Com o mote “tomar o céu por assalto”, a primeira atividade pública do I Congresso Latino-americano Cultura Viva Comunitária subiu até a cidade satélite El Alto com muita música, cor e alegria. Nas palavras de Ivan Nogales, coordenador do congresso, “vamos ressignificar o termo assalto, ao invés de tirar, vamos devolver à cidade, à população e à America Latina o direito do bem viver, da arte, do sonho e da alegria. Transitando pelas poéticas do sonho, da rebeldia, da morte, da memória e do corpo”.
Os assaltos poéticos que marcaram o primeiro dia do Congresso tiveram como ponto de partida El Alto, cidade satélite de La Paz. “El Alto é onde nasceu a Bolívia contemporânea e o Estado Plurinacional”, disse Ivan Nogales para pessoas de diversos países do continente – a Pátria Grande de Bolívar. Nogales é fundador da COMPA – Comunidade de Produtores em Artes, organização de El Alto em grande parte responsável pela realização do encontro.
Grupos de teatro, músicos, poetas, ativistas, dentre outros tipos de “artesãos da cultura” participaram do cortejo e da intervenção urbana coletiva que, por meio de diversos assaltos poéticos, fez o percurso de El Alto a La Paz. A escolha do percurso dialoga com o processo histórico no qual está contextualizada a cidade: “Inicialmente marcada pelo preconceito sobre a população indígena que a fundou, El Alto mostrou-se guerreira e escreveu sua própria história, transfigurando o corpo ferido, golpeado, cabisbaixo, em um lugar altivo, no qual hoje em dia a população pode sentir-se orgulhosa de suas tradições da cultura andina”, conta Nogales.
El Alto rebelde
A fotógrafa boliviana Andrea (“mas todos me conhecem como China”, falou ela, puxando os olhinhos com os dedos), em um ônibus repleto de participantes do evento que se dirigiam ao assalto poético – peruanos e alguns outros latino-americanos de penetra –, comparou El Alto com La Paz, onde vive. A capital boliviana está em meio a um buraco – é um vulcão extinto; já El Alto, como o próprio nome diz, está nas alturas, e tem uma privilegiada vista de La Paz. China acredita que isso contribui para definir o caráter das pessoas, que seriam mais expansivas na cidade satélite. Outra característica seria que os alteños (como são chamados os originários do local) têm orgulho da sua cidade e são conscientes de seu lugar no mundo – tanto que iniciativas culturais comunitárias são mais ativas em El Alto que na capital.
Mas isso parece ser algo recente. Nogales contou que até pouco tempo atrás os alteños tinham vergonha de sua condição, eram considerados vagabundos e índios sujos. As mudanças realizadas no país encontraram alento nessa cidade, que hoje vive uma atmosfera de luta – em meio a tantas desigualdades que precisam ser superadas. Trata-se de uma cidade violenta e carente de políticas públicas (premissa comum da violência). Contudo, a postura hoje não é de resignação, mas de dignidade e esperança, como exaltou Nogales: “Somos El Alto rebelde. El Alto de pé, nunca de joelhos.”
Tomar el cielo por assalto: a ocupação dos espaços públicos pelos agentes coletivos.
No primeiro assalto poético, diversos artistas e coletivos partiram da sede do COMPA Teatro Trono e tomaram a cidade satélite. Permeado pela ideia da Poética do Sonho, simbolicamente o trajeto teve início neste sonho materializado: a própria existência do teatro, de onde nasceu a Caravana pela Vida que culminou na realização do Congresso. Ao longo do trajeto, o cortejo encantou a população alteña com seus tambores, palhaços, danças e personagens, arrancando diversos sorrisos até a chegada ao Multifuncional de La Ceja.
Tendo como mote a Poética da Rebeldia, o segundo assalto deu-se então neste local, onde diversas barracas traziam para a população experiências comunitárias, entre elas a do Jornal Huellas (que significa “pegadas”, confira online www.huellasbolivia.com/). A iniciativa de comunicação local, inicialmente sob o título “Cultura en la Altura”, foi criada por um grupo de ativistas culturais com o objetivo de divulgar o cenário cultural da região. Mas, com o passar do tempo, perceberam que outras coisas precisavam ser ditas, pois a comunidade pedia que se abordassem assuntos que extrapolavam a esfera cultural. Rodolfo Apaza Cruz, hoje diretor do jornal, resolveu dedicar-se de vez ao jornalismo e convidou colegas de diferentes formações para montar uma equipe que tratasse de assuntos de interesse social. Huellas também conta com um espaço na televisão (canal 51) e, por acreditar que a comunicação não necessariamente precisa ser feita por jornalistas, o grupo pretende criar uma rádio comunitária feita por jovens da localidade.
O segundo assalto poético ainda contou com intervenções artísticas, malabares, exposição fotográfica e muita música. Dentre os grupos que passaram pelo palco, os rappers peruanos do Kilombo comandaram um freestyle e animaram os presentes com sua levada beatbox e seu conteúdo político. Francisco Villela, responsável pelos efeitos sonoros vocais que servem como base para o versador, disse que essa era a primeira vez dele na Bolívia e completou: “Esse encontro é muito importante para aproximar as ações culturais e artísticas espalhadas pela América Latina. É importante para entendermos nossa história como irmãos”. Passaram também pelo palco o grupo de blues, Re Blues, e o grupo de teatro peruano, Coletivo Imprologia.
Outra dupla destacou-se, pois muitos sabiam suas letras de cor. Perguntamos a um rapaz se eles eram bolivianos, “sim, daqui de El Alto, são muito bons, estão vendendo o disco deles ali”, respondeu animado. Comunidad Huayras, se chamam. Também estavam vendendo camisetas com temática revolucionária e latino-americana, além de sanduíches vegetarianos (podem ser encontrados no Facebook: Productora de comunicación alternativa – contra Infórma). Com letras rebeldes, cantam no rap o que por muito tempo foi abafado – talvez por isso a resposta seja tão imediata. De uma escada atrás do palco, moradores se apinhavam para ver o curioso evento que alterava a rotina da cidade. Mas ainda havia muito por vir.
Das narrativas, transcendências e incidências.
Lá do alto, a caravana pela Cultura Viva Comunitária foi descendo por infindáveis curvas que desafiam a inclinação dos montes do altiplano, colorindo a cidade e interagindo com a população. Havia batucadas de tantos países que ficava difícil identificar as nacionalidades de cada uma. Palhaços e intervencionistas arrancavam sorrisos até dos que ficaram presos no trânsito por culpa da marcha. Um grande amálgama latino-americano chegou a La Paz para mais uma assalto poético, ocupando o espaço público com arte, integração e consciência política.
O terceiro assalto poético, por sua vez, ocorreu no Cemitério Geral de la Paz, trazendo como pano de fundo a Poética da Morte. Se a reflexão sobre a morte nos causa mais estranhamento do que aquela sobre a vida, é porque estamos distantes do conhecimento da transcendência que os povos originários vivenciam. A memória de ações pontuais, que podem gerar produtos ou suprir demandas, não permanece depois desta experiência material. Permanece a narrativa que se desenvolve a partir de construções que não dependem apenas de nossa incidência individual no mundo e, sim, de uma navegação através do tempo que interlaça uma teia – não de meras ações, mas também de intenções e relações que permeiam a subjetividade deste ser coletivo que não existe senão fora de si.
A celebração da morte é uma afirmação de uma vida com significado e propósito. O 3º Assalto Poético da Cultura Viva Comunitária visitou o Cemitério Geral de La Paz, onde se encontram os avôs e avós do povo paseño, e também os mártires e libertadores que enfrentaram as ditaduras militares. Revolucionários, pobres, exploradores e amigos são e serão, ao fim da vida, caveiras como todos nós. É a memória dessas trajetórias, escrita após a morte, que constrói as ruínas que um dia servirão de base para um novo pensamento, uma nova relação entre os indivíduos, grupos, coletivos, redes, povos, nações e espécie – que são, no fim das contas, partes de um mesmo organismo planetário, solar e galático.
Nesse sentido, entretanto, há um claro movimento contrário à afirmação de cada modo de ser, que busca aprofundar relações de dominação ao negar a própria existência da expressão intrínseca de cada ser vivo: a cultura. A cultura é viva, autófaga e antropófaga, quer dizer, que se recria constantemente a partir de si e do coletivo. Dessa interferência, surgem construções mais amplas do que a individual, representando uma cultura viva comunitária, que expressa uma identidade para além do eu.
O resgate desta lógica perpassa uma disputa constante, na mesa do bar, no diálogo entre pais e filhos, mas também no trabalho, no posicionamento perante a sociedade, na produção acadêmica, na formulação e operação de políticas públicas e na circulação do conhecimento que o direito à comunicação permite. É preciso, portanto, lutar também pelo resgate de espaços a serem recriados, reciclados, remixados, reprogramados, para que voltem a cumprir um papel de transformação social.
Retomada dos espaços públicos
No quarto assalto poético, a ex-Estação Central de La Paz é tomada pelos muitos militantes, artistas e coletivos de cultura. Tendo como mote a Poética da Memória, a intenção é recuperar este antigo monumento coletivo, de grande importância para a cidade. A ocupação do edifício, abandonado há mais de uma década, vem sendo reivindicada por movimentos culturais locais para que se torne um centro cultural.
Para Ivan Nogáles a antiga Estação Central de La Paz é um espaço de memória coletiva, o qual é preciso honrar. A ocupação é emblemática porque, abandonada, pode receber uma nova carga de energia que permita contribuir na evolução, ou melhor, no reencontro com nós mesmos em um novo contexto. Durante anos ela fez circular diferentes pessoas, cada qual com sua visão do mundo. Por isso a reivindicação de que seja um centro cultural no coração de um estado plurinacional, em que as diferenças se complementam. Agora, é preciso resgatar o papel social da Estação, para regenerar a memória e construir as ruínas de seu belo futuro de fomento à cultura viva comunitária.
É reafirmada assim a importância da cultura como algo de concreto, que permita recuperá-la e cuidá-la. Segundo o representante do movimento Estación de las Culturas, “os espaços publicos, queremos abrí-los para o movimento dos criadores populares”. Os vários agentes latino-americanos da cultura viva comunitária somam-se assim a esse esforço, em mais uma ação simbólica em busca de uma transformação efetiva.
A reinvenção do mito
Após a passagem pela Estação, o cortejo, cada vez mais amplo, parte para a Praça de San Francisco, no centro de la Paz. Na chegada, o encontro das Caravanas com as mulheres do Ilu Obá de Min, Ponto de Cultura brasileiro que ali se apresentava, saudando os orixás.
A ocupação das caravanas se dá assim com grande emoção – o mito do reencontro Inkarri se torna realidade: 17 nacionalidades que compartilham do sentimento latinoamericano chegam à histórica praça de San Francisco, mostrando a forma que tem a Cultura Viva Comunitária de entender o espaço público: o que tomamos e transformamos, de baixo para cima.
Não é por acaso que o assalto da poética do corpo tenha ocorrido nessa mítica praça, espaço heróico onde se transformou o país através da história, tanto pelas pessoas que passaram por ela quanto pelas experiências vividas e manifestações realizadas. E nesse dia, é a Cultura Viva Comunitaria que demonstrou ser o ponto forte da transformação social, como disse Iván Nogales em suas primeiras palavras emocionadas, no inicio da abertura oficial do Congresso. Mostrou-se esperançoso ao ouvir do Ministro da Cultura, Pablo Groux, que o terceiro sábado de cada maio será declarado oficialmente o “Sábado da Cultura Viva Comunitária”. Este é mais um dado que se junta à sensação que compartilhamos de que este foi um marco e que daí, nasceu um mito.
Integração
Da Venezuela, Merwill Millán e María Gabriela Parra vislumbraram que esse mito que hoje marcamos é o legado histórico que deixamos para atrás há dois séculos: o da união. A razão de se aproximar deste corpo unido é sentir nossa família latino-americana, é viver o exercício soberano dessa grande pátria latino-americana: o sentimento de uma articulação forte dos países como partes interdependentes, do México à Patagônia.
As intervenções se mesclam com a música, porque o discurso hoje não se compreende senão por meio do festejo, da alegria e do sentir-se viver. O protesto lúdico é mais potente que as dinamites e isso é, sem dúvida, um momento histórico na gestão cultural na Bolivia. É assim que Fernando García, gestor cultural de Cochabamba, chega ao último assalto motivado e emocionado: motivado para potencializar a articulação entre todos, com regras claras e solicitações precisas ao poder público. Com uma legislação que permita que esta incrível força que se plasmou durante todo o dia possa capitalizar para uma transformação da sociedade. Porque é importante que existam os mecanismos necessários, como recordou Marcia Rollemberg, Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura do Brasil, a Pablo Groux: “faz falta uma lei que apoie a Cultura Viva Comunitária”.
E é que devemos poder transformar a vida sem grandes capitais, com a ilusão de um melhor futuro para todos. Porque contamos com nosso melhor capital, esse ao que Célio Turino, formulador dos Pontos de Cultura no Brasil e dinamizador da Cultura Viva Comunitaria, nos fez sentir: nossas vozes, silenciadas durante tantos anos.
As distintas personalidades que compartilharam o cenário se diluem entre os sons vindos de todo o continente. A voz de brasileiros, argentinos, costa riquenhos, bolivianos, peruanos, chilenos… falam a mesma língua com a que Beatriz Moreira, do Brasil, nos fala: esta é uma oportunidade única para todas as pessoas que hoje estão aqui, e para as que não estão, de compartilhar esperança e ilusões e, sobretudo, ações articuladas.
Esse texto é uma contribuição para a Comunicação Compartilhada do I Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária e foi produzido por Alexandre Silva (Ponto de Cultura Imagens do Povo), Daniel Cotillas (Martadero), Lil Freves (Martadero), Luciana Lima (pesquisadora e militante do Cultura Viva), Maitê Freitas (Pontão de Cultura do Instituto Pólis), Michele Torinelli (Coletivo Soylocoporti) e Phillipe Trindade (Soylocoporti). A iniciativa consiste no entendimento da comunicação como ação política e não apenas como canal de circulação de informações. Trata-se de um processo de interpretação da realidade desenvolvido colaborativamente em contraposição à lógica competitiva da mídia de massas. Para saber mais, acesse: www.congresoculturavivacomunitaria.org/