e, enquanto estavam ainda com vida, empilhavam seus corpos em frangalhos em aviões. Os aviões sobrevoavam as águas costeiras e lançavam os corpos das vítimas lá de cima, na altitude de vôo da aeronave. Tempos depois, um regime de ventos e um câmbio de maré pouco freqüente arrastaram o corpo de Esther Careaga e de outras pessoas à orla, vindo a ser finalmente identificados.
Do lugar onde sua mãe foi vista com vida por última vez no centro de tortura, Ana me mostrou um livro que contém um memorando diplomático dos Estados Unidos, obtido em virtude da Lei de Liberdade de Informação. O documento demonstra que a embaixada dos Estados Unidos na Argentina sabia que sua mãe tinha sido assassinada e que seu corpo tinha sido recuperado, coisa que Ana e seu pai não souberam durante décadas.
Na atualidade, os sobreviventes dos campos de detenção e o governo argentino estão julgando, – e na maioria dos casos condenando – a muitos dos repressores e torturadores (Kissinger ainda não foi julgado, e se diz que toma muitas precauções antes de viajar ao exterior para evitar ser preso). Ana assiste a dois julgamentos ao mesmo tempo: nas segundas-feiras, terças-feiras e quartas-feiras assiste ao julgamento daqueles que torturaram e assassinaram a sua mãe. O resto da semana, na mesma sala de audiências, assiste ao julgamento de seus próprios torturadores. Ela é um depoimento vivo da busca paciente e disciplinada por justiça.
O que nos leva de volta a Guantánamo. Enquanto os Estados Unidos passa sermões em Cuba a respeito de sua falta de democracia e mantém o bloqueio econômico contra o país há décadas, seria certo alguém pensar que os EUA deveriam dar um exemplo de democracia na parte da Ilha que está baixo seu controle. No entanto, a maior potência militar do planeta instalou ali um campo de concentração que tem recebido um enérgico repúdio em nível internacional, pois se considera esta prisão como um território kafkeano acima do alcance de qualquer lei internacional e do seu próprio país.
O novo Relator Especial da ONU sobre a Tortura está exortando aos Estados Unidos a investigar, pesquisar e condenar a tortura cometida durante o governo de George W. Bush. Na primeira entrevista que brindou desde que assumiu o cargo como novo Relator Especial da ONU sobre a Tortura, Juan Ernesto Méndez disse: “Os Estados Unidos tem o dever de pesquisar todos os atos de tortura. Lamentavelmente não temos visto muitos sinais de que assumam esta responsabilidade”. Méndez tem planos de visitar Guantánamo. Ele mesmo foi vítima de tortura durante a ditadura argentina.
Há ainda ao redor de 180 homens detidos na Baía de Guantánamo, com cada vez menos perspectivas de ser julgados em algum dia por um tribunal real. Durante anos foram submetidos a interrogatórios e isolamento prolongado, o que se considera tortura tanto de fato, como em termos legais. O Presidente Obama havia prometido fechar a prisão de Guantánamo. Porém, é pouco provável que o Congresso financie agora o fechamento de Guantánamo e o translado dos prisioneiros, o qual deixa ao presidente encadeado a Guantánamo, condenando também aos prisioneiros ali à detenção e desespero por tempo indeterminado, e aprofundando a indignação com a que muitos no mundo olham a Estados Unidos.
Ana María Careaga é uma sobrevivente da tortura que trabalha no mesmo lugar em que sua mãe foi torturada e onde passou suas últimas horas. Seu conselho ao Presidente Obama é simples: “Fechem Guantánamo”.
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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
© 2010 Amy Goodman
Texto traduzido da versão em castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha; originalmente publicado em português em Estratégia & Análise. É livre a reprodução de conteúdo desde que citando a fonte.
Amy Goodman é a âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro “Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos”, editado por Le Monde Diplomatique Cono Sur.