Ao completar 33 anos, o 25 de Abril de 1974 atingiu já a plena maturidade e entrou, por direito próprio, nos anais da História: não apenas como o acontecimento maior do século XX português e uma das nossas datas mais significativas de sempre, ao encerrar o ciclo do império, mas também pelo seu alcance universal e precursor da queda de várias tiranias. É sempre exaltante recordar o poema inigualável de Sophia: “Esta é a madrugada que eu esperava – O dia inicial inteiro e limpo – Onde emergimos da noite e do silêncio – E livres habitamos a substância do tempo”.
Não tenho dúvidas de que, no final deste novo século, o 25 de Abril será evocado como um marco da nossa modernidade e a miserável ditadura de 48 anos que o precedeu como um triste intervalo entre o despertar republicano e os novos patamares de cidadania e justiça social. O fascismo, feroz ditadura monopolista, agrária e financeira, representou a tentativa desesperada de agrilhoar este nobre mas pobre povo aos lastros mais negativos da sua História: a Inquisição, o patrioteirismo e o chauvinismo colonial, sob o lema “orgulhosamente sós”.
Há quem tente explorar as lacunas da memória e a ausência de persistente pedagogia democrática para reabilitar a ditadura e o execrável ditador Salazar. É oportuno recordar, aqui e agora, o que era a vida em Portugal, há apenas 33 anos, em áreas diversificadas.
No trabalho, em primeiro lugar. Hoje conhecemos a precariedade, as deslocalizações, a exploração patronal, a corrupção, a vigarice das fugas ao fisco e à segurança social. No tempo de Salazar não havia salário mínimo nem subsídio de desemprego, a chamada previdência não ultrapassava níveis miseráveis e abrangia um número muito restrito de trabalhadores. Quem reclamasse melhor salário arriscava-se a ser denunciado como agitador pela rede de bufos que enxameava as empresas e, se fizesse greve, podia ser preso. Escrever ou falar da exploração capitalista era um acto subversivo, enquanto meia dúzia de vampiros “comiam tudo”, encobertos pelo véu da censura.
Nas escolas vigorava um regime semi-militarizado, tutelado pela Mocidade Portuguesa, baptizada pelos jovens com a bufa. Os níveis de analfabetismo andaram muitas décadas acima dos 50% e o ditador assumia que o povo não precisava de saber mais do que “ler, escrever e contar” – mais do que isso tornava-se perigoso.. O 5.º ano liceal (actual 9.º Ano) era um luxo inacessível à grande maioria e a Universidade foi convertida numa reserva das elites. A verdade é que, sobretudo a partir da década de 60, ela se tornou num dos maiores focos de contestação política ao regime.
Face à cultura, o principal instrumento do salazarismo foi o lápis azul, a censura que tanto cortava um artigo de jornal, como proibia uma peça de teatro ou colocava livros no índex. O regime teve os seus comissários políticos, como António Ferro, usando o SNI para corromper e chantagear parte da intelectualidade. Mas a esmagadora maioria dos criadores artísticos afirmaram-se apesar da e contra a censura, refinando o seu talento. O neo-realismo foi a expressão máxima mas não única desta resistência cultural diversificada que cantou, com Zeca Afonso, a aurora da Liberdade.
As autarquias locais, hoje consideradas como o primeiro pilar da vida democrática, são também e por isso mesmo, alvo da crítica e da contestação popular, algo tão natural como o acto de respirar. Há apenas 33 anos, as Câmara e Juntas de Freguesia eram pura e simplesmente nomeadas pelo governo. O mero recenseamento eleitoral obrigava a oposição a campanhas esforçadas que enchiam páginas de relatórios dos legionários e pides, encastelados nas Juntas de Freguesia. Os mesmos que, de camioneta, iam votar em dezenas de mesas, prodigalizando “chapeladas” eleitorais como o roubo da vitória a Humberto Delgado, em 1958. Em Abril 1974 estavam recenseados menos de 1 milhão de portugueses; um ano depois, quase 7 milhões (mais de 91%) elegeram a Constituinte!
Mas o fascismo foi, acima de tudo, um regime de morte: desde a mortalidade infantil – na qual passámos da cauda da Europa para números que hoje não nos envergonham – até aos assassinatos de Humberto Delgado, Catarina Eufémia e de milhares e milhares de vítimas anónimas. Mais de 10 mil soldados portugueses e um número incalculável de patriotas africanos, imolados na fogueira da guerra colonial, foram o último testemunho de um regime sepultado pela História.
É impossível comparar os horizontes de escravos e de homens livres e, assim, sempre insatisfeitos. Por isso, quando dizemos “25 de Abril Sempre!”, estamos apenas a abrir as portas ao futuro.
Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax – 24/04/2007