Foto: Angela Davis, dos Panteras Negras, durante um discurso
A interseccionalidade dentro do feminismo vem sendo reivindicada por alguns grupos e discutida dentro do movimento. A concepção una de mulheres tem sido debatida e refutada de modo mais amplo nessa terceira onda feminista. As mulheres negras norte-americanas foram as primeiras a denunciar a invisibilidade, o racismo e etnocentrismo dentro do movimento feminista. Beverly Fisher, em seu artigo publicado em 1997, intitulado Race and Class: Beoynd Personal Politics, critica a falta de interseccionalidade no movimento feminista no que tange as questões das mulheres negras e latinas. Aqui no Brasil, grandes ativistas do movimento de mulheres negras, como Lélia Gonzalez denunciaram, em seus trabalhos e atuações, essa invisibilidade.
Benilda Regina Paiva Brito elucida muito bem essa questão no texto “Sociedade: mulher, negra e pobre: a tripla discriminação”: “Durante muitas décadas, o movimento feminista trabalhou com a ideia da “irmandade” das mulheres; que a opressão da mulher, ou, como se diz hoje, a opressão de gênero, atingia de forma igualitária e indiferenciada a todas as mulheres. Graças à presença e ao trabalho de feministas negras, esta ideia está superada hoje. Hoje, é ponto pacífico que, embora a opressão de gênero, seja algo comum a todas as mulheres nas sociedades patriarcais, ela é sentida diferentemente porque entre nós, as mulheres, existem diferenças de classe e de raça. E o racismo só é comum às mulheres “não brancas”. Podemos aplicar a mesma análise aos homens negros, mais especificamente ao movimento negro. Durante muitos anos, as mulheres negras que se assumiam feministas, foram acusadas de dividir a luta anti racista, tão somente porque diziam que era impossível a irmandade entre os negros porque, parafraseando Elizabeth Lobo, a população negra, assim como a classe operária, tem dois sexos e um deles era oprimido”.
A recém-lançada música “Trepadeira”, do rapper Emicida, evidencia a importância dessa discussão. Não podemos nos esconder atrás da desculpa de “ah, mas o movimento hip hop já é criminalizado” ou “o homem negro já sofre muito”. Não se está negando opressão, de forma alguma. Sim, o hip hop é criminalizado e os homens negros, principalmente, os jovens morrem todos os dias vítimas da violência policial. E não só somos contra isso, como lutamos contra.
Não são as mulheres que denunciam o machismo desses companheiros que estão dando “munição ao inimigo” e sim, esses homens que estão contribuindo para isso ao oprimirem essas mulheres com “fogo amigo”. Como já dizia Audre Lorde: “o silêncio não vai te proteger”. E silenciar, além de reafirmar a violência sofrida faz com que os homens não percebam a importância de se discutir e romper com o machismo. O silêncio é mantenedor de violência. Ser oprimido não pode ser utilizado como desculpa para se legitimar opressão contra outros grupos.
Dizer a uma mulher que denuncia o machismo de algum companheiro pertencente a algum movimento social, que ela está contribuindo para a criminalização do movimento do qual este companheiro faz parte, é na verdade, legitimar opressão; é reafirmar aquilo que se diz lutar contra. A pergunta que deve ser feita é: até que ponto estão dando poder ao poder que condenam? Lutar contra as opressões e não se perceber como reprodutor de outras, inviabiliza a luta como um todo.
É necessário sair da negação. Geralmente, quando se discute esses assuntos com militantes, ouve-se: “ah, mas nós sofremos mais do que vocês. O homem negro morre mais”. Não se pode pautar essa questão por esse viés da “guerra dos sexos”, onde fica-se elencando o sofrimento do homem negro como se para justificar sua inércia em relação ao questionamento do machismo.
Tipo de discussão que não sai do lugar e que somente reafirma o poder numa espécie de solipsismo da dor. Mais que urgente perceber o lugar do qual se fala e olhar para além de si. De novo: não se está negando opressão e nem falando em tom acusatório, mas sim, falando da importância de se refletir sobre o assunto; na percepção de que é possível construir novos padrões de masculinidades que não sejam pautados na opressão da mulher como modo de afirmação. O homem negro precisa perceber que foi e é oprimido por essa imposição do masculino hegemônico ocidental e que reproduzir esse masculino afeta suas mães, irmãs, filhas, companheiras, amigas. Em “Feminismo é para tod@s”, Bell Hooks diz: “muitos militantes querem mudar a noção de masculinidade, mas não estão particularmente preocupados com suas explorações sexistas e a opressão da mulher”.
Se existem mulheres negras, homens negros gays, mulheres negras lésbicas, travestis e trans* negras, como podemos falar em movimento negro sem levar em consideração as próprias especificidades contidas neste ser negr@? Se lutamos contra o racismo como podemos retificar o poder ao não se perceber como machista? Até quando se dará poder ao poder que se contesta?