O receio de que a América Latina, e o Brasil em particular, deteriorem suas relações com países árabes do Oriente Médio, em nome de interesses dos Estados Unidos e de Israel, aumentou este mês após um decreto do governo do Paraguai ter classificado, oficialmente, como terroristas, as organizações Hezbollah, do Líbano, e Hamas, da Palestina. Reforçando confusões comuns na grande mídia regional, o governo de Mario Abdo Benítez incluiu as duas organizações no mesmo pacote em que estão classificados de terrorismo o Estado Islâmico e a rede Al-Qaeda – estas consideradas ameaças globais.
Eleito no ano passado e alinhado ao pensamento do colega brasileiro, o atual presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, é filho do braço direito do ditador Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai entre 1954 e 1989. Associada a milhares de prisões arbitrárias, torturas e desaparecimentos, a memória do ditador foi enaltecida por Jair Bolsonaro em visita à fronteira com o país vizinho, em fevereiro deste ano.
O decreto paraguaio ocorre na sequência de posição semelhante adotada em julho pela vizinha Argentina, que congelou os ativos financeiros no Hesbollah no país. Os argumentos dos dois países para considerar as organizações árabes como ameaças envolvem uma área compartilhada com o Brasil: a tríplice fronteira, onde a presença de imigrantes libaneses e palestinos é alvo de incursões das inteligências israelense e estadunidense na região.
Os Estados Unidos acusam o Hezbollah de ter um braço armado na fronteira dos três países e de ter sido o agente de um atentado contra a embaixada israelense, em Buenos Aires, em 1992, e contra a Associação Mutual Israelense Argentina (Amia), dois anos depois, deixando 85 mortos e 300 feridos.
Com a proximidade da eleição presidencial na Argentina, e após pesquisas indicando que o presidente apoiado pelos EUA, Maurício Macri, deve perder o posto para a oposição, as cautelas diplomáticas em relação ao Líbano, de cujo governo o Hezbollah faz parte, foram deixadas de lado. A decisão argentina trouxe à lembrança do eleitorado um processo judicial que busca implicar a ex-presidenta e atual candidata a vice-presidente na chapa de oposição, Cristina Kirchner, nos atentados em Buenos Aires. Ela foi acusada de ter acobertado responsabilidades.
As pressões pela criminalização das organizações árabes ocorrem não apenas na América Latina. Em particular o Hezbollah já é classificado como terrorista por Arábia Saudita, Canadá, Egito, Emirados Árabes, Estados Unidos, Israel e Japão. E gestões nessa direção acontecem também internamente aos países da Europa. Nos últimos dias, um projeto de lei foi à votação no Parlamento alemão, pela inclusão do Hezbollah entre as organizações banidas, mas acabou rejeitado.
Tais pressões acompanham o aumento das tensões no Oriente Médio, envolvendo Israel e países vizinhos, e que pioraram nos últimos dias. A queda de dois drones atribuídos a Israel sobre o Líbano, no início da semana, foi considerada pelo governo libanês como uma “declaração de guerra”.
Israel é acusado de atacar alvos do Hezbollah na Síria – que atua no país em aliança com o regime de Bashar Al-Assad – e no Iraque, matando integrantes da organização, e de novo promove ataque ao Hamas, em Gaza, alegando retaliação ao disparo de foguetes contra seu território. A imprensa israelense alega que Hamas e Hezbollah estão juntos para cumprir as promessas feitas pelo líder do movimento libanês, Sayyed Hassan Nasrallah, na segunda-feira, de revide aos ataques israelenses.
Com as posições adotadas por Argentina e Paraguai no último mês, a América Latina se aproxima do conflito. A imprensa brasileira repercutiu a notícia sobre o decreto paraguaio e uma afirmação de Bolsonaro, respondendo a jornalistas, de que também poderá fazer o mesmo.
Tanto o presidente brasileiro, quando seu filho, Eduardo Bolsonaro – indicado pelo pai para uma vaga de embaixador nos Estados Unidos – são simpáticos à ideia. “Eu quero que vocês se explodam”, twitou ainda em abril o outro filho de Bolsonaro, Carlos, dirigindo-se ao Hamas.
“Eles são terroristas”, declarou Bolsonaro esta semana, comparando o Hezbollah ao brasileiro Movimento dos Sem Terra (MST) – que reagiu com uma carta pública.
Baseados principalmente em agências internacionais sobre o Oriente Médio, os veículos da mídia brasileira não mostraram grandes diferenças na cobertura sobre as posições dos países vizinhos. Mas variaram no tom. Enquanto alguns sites de jornais e TV reproduziram a informação de que o Paraguai “classificou” Hezbollah e Hamas como terroristas, outros – especialmente ligados a igrejas evangélicas pró-Israel – disseram que o governo “reconheceu” as organizações como tais.
Estratégica e diplomaticamente, não há razões para o Brasil formalizar uma posição de hostilidade no Oriente Médio, dado o volume de exportações, sobretudo de carne e frango, para os países árabes. Além disso, por convocação da ONU, o país chefia uma frota de segurança na fronteira do Líbano. Desde 2011, as Forças Armadas brasileiras estão no comando da Força-Tarefa Marítima (FTM) da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil), uma posição que se tornaria insustentável caso seguisse os exemplos argentino e paraguaio.
O país segue ainda o que diz a ONU, que não considera Hamas ou Hezbollah como terroristas, ao contrário do modo como classifica o Isis e a Al -Qaeda. E não existe amparo na legislação brasileira para criar uma lista própria nesse sentido.
Ocorre que o atual governo brasileiro tem se mostrado imprevisível na cena internacional, a exemplo das posições e declarações agressivas do atual presidente contra países que se manifestaram em defesa da Amazônia, ameaçada pelo aumento das queimadas. Junta-se a isso a manifesta subordinação do presidente Bolsonaro aos interesses norte-americanos, a ponto de ter beijado e batido continência para a bandeira dos EUA .
Diante disso, alguns veículos repercutiram a informação do site Bloomberg de que o governo de Bolsonaro teria voltado de fato a considerar a possibilidade de taxar os inimigos de Israel como terroristas, tendo tratado do assunto em conversas com representantes estadunidenses. Dada a imprevisibilidade do atual governo, ainda que contra os próprios interesses brasileiros, nenhuma aventura pode ser descartada.