Foto: Ricardo Casarini
Contra o “negócio” Copa do Mundo, a beleza e a força do mundo indígena se levantam
1556. Rio de Janeiro. Território Tupinambá
No meio da mata os Tupinambás espiam a baia. Desde há muito tempo (1502) que por ali havia chegado uma gente estranha. Traziam cruzes e armas que cuspiam fogo. Por anos foram empurrando os nativos para longe da praia, expulsando das terras que ocupavam em paz e destruindo seu modo de vida. Muitos tinham sido mortos, outros escravizados e uns poucos se embrenhavam para dentro da floresta, ainda livres. As batalhas eram frequentes, mas desiguais. Em 1554, um jovem índio chamado Aimbiré, filho do cacique Kairuçu, depois de ver o pai capturado e morto por conta dos maus tratos na fazenda de Brás Cubas, em São Vicente, consegue fugir do cativeiro e começa a reunir-se com chefes de grupos indígenas que ainda andavam livres pela região. É ele quem vai costurar uma aliança histórica de resistência. Naqueles dias andavam pela baia também os franceses, loucos para abocanhar riquezas. Os Tupinambás – que nos tempos da invasão dominavam todo o litoral – por algum motivo, acreditaram que aqueles poderiam ser amigos e se aliaram a eles para expulsar os portugueses. Lograram um pacto com os Goitacazes e os Guaianases, e essa parceria se configurou na famosa Confederação dos Tamoios, liderada por Aimbiré. Os indígenas pelearam por mais de 10 anos contra os portugueses. Traziam na pele a marca da opressão e queriam suas terras de volta.
Em 1565, Estácio de Sá desembarca perto do que hoje é o Pão de Açúcar e começa dali a resistência portuguesa contra os franceses e os indígenas. É quando funda a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro. Com a ajuda do padre Anchieta, os portugueses vão se misturando a outras etnias indígenas, conquistando amizades e enfraquecendo a Confederação. Naqueles dias a coroa não atinava perder o comércio do pau-brasil, abundante na região. Por dois anos deram batalha aos indígenas. Esses eram chefiados pelo valente cacique Aimbiré, que conduzia os guerreiros pelas canoas através da baia da Guanabara em duros confrontos contra os invasores. Ainda assim, Estácio de Sá seguia distribuindo terra aos amigos portugueses, visando fortalecer suas posições. Em 1567, os portugueses conseguem abafar o movimento indígena e expulsam os franceses da região. A Confederação dos Tamoios é derrotada, os povos originários do lugar são dizimados, as lideranças caem nas batalhas, e poucas famílias conseguem escapar pelo mato, garantindo assim a continuidade do povo indígena na região.
2006. Rio de Janeiro. Ocupação Guajajara
No meio dos prédios os Guajajaras espiam o grande estádio do Maracanã, templo de um esporte que chegou ao Brasil pelas mãos dos ingleses, num tempo em que a Inglaterra era dona do mundo. Remanescentes dos velhos guerreiros da Confederação dos Tamoios, os indígenas se embrenham na cidade maravilhosa para recuperar o que acreditam ser seu: uma pequena fatia de território. O mesmo espaço que foi palco da disputa sangrenta entre portugueses e tupinambás nos primeiros anos de invasão. O lugar em questão é um velho prédio localizado ao lado do estádio, que de 1953 até 1977 abrigara o Museu do Índio, criado por Darcy Ribeiro para ser justamente um espaço onde o homem branco pudesse compreender o modo de vida dos povos originários.
O território onde está o prédio tem larga vinculação com os indígenas. Primeiro, era o seu mundo original. Depois, com a vitória portuguesa foi passando por várias famílias até que em 1865, o então proprietário, Duque de Saxe, doou a grande mansão que construíra para que o governo federal a transformasse em Centro de Pesquisa sobre a cultura indígena. Nada aconteceu. A casa acabou abrigando a Escola Nacional de Agricultura e só décadas depois sediou o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Quando o SPI foi transferido para Brasília em 1964, o prédio passou para a mão dos militares. Foi só em 19 de abril de 1953 que o casarão retornou para a vida indígena, quando Darcy Ribeiro instituiu o Dia do Índio e criou ali o museu.
Mas, o espaço não ficaria muito tempo dedicado ao abrigo da história indígena. Em 1977 o museu é transferido para o bairro do Botafogo e o prédio passou para o controle da Companhia Nacional de Abastecimento, que praticamente o abandonou. Ao longo dos anos, a velha casa foi ruindo e nunca sequer foi tombada pelo Patrimônio Histórico.
Só que para os indígenas aquele lugar é espaço sagrado, templo de resistência e foi assim que em 2006 cerca de 20 pessoas – indígenas de várias etnias – decidiram ocupar o prédio, dispostos a fazer dali um ambiente de acolhimento para todos os irmãos que chegam à cidade maravilhosa, além de guardar a memória ancestral das gentes que viveram naquele território desde os tempos imemoriais. A casa foi tomada e começou a batalha pelo tombamento e recuperação. Desde então as comunidades originárias vem travando grande batalha institucional para manter o prédio, criando um polo de produção de cultura e de conhecimento sobre os povos originários. Mas, a exemplo dos tempos da invasão, novos Estácios de Sá armam suas esquadras e dão combate aos indígenas. Ao que parece, nada muda nas terras de Pindorama.
2012. Rio de janeiro. Copa do Mundo
Pois em julho desse ano, completamente surdo aos desejos dos povos indígenas e dos movimentos sociais para que fosse feito o tombamento do lugar, o governo federal vendeu a área ao governo do Rio de Janeiro. A proposta do governador Sérgio Cabral, singela, é derrubar o prédio para que sirva de espaço de mobilidade para as pessoas que virão assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2014. Mais uma vez, a cultura indígena sendo solapada em nome de um deus estranho: nesse caso, o dinheiro.
Hoje seguem vivendo no prédio perto de 20 pessoas, representando etnias de diversas regiões do país: Guajajara, Pankararu, Xavante, Guarani, Apurinã, Fulni-ô, Pataxó e Potiguara, entre outras. Várias casas foram erguidas no lado de fora, uma vez que o prédio principal está em ruinas, apesar de servir para algumas atividades. A proposta dos ocupantes é recuperar o prédio e transforma-lo na primeira Universidade Indígena do país. Atualmente já são ministradas aulas de língua Tupi Guarani, inclusive para professores universitários e acontecem manifestações culturais, rituais, pinturas de corpo, feitura de comidas típicas das etnias na cozinha coletiva, ensinadas medicinas nativas e contadas histórias das tradições indígenas. Segundo as lideranças vivem mais de 30 mil índios no espaço urbano do Rio de Janeiro e o casarão deverá ser também um ponto de referência para a sobrevivência da cultura de todos eles.
Nesses dias, quando a demolição se aproxima, muito mais gente está se unindo aos moradores originários, tentando fazer pressão para que o governo estadual reverta a situação. Já foram feitas audiências públicas na assembleia estadual, caminhadas, protestos, ações judiciais. Tudo o que dá para fazer dentro da ordem burguesa. Mas, nos governos, todos estão surdos. Para se ter uma ideia do que pensam basta espiar a fala do Superintendente Federal de Agricultura no Estado do Rio de Janeiro, Pedro Cabral, em entrevista aos jornais: “A memória dos índios será preservada, talvez com uma loja de artesanato para eles venderem seus materiais”. Para eles, índio é folclore. Já Sérgio Cabral insiste: “vamos derrubar”. Mas, na aldeia Maracanã, o povo segue em resistência.
E tu, cara pálida?
A verdade pode soar incômoda, mas, índio, no Brasil, é estorvo. Por conta disso, eles são assassinados, estuprados, dominados, chutados, queimados, escondidos, degradados. Só que nem sempre foi assim. Antes da invasão dos portugueses os grupos étnicos, mais de 200, iam construindo suas vidas, dentro dos limites de suas culturas. Vivendo em terras férteis e abundantes não chegaram a constituir uma civilização como os astecas, incas e maias, premidos pelas dificuldades geográficas. Eram caçadores, coletores, e sentiam-se livres na imensidão das terras tropicais. A chegada dos estrangeiros colocou o mundo de cabeça para baixo, todo um modo de vida ruiu. Com os portugueses vieram a cruz e o arcabuz, exigindo a fé num deus estranho e impondo a escravidão. Estarrecidos diante da violência dos homens de além-mar, os habitantes originários dessas terras foram se embrenhando no interior. Os que não conseguiram foram exterminados. E assim foi se fazendo esse imenso Brasil. O índio era um animal sem alma que não servia sequer para ser escravo. Por isso, o extermínio, o genocídio.
Com o passar do tempo, as etnias que se embrenharam pelo interior também foram sendo encontradas. Com a chegada dos imigrantes, as terras que eram espaços de liberdade, começaram a ser aradas e escrituradas, passavam para outras mãos, viravam mercadoria, coisa que se compra. Na solidão das noites, os grupos indígenas que tinham sobrevivido ao massacre dos primeiros tempos também foram sendo destruídos, um a um. Eram chamados de bugres, selvagens, animais. Precisavam ser “civilizados” para que aceitassem pacificamente o roubo de suas terras e vidas. Assim se criaram os “bugreiros”, os bandeirantes, uma gente que fez fortuna caçando e matando índio e que até hoje são apontadas como “heróis nacionais”. De novo, os habitantes originais da grande Pindorama eram um entrave para o progresso que representavam os imigrantes.
No início do século XX uma nova versão de contato começou a se fazer. Já não era mais o tempo da morte, do extermínio, mas da inclusão. Os indígenas começaram a ser procurados para que pudessem sair do seu estado “selvagem” fazendo parte da “civilização”. Com o lendário Marechal Rondon acabava-se a caça e começava um processo de integração. Foi ele quem criou o Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, com sede no Rio de Janeiro, então capital da República. O objetivo era dar amparo e ajudar no processo de integração. Mas, apesar de todos os esforços e da boa vontade de muita gente do calibre de um Rondon, a integração do índio à sociedade que se criou a partir do genocídio nunca se deu de verdade. Fora do seu lugar sagrado, os povos originários seguiram sendo vistos como um estorvo. Os que se integraram na vida fora das matas, foram perdendo suas referências culturais, e ainda assim seguiram sendo discriminados. E os que aceitaram viver em aldeias, amargam até hoje a falta de direitos e de terra.
Apesar da história triste de morte, destruição e genocídio, os povos indígenas nunca se entregaram sem luta. Desde os primeiros dias da invasão, quando perceberam que ali estava a opressão, as comunidades resistiram. Resistem ainda hoje por todo o país, na luta pela demarcação das terras, contra a invasão de seus territórios, contra os megaprojetos que destroem a vida, pela garantia de seus direitos. E não é diferente o que acontece hoje no Rio de Janeiro. Tão pouco o que querem: um prédio, uma universidade, um espaço para que sua gente possa descansar a cabeça e cultivar sua cultura. Ainda assim, a sanha por lucro, dinheiro, negócios, prevalece. A Copa do Mundo, que pretende atrair turistas de todo o planeta, trará com ela mais um massacre.
Que fazer diante disso? Da impotência frente à fria lógica do capital? Talvez seja hora de evocar Aimbiré, a alma sagrada da Confederação tamoia, o desejo secular de liberdade das gentes indígenas para viver sua cultura, seus deuses, seu modo de vida. E, com essa força, iniciar uma rebelião que acerte o ponto mais sensível dessa gente que quer derrubar a aldeia Maracanã: o bolso. As formas? Haveremos de encontrar…