Se a Terra queima, a América Latina e o Caribe são como brasas: estão entre as regiões do planeta mais afetadas pelas mudanças climáticas. As prevenções regionais antirrisco sofrem de insuficiência crônica.
Apenas uma semana depois que o Grupo de Especialistas Internacionais (IPCC, em inglês) publicou seu relatório sobre a dramática situação global, na terceira terça-feira, 17 de agosto, o alarme soou com decibéis latino-americanos.
O raio-X continental do novo estudo da Organização Meteorológica Mundial (OMM), publicado em 17 de agosto, revela um diagnóstico sério.
2020 foi um dos três anos mais quentes -desde que as medições começaram- no México/América Central e no Caribe. E o segundo mais quente na América do Sul. As temperaturas ficaram em 1°C, 0,8°C e 0,6°C, respectivamente, acima da média das décadas de 1980-2010.
Desmatamento em larga escala
No sul da Amazônia e no Pantanal, onde confluem as águas de nove países sul-americanos e um décimo do carbono da Terra está concentrado, os incêndios explodiram exponencialmente como resultado da intensa seca que atingiu essa região. Seca que não é fenômeno natural, mas resultado do desmatamento em larga escala para gerar terras para a pecuária e culturas agroexportadoras. Foi a pior seca em 60 anos.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a Amazônia brasileira registrou 2.308 focos de incêndio em junho deste ano, seu pior número desde 2007. Superou em 2,6% os do ano passado, o que, segundo o relatório da OMM, já havia sido um recorde.
A redução da floresta amazônica em apenas um ano, aproximadamente, equivalente a uma área sete vezes maior que a cidade de Londres. Nesse ritmo, a Amazônia corre o grande risco de não poder mais desempenhar seu papel como pulmão do planeta. A perda de vegetação na selva poderia, a curto prazo, tornar-se uma fonte ainda maior e mais intensa de emissões de carbono. Hoje, a América Latina e o Caribe reúnem mais de 55% das florestas primárias do mundo, que armazenam cerca de 104 gigatoneladas de carbono. Entre 40% e 50% da biodiversidade mundial e um terço de todas as espécies botânicas são encontradas nessas regiões.
O estudo da OMM indica que a seca generalizada naquela região teve um impacto significativo nas vias navegáveis, no rendimento das culturas e na produção de alimentos, piorando assim a insegurança alimentar em muitas áreas. Esse fenômeno é visto, em particular, na região do Caribe, com uma vulnerabilidade muito alta. Vários de seus países compõem a lista de territórios com maior estresse hídrico do mundo, com menos de 1.000 m3 de recursos de água doce per capita. No centro da América do Sul, em 2020, os totais de precipitação se aproximaram a 40% dos valores normais. O período de sazonal de chuvas, em setembro de 2019 a maio de 2020, foi marcado por um déficit pluviométrico que piorou, particularmente, entre janeiro e março.
Na Argentina, 2020 foi um ano seco, com uma anomalia nacional estimada em -16,7% em relação à média de 1981-2010. Foi um dos piores anos desde 1961 e o mais seco desde 1995. Os totais de chuva abaixo do normal foram resultado da própria seca que afetou a região do Pantanal.
Esse aquecimento sistemático teve impacto nas geleiras andinas da Argentina e do Chile. De acordo com o estudo da OMM, a perda de massa vem aumentando desde 2010, em consonância com o aumento das temperaturas e da redução significativa das chuvas.
Cataclismos de caráter muito diferente, embora igualmente devastadores, os furacões Eta e Iota, com uma intensidade de 4, atingiram a América Central em rápida sucessão. Trajetórias igualmente destrutivas seguidas pela Nicarágua e por Honduras, acentuando assim os impactos cumulativos dessa região tão interconectada. Os danos estimados em ambas as nações e na Guatemala cobrem quase 1 milhão de hectares cultivados.
Os ecossistemas marítimos e costeiros, bem como as comunidades humanas que dependem deles, particularmente nos Estados insulares pequenos, estão hoje enfrentando ameaças crescentes derivadas do aquecimento e da acidificação dos oceanos, do aumento do nível da água e de uma maior intensidade e frequência das tempestades tropicais. Na região, 27% da população vive em áreas costeiras. E entre 6 e 8% vivem em áreas seriamente ameaçadas por possíveis inundações.
Com uma média de 3,6 milímetros de aumento anual nos últimos trinta anos, o nível do mar na região do Caribe superou a média global de 3,3 milímetros. O estudo lembra que o oceano absorve cerca de 23% das emissões antropogênicas anuais de CO2 presentes na atmosfera e, portanto, é um elemento essencial que contribui para mitigar os efeitos do aumento das emissões no clima da Terra. No entanto, o CO2 reage com a água, aumentando sua acidez. Esse processo, gradualmente crescente, afeta muitos organismos marinhos e ecossistemas e ameaça a segurança alimentar, colocando em risco a pesca e a aquicultura.
Dupla condenação: clima e dívida
O Relatório O Estado do Clima na América Latina e no Caribe, elaborado pela Organização Meteorológica Mundial (https://library.wmo.int/doc_num.php?explnum_id=10765), reúne as contribuições multidisciplinares de 40 especialistas. Suas conclusões são baseadas em uma metodologia padrão que avalia os aspectos físicos do sistema climático a partir de dados de 1.700 estações meteorológicas em toda a região.
Suas descobertas preliminares criam alarme e produzem calafrios. As medidas de adaptação -particularmente os sistemas de alerta precoce multirrisco- não estão suficientemente preparadas para lidar com cataclismos. O apoio dos governos, bem como da comunidade científica e tecnológica, seria essencial para reforçá-las e também para melhorar a coleta e o armazenamento de dados. Dessa forma, as informações sobre risco de desastres poderiam ser melhor integradas ao planejamento de desenvolvimento. O custo da prevenção não pode ser subestimado: é essencial um forte apoio financeiro para atingir esses objetivos.
A Organização Meteorológica Mundial (OMM) antecipa más notícias. As mudanças climáticas atingirão a América Latina, onde os recordes de furacões serão quebrados, haverá secas severas, o nível do mar continuará a subir e haverá mais incêndios. Tudo poderia piorar se a emissão de gases de efeito estufa não puder ser interrompida com urgência.
O futuro já está presente. As piores secas em 50 anos no sul da Amazônia e o número recorde de furacões e de inundações na América Central durante 2020, constituem o novo normal que aguarda a América Latina. O continente s projeta como uma das áreas onde os efeitos e os impactos das mudanças climáticas serão mais acentuados: ondas de calor, diminuição do rendimento das culturas, incêndios florestais, esgotamento dos recifes de corais e eventos extremos relacionados ao aumento do nível do mar.
Os especialistas são contundentes. Eles dizem que é questão de vida ou de morte colocar limites ao aquecimento global abaixo de 2 graus Celsius em uma região que já enfrenta assimetrias econômicas e sociais para seu desenvolvimento sustentável.
E alguns exemplos falam por si só: no Caribe, os desastres naturais triplicaram nos últimos 30 anos e as perdas econômicas associadas aumentaram cinco vezes. A destruição causada pelos furacões Irma e Maria, em 2017 produziu perdas equivalentes a 250% do Produto Interno Bruto (PIB) em países como Dominica (https://www.cepal.org/es).
Além disso, no campo financeiro internacional, entre os efeitos inesperados das mudanças climáticas está a atitude nefasta das agências de rating dedicadas a avaliar os riscos de investimento. Elas consideram que a vulnerabilidade climática é um critério para a redução da classificação de segurança e benefício. Segundo a CEPAL, isso tem consequências gravíssimas porque aumenta, injustamente, o custo da dívida soberana e o pagamento de juros para os países em desenvolvimento que são altamente vulneráveis às mudanças climáticas. Segundo a organização continental, isso agrava, por exemplo, as capacidades do Caribe, da Argentina e o Equador, que já têm um “fardo muito pesado devido aos altos níveis de dívida enraizada em choques externos agravados pelo impacto dos desastres e das fraquezas estruturais, sociais e econômicas”.
O protesto se consolida
A América Latina e o Caribe enfrentam um labirinto quase sem saída. Apesar de serem responsáveis por apenas 8,3% das emissões globais de gases de efeito estufa, eles pagam um dos preços mais altos para a deterioração climática global. E eles pagam por isso com sua vulnerabilidade diária, que inclui a fragilidade de seus sistemas de prevenção de riscos.
Complexa realidade planetária, onde a descrição factual do drama climático esconde, muitas vezes, os diferentes níveis de responsabilidade por continentes, regiões e países, bem como por setores de atividades e formas e lógicas de produção. É por isso que as vozes sociais ouvidas em todo o mundo estão se tornando cada vez mais poderosas, especialmente as vozes jovens, que não se contentam em ver a crise climática global e exigem que também falemos sobre a necessidade de justiça climática planetária.