(Entrevista realizada e traduzida por Victor Tibau)
“Brasil no Mundo” conversou com Mongi Smaili sobre a situação na Tunísia atualmente. Smaili é doutor em economia, professor universitário, e atua como sindicalista e economista no Departamento de Estudos e de Documentação da União Geral dos Trabalhadores Tunisianos (UGTT), a principal central sindical do país e uma das mais importantes forças de oposição ao atual regime. Na entrevista, foi abordada a situação política, econômica e social da Tunísia, bem como questões mais amplas do desenrolar da Primavera Árabe.
Smaili aponta que a situação econômica “não cessa de se degradar”, bem como a questão da segurança, e que a Assembleia Constituinte não reflete o “novo mapa político da Tunísia”. Para ele, “é preciso que o governo tenha um roteiro claro, que fixe claramente a data das próximas eleições e se engaje a combater seriamente a escalada da violência”. Mongi também afirma que a atuação dos países ocidentais, desde o início da Primavera Árabe, tem se guiado por questões econômicas e geoestratégicas, mas defende que o Brasil poderia “reforçar a cooperação através da sociedade civil e dos sindicatos”. Confira, abaixo, a entrevista na íntegra:
Mongi Smaili: É importante lembrar, em primeiro lugar, que o regime de Ben Ali era uma ditadura sob a qual as liberdades eram confiscadas. A este fato, somava-se também um desequilíbrio regional marcante, combinado a uma impressiva taxa de pobreza, notadamente no interior do país (em comparação ao litoral). O levante popular de 17 de dezembro de 2010 a 14 de janeiro de 2011 pôs fim a este regime, e suas principais reivindicações eram: liberdade, dignidade e emprego. Em 23 de outubro de 2011, os tunisianos votaram livremente, pela primeira vez desde a independência nacional. Ennahdha, o partido islamista, chegou em primeiro, recebendo cerca de um milhão e meio de votos, ou seja, 20% da base eleitoral ou 33% do total dos votantes, pois a eleição teve uma taxa de participação de 60% da população. O Ennahdha governou com uma coalisão composta por dois partidos “laicos”, o Congresso para a República (CPR), muito próximo do Ennahdha, e o Fórum Democrático pelo Trabalho e pelas Liberdades (Ettakatol), de tendência socialdemocrata. Durante um ano, este governo não conseguiu colocar a Tunísia no rumo certo. A situação econômica continua frágil, as desigualdades sociais e regionais se agravaram, a classe média não cessa de empobrecer, a inflação vem aumentando. No âmbito da segurança, notadamente nas zonas fronteiriças, a situação se agravou. A isto, é preciso acrescentar a escalada da violência, sobretudo causada pelos islamitas radicais e pelas “ligas de proteção da revolução”, espécies de milícias sustentadas pelo Ennahdha. Tome-se como exemplo o ataque à Embaixada dos Estados Unidos, em 14 de setembro de 2012. Tudo isto põe em perigo a conquista do processo de transição democrática. As liberdades individuais e coletivas estão seriamente ameaçadas. Mesmo as conquistas das mulheres se encontram ameaçadas. As reuniões e manifestações dos partidos de oposição são comumente alvos de ataques orquestrados pelas ligas de proteção da revolução e suas milícias. Nem mesmo a UGTT se encontra a salvo. Suas sedes regionais são costumeiramente atacadas. O último ataque foi sofrido em 4 de dezembro de 2012, quando grupos das ligas de proteção da revolução se inflitraram no encontro de sindicalistas na praça Mohamed Ali pelo sexagésimo aniversário do líder fundador da UGTT, Farhat Hached. O Estado se enfraqueceu com essa escalada da violência, contra a qual a posição do governo é mole. E a violência cresceu ainda mais após o assassinato político daquele que personificava a oposição de esquerda: Chokri Belaïd.
O assassinato de Chokri Belaïd desencadeou uma série de manifestações que culminaram com a renúncia do primeiro-ministro, Hamadi Jebali. Qual é a situação atual? Para você, quais podem ser as saídas da crise?
O povo tunisiano demonstrou abertamente sua condenação com relação a este assassinato, o que se percebe pela multidão que acompanhou o enterro do mártir. Em seguida a este evento, a decisão do primeiro ministro, Hamadi Jebali, de formar um novo governo de tecnocratas, absorveu a raiva da rua. Todavia, esta decisão encontrou oposição no seio de seu próprio partido, Ennahdha, ao mesmo tempo em que uma significativa parcela da oposição a apoiou. Foi isto que levou Hamadi Jebali a renunciar e o Ennahdha a terminar por designar um novo chefe de governo, na pessoa de Ali Laarayedh, o atual ministro do interior. Não mudou muita coisa, portanto. Como as coisas vão evoluir? Ninguém pode dizer ainda, especialmente porque agora estamos lidando com um ministro cuja política de segurança falhou. Qual é a questão? Uma chance se apresentou ao país, mas o Ennahdha a abortou. Desta maneira, as coisas poderiam se acalmar se os ministérios de soberania, particularmente os Ministérios do Interior e da Justiça, fossem confiados a personalidades políticas independentes, com uma agenda clara, afastada das pressões partidárias. É preciso que este governo tenha um roteiro claro, que fixe claramente a data das próximas eleições e se engaje a combater seriamente a escalada da violência.
Qual é a relação entre a divisão política tradicional entre esquerda/direita e a divisão religiosa entre laicos/islamitas? Quais são suas propostas?
É importante esclarecer as coisas. A distinção esquerda/direita na Tunísia não deve ser considerada sob a mesma ótica ocidental. O Ennahdha é um partido religioso, de tendência liberal economicamente, e as pessoas que votaram neste partido não o fizeram com base em seu programa econômico, mas, sim, por suas orientações religiosas. O eleitorado do Ennahdha é composto majoritariamente por pessoas cujo nível educacional se situa entre o primário e o secundário. Esta é, justamente, a parcela mais modesta da população. A questão que se coloca, então, é saber por que estas pessoas não votaram na esquerda, cujos programas são mais inclinados às questões sociais e à defesa das camadas desfavorizadas. A dimensão religiosa visivelmente teve prioridade e distorceu a lógica. Este é o mesmo paradoxo dos países árabe-muçulmanos.
Após um ano no poder, o mapa político está sendo transformado. De acordo com as mais recentes pesquisas, nós estamos assistindo ao crescimento de Nidaa Tounès, um partido centrista que defende os valores do Islã, certamente, mas que é sensível à especificidade social tunisiana. Pode-se citar, igualmente, a coalizão de esquerda Al Jabha Echaabia, à qual pertencia Belaïd. Este é, talvez, um sinal que os tunisianos começaram a se desiludir com relação ao Ennahdha e a dar uma nova prioridade aos programas econômicos.
Qual é a sua opinião sobre a Assembleia Constituinte? Quais são as perspectivas para seu futuro? Você acredita que sua composição traduz eficazmente a divisão social e política da sociedade tunisiana?
A Assembleia Constituinte não reflete, no meu ponto de vista, a sociedade tunisiana de hoje. Como disse anteriormente, o mapa político mudou. Deste modo, eu estimo que a configuração atual da Constituinte não está mais em sintonia com a nova realidade.
Como você avalia a situação econômica e social tunisiana atualmente? Como os economistas percebem esta situação? O desemprego e a pobreza são realmente fatores de mobilização social?
A situação econômica atual não cessa de se degradar, apesar de os dados macroeconômicos mostrarem certas melhorias. O crescimento obtido está longe de ser suficiente para resolver o problema do desemprego. O setor informal continua a crescer, sobretudo nas regiões de fronteira, o que prejudica as empresas tunisianas e constitui um obstáculo ao aumento das receitas fiscais por parte do Estado. As disparidades regionais continuam a se acentuar, o que é manifesto repetidamente pelos movimentos sociais, que reclamam o direito ao desenvolvimento e ao emprego em suas regiões.
Todos estes elementos fazem com que a maioria dos economistas se inquiete com relação com o futuro da Tunísia. O clima dos negócios não cessa de se degradar. O atual governo não conseguiu transmitir mensagens tranquilizadoras, o que impede a decolagem do investimento, tanto doméstico quanto externo, particularmente nas regiões desfavorizadas, e agrava ainda mais o desemprego, notadamente de jovens com diplomas universitários. A degradação das avaliações concedidas pelas agências internacionais de rating é um complicador adicional. A transição democrática não terá sucesso a não ser que a economia vá bem. Uma das principais missões do governo é agir rapidamente para melhorar o clima dos negócios e restabelecer a confiança dos operadores econômicos.
Qual é o papel desempenhado pela UGTT na atual conjuntura política? Qual é a sua relação com o governo?
Além de sua função sindicalista de defesa dos direitos de seus afiliados, a UGTT sempre desempenhou um papel patriota. Farhat Hached [fundador da UGTT] não foi assassinado pelos franceses por razões sindicais, mas tão somente por suas posições contra o colonialismo. Em 16 de abril de 2012, consciente da sensibilidade do momento, a UGTT fez um chamado por um diálogo nacional para conter o agravamento da crise política e para tentar encontrar um consenso nacional de forma a superar a fase transitória. Dois partidos da coalizão no poder, Ennahdha e CPR, boicotaram esta iniciativa.
Isto não impediu a UGTT de assinar, em 14 de janeiro de 2013, um pacto social tripartite com o governo e o patronato, com o objetivo de assegurar certa estabilidade social através de um trabalho coordenado entre as três partes e que deve ser coroado pela institucionalização do diálogo social pela implementação do Conselho Nacional do Diálogo Social.
Como você enxerga o destino da Primavera Árabe, considerando o que se passa no Egito e na Síria?
A Primavera Árabe permitiu que os movimentos islamitas ascendessem ao poder. O processo de transição democrática corre o risco de fracassar, pois estes partidos põem em perigo as liberdades individuais e coletivas, em particular as liberdades das mulheres, e fazem isto em nome da religião. A escalada da violência e o crescimento das correntes obscurantistas ameaçam esta transição. A sociedade civil luta para preservar suas conquistas e para consolidar suas liberdades. O que ocorre atualmente no Egito não é, de modo algum, tranquilizador. O caso da Síria é muito mais complexo, uma vez que outros atores geoestratégicos interferem no esquema. Ela representa uma questão maior para os Estados Unidos: diz respeito a fazê-la cair, a qualquer preço, para abrir o caminho para um possível ataque contra o Irã e ter o controle total dos recursos petrolíferos da região.
A França tem sido acusada de ingerência nos assuntos políticos da Tunísia, sobretudo após as declarações do ministro francês do interior, Manuel Valls. Você acredita que a intervenção francesa no Mali teve uma influência sobre a opinião pública tunisiana?
Os países ocidentais, particularmente a França, apoiam os jihadistas na Líbia e na Síria e os combatem no Mali. Tudo é uma questão de interesse econômico. Não se trata, em caso algum, de apoiar a democracia. É um posicionamento puramente estratégico. As últimas declarações do ministro francês do interior constituem, de qualquer forma, uma ingerência nos assuntos internos da Tunísia. O movimento Ennahdha e os islamitas radicais instrumentalizaram esta declaração porque, de um lado, o Ennahdha não mantém boas relações com os socialistas franceses atualmente no poder e, por outro lado, é uma maneira indireta de condenar a intervenção da França no Mali, o que não é o caso da totalidade da população tunisiana. Apenas alguns simpatizantes islamitas são sensíveis a esta intervenção.
O Brasil teve alguma influência na Tunísia desde o início da Primavera Árabe? Qual posição você esperaria por parte do governo brasileiro?
Oficialmente, os países latino-americanos não desempenharam nenhum papel importante desde a revolução. Talvez seja o momento de reforçar a cooperação através da sociedade civil e dos sindicatos. A experiência brasileira do período Lula merece ser tomada como referência em matéria de transição democrática e de luta contra a pobreza.
O Fórum Social Mundial ocorrerá em Tunis no fim de março. A UGTT está engajada neste processo?
A UGTT está engajada ao lado dos outros componentes da sociedade civil e como membro do Comitê Organizador. Esta ocasião vai permitir à sociedade civil internacional levantar as questões quentes do momento e tentar sair com pistas e soluções alternativas a estas questões. A escolha da Tunísia como país sede é, de qualquer maneira, uma expressão do reconhecimento da sociedade civil internacional por este povo ávido por liberdade que inspirou outros movimentos sociais ao redor do mundo. Assim, este evento vai reforçar ainda mais as capacidades da sociedade civil tunisiana em sua luta pelos direitos econômicos e sociais.