[103 anos atrás, Rosa Luxemburgo foi morta a tiro e o seu corpo atirou-se ao Canal Landwehr de Berlim. No entanto, ela não pôde ser apagada da história, pois a sua vida e obra são extremamente relevantes na nossa busca de um mundo melhor. Reimprimimos este artigo para prestar homenagem ao seu legado que continua a inspirar milhões ainda hoje – CADTM]
No seu livro A Acumulação do Capital [1], publicado em 1913, Rosa Luxemburgo [2] dedicou um capítulo inteiro à questão dos empréstimos internacionais [3] para mostrar como as grandes potências capitalistas da época utilizavam os créditos concedidos por seus banqueiros aos países da periferia para exercer o domínio econômico, militar e político. O seu foco principal foi analisar o endividamento dos novos Estados independentes da América Latina após as guerras de independência de 1820, bem como o endividamento do Egito e da Turquia durante o século XIX, sem esquecer a China.
Ela escreve seu trabalho durante um período de expansão internacional do sistema capitalista, tanto em termos de crescimento econômico como de expansão geográfica. Nessa altura, na social-democracia de que fazia parte (o Partido Social Democrata Alemão e o Partido Social Democrata da Polônia e da Lituânia – territórios partilhados entre o Império Alemão e o Império Russo), um número significativo de líderes socialistas e teóricos apoiavam a expansão colonial. Este foi particularmente o caso na Alemanha, França, Grã-Bretanha e Bélgica. Todas estas potências tinham desenvolvido os seus impérios coloniais em África, principalmente no final do século XIX e início do século XX. Rosa Luxemburgo se opunha totalmente a esta orientação e denunciava a pilhagem e destruição colonial das estruturas tradicionais (muitas vezes comunitárias) das sociedades pré-capitalistas através da expansão do capitalismo.
Rosa Luxemburgo e a dívida como instrumento do imperialismo
16 de Janeiro por Eric Toussaint
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[103 anos atrás, Rosa Luxemburgo foi morta a tiro e o seu corpo atirou-se ao Canal Landwehr de Berlim. No entanto, ela não pôde ser apagada da história, pois a sua vida e obra são extremamente relevantes na nossa busca de um mundo melhor. Reimprimimos este artigo para prestar homenagem ao seu legado que continua a inspirar milhões ainda hoje – CADTM]
No seu livro A Acumulação do Capital [1], publicado em 1913, Rosa Luxemburgo [2] dedicou um capítulo inteiro à questão dos empréstimos internacionais [3] para mostrar como as grandes potências capitalistas da época utilizavam os créditos concedidos por seus banqueiros aos países da periferia para exercer o domínio econômico, militar e político. O seu foco principal foi analisar o endividamento dos novos Estados independentes da América Latina após as guerras de independência de 1820, bem como o endividamento do Egito e da Turquia durante o século XIX, sem esquecer a China.
Ela escreve seu trabalho durante um período de expansão internacional do sistema capitalista, tanto em termos de crescimento econômico como de expansão geográfica. Nessa altura, na social-democracia de que fazia parte (o Partido Social Democrata Alemão e o Partido Social Democrata da Polônia e da Lituânia – territórios partilhados entre o Império Alemão e o Império Russo), um número significativo de líderes socialistas e teóricos apoiavam a expansão colonial. Este foi particularmente o caso na Alemanha, França, Grã-Bretanha e Bélgica. Todas estas potências tinham desenvolvido os seus impérios coloniais em África, principalmente no final do século XIX e início do século XX. Rosa Luxemburgo se opunha totalmente a esta orientação e denunciava a pilhagem e destruição colonial das estruturas tradicionais (muitas vezes comunitárias) das sociedades pré-capitalistas através da expansão do capitalismo.
Rosa Luxemburgo manifestava a sua oposição a estes mesmos líderes socialistas quando afirmavam que esta fase expansionista de forte crescimento do capitalismo demonstrava que o capitalismo tinha ultrapassado suas crises periódicas, a última das quais tinha ocorrido no início da década de 1890. Rosa Luxemburgo denunciava esta visão, que dava uma falsa interpretação do funcionamento do sistema capitalista. Rosa se opunha ainda mais veementemente porque esta visão de uma parte influente da liderança social-democrata serviu de base e justificação para uma atitude de crescente colaboração com os governos capitalistas da época [4].
Ao escrever A Acumulação do Capital, Rosa Luxemburgo pretendia construir uma argumentação substancial para se opor as orientações pró-colonialistas e colaboracionistas de classe dentro da social-democracia que ela vinha combatendo desde o final da década de 1890. Ela também perseguia outro objetivo, que teve origem em 1906-1907, quando lecionou um curso de economia marxista na escola de quadros do SPD, o Partido Social Democrata da Alemanha, em Berlim. De fato, naquela oportunidade, em preparação para suas palestras, ela havia voltado a ler O Capital e tinha chegado à conclusão de que havia um erro na demonstração de Karl Marx sobre o esquema de reprodução [em escala] alargada* do capital [5]. Foi em particular para encontrar uma solução para este problema que ela fez um enorme esforço de análise da evolução do capitalismo durante o século XIX. Deve-se ressaltar que Marx, em O Capital, desenvolve sua demonstração teórica assumindo que a sociedade capitalista tivesse atingido um estágio em que somente relações capitalistas existiriam na sociedade. Ele analisa o capitalismo no seu estado puro.
Rosa Luxemburgo parte da observação, feita até por Marx numa série de escritos como o Grundrisse [6] (que ela não tinha tido oportunidade de ler porque esta parte da obra de Marx ainda não tinha sido publicada) ou no capítulo 31 do livro 1 do Capital [7], segundo o qual o capitalismo, na sua expansão, destrói as estruturas tradicionais das sociedades não capitalistas que são conquistadas durante a fase colonial.
Quanto ao papel do saque colonial, vale a pena citar o Marx do Capital: «A descoberta das regiões ricas em ouro ou prata da América, a redução a escravidão dos nativos, o seu soterramento nas minas ou o seu extermínio, os inícios de conquista e de saque nas Índias Orientais, a transformação da África numa espécie de tapada comercial para caçar peles negras, são processos idílicos de acumulação primitiva que sinalizam a era capitalista no seu amanhecer».
É também neste capítulo que Karl Marx produz uma fórmula que indica a ligação dialética entre os oprimidos das metrópoles e os das colônias: «O pedestal que sustenta a escravatura dissimulada dos assalariados na Europa é a escravatura inconfessa no Novo Mundo». Ele termina este capítulo dizendo que «o capital faz isto suando sangue e lama de todos os poros».
Marx descreve a destruição das manufaturas tradicionais de têxteis na Índia durante a expansão colonial britânica. Ele também analisa a destruição das relações não capitalistas que existiam na Europa antes da expansão massiva do trabalho assalariado. Mas quando ele chega a destacar as leis de funcionamento do sistema capitalista, ele assume que o capitalismo domina totalmente todas as relações de produção e, portanto, já destruiu completamente ou/e absorveu os setores pré-capitalistas [8].
O que é muito enriquecedor na abordagem de Rosa Luxemburgo é a sua enorme capacidade de pensamento crítico e a sua vontade de confrontar a teoria com a prática. Ela é inspirada por Karl Marx, expressando um acordo fundamental com ele, mas isso não a impede de questionar, com razão ou sem ela, algumas das suas conclusões.
Um ponto em que Rosa Luxemburgo concorda completamente com Karl Marx é a questão das relações desiguais entre as potências capitalistas e outros países onde as relações pré-capitalistas de produção ainda estão largamente presentes. Estes países estão sujeitos aos primeiros, que os exploram para continuar a sua expansão. Rosa Luxemburgo, como Marx, mostra em particular que as potências capitalistas encontram uma saída para os seus produtos manufaturados, impondo-os às empresas pré-capitalistas, nomeadamente através da assinatura de tratados de livre comércio.
Os países latino-americanos que conquistaram sua independência na década de 1820 contra o império espanhol
Se tomarmos o exemplo dos países latino-americanos que conquistaram sua independência na década de 1820 ao império espanhol, vemos que eles importaram massivamente bens manufaturados, principalmente da Grã-Bretanha, potência da qual haviam contraído empréstimos internacionais para fazer essas compras. Os governos dos países latino-americanos que tomaram empréstimos dos banqueiros londrinos gastaram a maior parte do dinheiro emprestado no mercado britânico, comprando todo o tipo de bens (equipamentos militares que vão desde armas a uniformes, equipamentos para mineração e agricultura, e matérias-primas). Depois, para reembolsar seus empréstimos internacionais, os estados endividados recorreram a novos empréstimos que foram usados tanto para amortizar os empréstimos anteriores quanto para importar ainda mais produtos manufaturados da Grã-Bretanha ou de outras potências credoras [9].
Rosa Luxemburgo afirma em seu livro de 1913 que os empréstimos «são o caminho mais seguro para os velhos países capitalistas manterem os países jovens sob tutela, controlarem suas finanças e exercerem pressão sobre suas políticas externa, aduaneira e comercial» [10].
Como ilustração da penetração de produtos manufaturados dos velhos países capitalistas europeus como a Grã-Bretanha nos novos países independentes da América Latina, podemos citar George Canning, um dos principais políticos britânicos dos anos 1820 [11], que escreveu em 1824: «O negócio está feito: a América hispânica é livre; e se não conduzimos nossos negócios com infelicidade, ela é inglesa». Treze anos depois, o cônsul inglês em La Plata, Argentina, Woodbine Parish, podia escrever sobre um gaúcho da pampa argentina: «Peguem todas as peças do seu vestuário, examinem tudo ao seu redor e, exceto os artigos de couro, o que há que não seja inglês? Se sua esposa está usando uma saia, há noventa e nove em cem chances de que ela tenha sido feita em Manchester. O caldeirão ou panela em que ela cozinha, o prato de faiança em que ele come, sua faca, suas esporas, o freio do cavalo, o poncho que o cobre, tudo isso vem da Inglaterra» [12].
Para alcançar este resultado, a Grã-Bretanha não precisou de recorrer à conquista militar (muito embora, quando o considerou necessário, não hesitasse em usar a força, como foi o caso na Índia, no Egito ou na China). Utilizou duas armas econômicas muito eficazes: o crédito internacional e a imposição do abandono do protecionismo.
Rosa Luxemburgo insiste no papel dos empréstimos internacionais aos países coloniais ou aos Estados «independentes» (como as jovens repúblicas latino-americanas ou o Egito e a China) para financiar grandes obras de infraestrutura (construção de ferrovias, construção do Canal de Suez, …) ou compras de dispendiosos equipamentos militares no interesse das grandes potências imperialistas. Assim escreve: «O empréstimo internacional ligado à construção de ferrovias e ao aumento do armamento acompanha todas as fases da acumulação capitalista».
Ela também afirma que «As contradições da fase imperialista se manifestam mais claramente nas contradições do sistema de empréstimos internacionais».
Rosa Luxemburgo, como Marx tinha feito algumas décadas antes, insiste no papel do financiamento das ferrovias ao redor do planeta, especialmente nos países periféricos sujeitos à dominação econômica das potências imperialistas. Ela fala do frenesim dos empréstimos usados para construir as ferrovias: «Apesar de todas as crises periódicas, o capital europeu lucrou tanto com essa loucura que, por volta de 1875, a Bolsa de Londres foi tomada por uma febre de empréstimos ao estrangeiro. Entre 1870 e 1875, foram contraídos empréstimos em Londres no valor de 260 milhões de libras Sterling – o que levou imediatamente a um rápido crescimento na exportação de bens ingleses para países ultramarinos».
No final do século XIX, depois dos banqueiros de Londres, vieram os da Alemanha, França e Bélgica
Na esteira da Grã-Bretanha, os imperialismos alemão, francês e belga surgiram e começaram a emprestar maciçamente aos países da periferia.
Rosa Luxemburgo descreve esta evolução: «Durante vinte anos, houve um só fenômeno novo: os capitais alemães, franceses e belgas participaram ao lado do capital inglês dos investimentos estrangeiros, especialmente dos empréstimos. Entre a década de 1850 e o final da década de 1880, a construção ferroviária na Ásia Menor foi financiada pela capital inglesa. Então o capital alemão invadiu a Ásia Menor e começou a implementar o enorme projeto de construção da ferrovia da Anatólia e de Bagdá. Os investimentos de capital alemão na Turquia levaram a um aumento das exportações alemãs para aquele país. Em 1896, atingiram 28 milhões de marcos, em 1911, 113 milhões de marcos; em 1901, só para a Turquia asiática, atingiram 12 milhões e em 1911, 37 milhões de marcos».
Rosa Luxemburgo mostra que a expansão colonial e imperialista permite aos velhos países capitalistas europeus, como a Grã-Bretanha, França, Alemanha, Bélgica (podemos acrescentar Itália e Holanda), quando existe um excesso de capital, utilizar esse capital não utilizado para o emprestar ou investir nos países periféricos, que constituem então uma saída rentável. Ela escreve: «O capital ocioso não tinha possibilidade de acumulação em seu país de origem devido à falta de demanda por produtos adicionais. Mas no estrangeiro, onde a produção capitalista ainda não está desenvolvida, surgiu uma demanda adicional, voluntariamente ou pela força, em círculos não capitalistas». É que ao destruir a produção tradicional local de pequena escala, os bens manufaturados europeus tomam o lugar da produção doméstica pré-capitalista. Comunidades camponesas ou artesãos empobrecidos dos países africanos, asiáticos ou americanos são forçados a começar a comprar produtos europeus, por exemplo, têxteis britânicos, holandeses ou belgas. Os responsáveis por esta situação não são apenas os capitalistas europeus, mas também as classes dirigentes locais dos países periféricos que preferem especializar-se no comércio de importação-exportação em vez de investir nas indústrias manufatureiras locais (como mostrei em relação à América Latina no Sistema da Dívida nos capítulos 1 https://www.cadtm.org/Como-o-Sul-tem-pago-pelas-crises, 2 https://www.cadtm.org/La-deuda-y-el-libre-comercio-como e 3 https://www.cadtm.org/Mexico-demostro-que-es-posible . Eles preferem investir o capital que acumularam para extrair matérias-primas (por exemplo, mineração) ou cultivar algodão e vender esses produtos no seu estado bruto no mercado mundial, em vez de processá-los localmente. Eles preferem importar bens manufaturados da velha Europa em vez de investir em indústrias de processamento locais e produzir para o mercado interno.
Egito, vítima de empréstimos internacionais
No caso do Egito, que Marx não havia estudado em profundidade, Rosa Luxemburgo aponta o dedo para outro fenômeno. Para pagar a dívida externa contraída com banqueiros em Londres e Paris, o governo egípcio endividado está sujeitou o campesinato egípcio à exploração excessiva, seja forçando-o a trabalhar gratuitamente na construção do Canal de Suez, seja cobrando impostos que degradaram gravemente as condições de vida dos camponeses. Rosa Luxemburgo mostra assim como a exploração excessiva dos camponeses por métodos que não são puramente capitalistas (ou seja, não baseados em relações laborais assalariadas) beneficia a acumulação de capital.
Rosa Luxemburgo descreve o processo resumido acima. Ela explica que a força de trabalho egípcia «ainda era composta por camponeses que eram forçados a fazer mutirões, e o Estado assumiu o direito de dispor dela sem reservas. Os felás [= camponeses egípcios, nota de Rui Viana Pereira] já eram empregados à força pelos milhares na construção da barragem de Kalioub e do canal de Suez; agora estavam ocupados construindo diques e canais, e fazendo trabalhos de cultivo nas fazendas do vice-rei. O quediva (= o soberano egípcio, nota de Éric Toussaint) precisava agora para si dos 20.000 servos que tinha colocado à disposição da Companhia Suez, daí o primeiro conflito com a capital francesa. Uma decisão arbitral de Napoleão III concedeu à Compagnie de Suez uma indemnização de 67 milhões de marcos; o quediva aceitou esta decisão com tanto mais facilidade quanto podia extorquir a soma aos mesmos felás que foram objeto do conflito. Os trabalhos de canalização foram então iniciados. Um grande número de motores a vapor, bombas centrífugas e locomotivas foram encomendadas de Inglaterra e França. Centenas destes motores foram enviados da Inglaterra para Alexandria, depois transportados por navio sobre os canais e o Nilo, e depois por camelo no interior do país. Era necessário arados a vapor para trabalhar o solo, especialmente porque em 1864 uma epidemia tinha dizimado o gado. A maioria destas máquinas também veio de Inglaterra».
Rosa Luxemburgo descreve as numerosas compras de equipamento e de empresas inteiras feitas pelo soberano egípcio a capitalistas britânicos e franceses. Ela faz a pergunta: «Quem fornece o capital para estas empresas?» e responde: «Empréstimos internacionais». Todos estes equipamentos e empresas foram utilizados para exportar matérias-primas, principalmente agrícolas (algodão, cana de açúcar, índigo, etc.) e para completar a construção do Canal de Suez, a fim de promover o comércio mundial dominado pela Grã-Bretanha.
Rosa Luxemburgo descreve em detalhe a sucessão de empréstimos internacionais que arrastaram gradualmente o Egito e a sua população para um abismo sem fim. Ela mostra que as condições impostas pelos banqueiros impossibilitam o reembolso do capital porque é necessário pedir emprestado constantemente para pagar os juros. Deixemos a caneta para Rosa Luxemburgo, que enumera uma série impressionante de empréstimos concedidos em condições abusivas em benefício dos credores: «Em 1863, um ano antes da sua morte, Said Pasha [13] contraiu o primeiro empréstimo com um valor nominal de 68 milhões de marcos, mas que, após dedução das comissões, conta, etc., chegou a 50 milhões de marcos líquidos. Ele legou esta dívida a Ismail, assim como o Tratado de Suez, que impôs ao Egito uma contribuição de 340 milhões de marcos. Em 1864, Ismail contraiu um primeiro empréstimo com um valor nominal de 114 milhões a 7 % e um valor real de 97 milhões a 8,25 %. Este empréstimo foi gasto em um ano, 67 milhões foram utilizados para compensar a Suez Company (…). Em 1865, o Banco Anglo-Egípcio concedeu o primeiro “empréstimo Daira”, como era chamado. Os imóveis privados do quediva serviram de garantia para este empréstimo, que tinha um valor nominal de 68 milhões a 9 por cento e um valor real de 50 milhões a 12 por cento. Em 1866, Frühling e Göschen concederam um novo empréstimo com um valor nominal de 60 milhões e um valor real de 52 milhões; em 1867, o Ottoman Bank concedeu um empréstimo com um valor nominal de 40 milhões e um valor real de 34 milhões. A dívida pendente ascendia então a 600 milhões. Para consolidar parte dela, um empréstimo de 238 milhões a 4 % foi contraído junto ao Oppenheim e Neffen Bank, na realidade Ismail [14] recebeu apenas 162 milhões a 13,5 %. Esta soma permitiu organizar a grande celebração da inauguração do Canal de Suez, que foi celebrada diante de todas as personalidades do mundo das finanças (…). Uma prodigalidade insana foi exibida nesta ocasião; além disso, uma nova comissão de 20 milhões foi oferecida ao líder turco, o sultão. Em 1870, foi concedido um empréstimo pela Bischoffshein e Goldschmidt num valor nominal de 242 milhões a 7 %, e um valor real de 100 milhões a 13 %. Depois, em 1872 e 1873, Oppenheim concedeu dois empréstimos, um modesto de 80 milhões a 14 % e um muito grande de 640 milhões a 8 %; este último conseguiu reduzir a dívida vencida para metade, mas como foi utilizado para comprar de volta as letras de câmbio que estavam nas mãos dos banqueiros europeus, na verdade só trouxe 220 milhões.
Em 1874, um empréstimo de 1.000 milhões de marcos em troca de uma anuidade anual de 9 % foi novamente tentado, mas só trouxe 68 milhões. Os títulos egípcios estavam 54 % abaixo do seu valor facial. Nos treze anos após a morte de Said Pasha, a dívida pública tinha subido de 3.293.000 libras Sterling para 94.110.000 libras Sterling, ou cerca de 2 bilhões de marcos. A bancarrota estava batendo a porta».
Rosa Luxemburgo afirma, com razão, que esta série aparentemente absurda de empréstimos rendeu muito aos banqueiros: «À primeira vista, estas operações financeiras parecem o cúmulo do absurdo. Um empréstimo persegue o outro, os juros dos empréstimos antigos são cobertos por novos empréstimos. As enormes encomendas industriais feitas ao capital inglês e francês são pagas com dinheiro emprestado de capitais ingleses e franceses.
Mas na realidade, embora todos na Europa suspirem e lamentem a gestão sem sentido de Ismail, o capital europeu fez lucros sem precedentes no Egito – uma nova versão da parábola bíblica das vacas gordas, única na história mundial do capital. Acima de tudo, cada empréstimo foi uma operação usurária que rendia aos banqueiros europeus 1/5 e até 1/3 ou mais da soma supostamente emprestada.»
Depois mostra que é o povo egípcio, em particular a massa dos camponeses pobres, os felás, que pagam a dívida: «Estes lucros usurários, no entanto, tiveram que ser pagos de alguma forma. De onde tirar os recursos? O Egito devia entregá-los, e a fonte era o felá egípcio. Foi a economia camponesa que, no final das contas, pagou todos os elementos das grandiosas empreitadas capitalistas. Ela fornecia a terra, já que as chamadas propriedades do quediva, adquiridas às custas das aldeias através de pilhagens e chantagens, tinham assumido proporções imensas; ela foi a base dos planos para a canalização, das plantações de algodão e açúcar. A economia camponesa também fornecia mão de obra gratuita, e os camponeses tinham de suportar os seus próprios custos de manutenção durante todo o tempo da sua exploração. Os milagres técnicos criados por engenheiros europeus e máquinas europeias nas construções de canais, transportes, agricultura e indústria egípcios foram alcançados pelo trabalho forçado dos camponeses. Enormes massas de camponeses trabalhavam na barragem de Kalioub e no Canal de Suez, na construção de ferrovias e diques, nas plantações de algodão e nos engenhos de açúcar; foram explorados sem limites de acordo com as necessidades do momento e passavam de um trabalho para outro. Embora os limites técnicos da utilização do trabalho forçado para os fins do capital moderno fossem evidentes em cada momento, essa inadequação era compensada pelo domínio absoluto exercido sobre a mão de obra: a quantidade de força de trabalho, a duração da exploração, as condições de vida e de trabalho da mão de obra estavam inteiramente dependentes da boa vontade do capital.
Além disso, a economia camponesa forneceu não só terra e mão de obra, mas também dinheiro, através do sistema fiscal. Sob a influência da economia capitalista, os impostos extorquidos aos pequenos camponeses tornaram-se cada vez mais pesados. Os impostos fundiários estavam em constante aumento: no final da década de 1860, eram de 55 marcos por hectare, enquanto as grandes propriedades eram tributadas a apenas 18 marcos por hectare, e a família real não pagava impostos sobre as suas enormes propriedades. Além disso, havia impostos especiais, como por exemplo, os impostos para a manutenção dos canais, que serviam quase exclusivamente as propriedades do vice-rei, no valor de 2,50 marcos por hectare. O felá tinha que pagar uma taxa de 1,35 marcos por cada tamareira que possuía, e 75 pfennigs para a cabana onde vivia. Além disso, havia uma taxa pessoal de 6,50 marcos para cada indivíduo do sexo masculino com mais de dez anos de idade».
«Quanto mais a dívida ao capital europeu aumentava, mais dinheiro tinha de ser extorquido da economia camponesa. Em 1869, todos os impostos foram aumentados em 10 % e cobrados antecipadamente para o ano de 1870. Em 1870, o imposto sobre a propriedade foi aumentado em 10 marcos por hectare. As aldeias do Alto Egito começaram a despovoar, as cabanas foram demolidas e o solo foi deixado em pousio para evitar o pagamento de impostos. Em 1876, o imposto sobre as tamareiras foi aumentado em 50 pfennigs. Os homens saíram das aldeias para cortar as suas tamareiras, e tiveram de ser impedidos de o fazer com tiros. Diz-se que em 1879, 10.000 homens morreram de fome ao norte de Siut, porque não conseguiram o dinheiro para pagar o imposto sobre a irrigação dos seus campos e tinham matado o gado para evitar pagar o imposto».
Rosa Luxemburgo conclui esta parte escrevendo: «O felá já tinha sido sangrado até a última gota. O Estado egípcio tinha cumprido sua função de coletor de dinheiro ao serviço da capital europeu, ele não era mais necessário. O quediva Ismail (Pasha) foi dispensado. O capital podia agora liquidar as operações.»
Rosa Luxemburgo mostra como o capital britânico compra a preço de liquidação o que ainda pertence ao Estado e, uma vez alcançado este objetivo, como consegue que o governo britânico encontre um pretexto para invadir militarmente o Egito e estabelecer o seu domínio que, vale lembrar, durou até 1952.
Rosa Luxemburgo explica que «tudo o que se esperava era um pretexto para o golpe final: foi dado pela rebelião do exército egípcio, esfomeado pelo controlo financeiro europeu, enquanto os funcionários públicos europeus recebiam enormes salários, e por uma revolta, urdida do exterior, da população de Alexandria, que estava sendo sangrada. Em 1882, o exército inglês ocupou o Egito e nunca mais saiu de lá. A submissão do país foi o ápice das grandiosas operações do capital no Egito nos últimos vinte anos, e a última etapa da liquidação da economia camponesa egípcia pelo capital europeu. Percebemos aqui que a transação aparentemente absurda entre o capital emprestado pelos bancos europeus e o capital industrial europeu se baseava numa relação muito racional e saudável do ponto de vista da acumulação capitalista, embora as empresas egípcias tenham sido pagas pelo capital emprestado e os juros de um empréstimo tenham sido cobertos pelo capital do outro empréstimo. Se ignorarmos todos os níveis intermediários que mascaram a realidade, podemos reduzir esta relação ao facto de a economia egípcia ter sido engolida, em grande medida, pelo capital europeu. Enormes extensões de terra, mão de obra considerável e uma massa de produtos transferidos para o Estado sob a forma de impostos, acabaram por ser transformados em capital europeu e acumulados».
Como escrevi no Sistema da Dívida sobre o Egito, http://www.cadtm.org/A-divida-como-instrumento-de: «Foi preciso o derrube da monarquia egípcia em 1952 por jovens militares progressistas liderados por Gamel Abdel Nasser e a nacionalização do Canal de Suez em 26 de julho de 1956 para que o Egito tentasse novamente um desenvolvimento parcialmente autônomo por um período de cerca de 15 anos».
Conclusão: A análise de Rosa Luxemburgo sobre o papel dos empréstimos internacionais como mecanismo de exploração dos povos e como instrumento de submissão dos países periféricos aos interesses das potências capitalistas dominantes é de grande atualidade no século XXI. Fundamentalmente, os mecanismos que Rosa Luxemburgo pôs a nu continuam a funcionar hoje em dia sob formas que devem ser rigorosamente analisadas e combatidas.
Foi um convite para participar em Setembro de 2019 numa conferência em Moscovo sobre Rosa Luxemburgo que me deu a oportunidade de me debruçar de novo sobre sua obra e preparar o material que se encontra neste artigo. A conferência foi organizada por jovens professores universitários completamente independentes do Governo e teve o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
Tradução: Alain Geffrouais
Anexo: https://www.cadtm.org/local/cache-vignettes/L640xH406/arton18021-2ce5f.jpg?1593820087