É curioso quando ouvimos a pergunta: “feminismo e antiproibicionismo, qual a relação?”. A primeira resposta que temos é que onde houver desigualdade de gênero, a luta feminista se faz necessária. Aqui, é importante notar, a desigualdade de gênero compreende questões como sexualidade, raça, classe, idade e suas intersecções.
A segunda resposta diz respeito às especificidades das lutas antiproibicionista e feminista. Ainda que tenhamos, enquanto mulheres, feito várias conquistas como o direito ao voto, ao estudo, ao trabalho (ainda que não tenhamos necessariamente alcançado equidade), é curioso notar que ainda acontece de uma mulher estar bebendo sozinha num bar, por exemplo, e ser vista com desconfiança, tida como estranha, louca, deprimida, disponível, prostituta, alcoólatra etc. São muitos os adjetivos utilizados para uma mulher sozinha num ambiente público, tradicionalmente masculino.
O prazer corporal para a mulher ainda é visto como proibido, como se ela não tivesse esse direito ou acesso, como se seu corpo não lhe pertencesse. E claro, a mulher nesse contexto está mais vulnerável a situações de constrangimento e violência. No caso das drogas ilegais, esses estereótipos são ainda mais reforçados. Parece haver uma ideia de que a mulher, destinada unicamente à maternidade e ao ambiente privado do lar, não pode ter esses hábitos, uma afronta à sua condição social de mulher, aos seus filhos, à moral.
Nesse sentido, as drogas que são mais aceitas para mulheres usarem são as medicamentosas, como os antidepressivos (as mulheres ainda formam o grupo para o qual esse remédio é mais prescrito), pílulas de emagrecimento, remédios para dormir, a lista é grande. Drogas que a mantenham no papel que lhe foi incumbido, não que a desviem dali.
Hoje temos no Brasil, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, 36.039 mulheres atrás das grades. Entre elas, 47% (17.178) foram presas por venda de drogas. Algumas vezes por ser seu meio de sustento, outras por serem usuárias, mas outras, de maneira fortemente recorrente, por auxiliar seus companheiros, ao levar drogas a eles nas prisões, para ajudá-los no espaço do comércio ilegal, etc.
E nesse contexto, uma série de pesquisas anuncia que o estigma contra as mulheres presas é muito alto, por exemplo, como visto no número reduzido de visitas, nos maus tratos a que são submetidas, nas insalubres condições prisionais, na falta de atendimento médico específico como ginecologia, e na terrível forma como tratam as grávidas na prisão (há relatos de mulheres dando a luz algemadas).
Outra política pública que não considera as especificidades da relação mãe-bebê é a da retirada do filho recém nascido da mulher que usa crack, aliás, a mais demonizada dos estereótipos da mulher que usa drogas. Não há outras formas de tratar as mulheres que usam drogas e tem filhos? São Bernardo do Campo tem histórias muito bem sucedidas de abrigos oferecidos para mulheres usuárias e suas famílias, ao invés da simples punição. É importante lembrar que quando o pai usa álcool ou outras drogas, seu filho não é retirado.
Exemplos de maus tratos em tratamento de drogas tanto para mulheres quanto para população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersex, etc.) é recorrente, sendo esse mais um campo onde estigmas e preconceitos circulam soltos.
Além disso, é o mesmo Estado (hegemonicamente masculino) e a Igreja (hegemonicamente masculina) que baseados em preceitos morais e interesses políticos de controle, criminalizam tanto o uso de drogas quanto o aborto. As duas proibições – que por sinal, em nada inibem a prática dessas condutas – representam uma ingerência indevida do Estado nas decisões da esfera privada das pessoas, legislando sobre seus corpos. O que faremos com nosso próprio corpo quem decide somos nós, e lutaremos até que possamos, sem repressão, estigma, mortes ou encarceramento, escolher com autonomia se interrompemos ou não uma gravidez e se usaremos ou não a substância psicoativa que bem entendermos.
As lutas antiproibicionista e feminista compartilham, já de cara, o combate a um status quo sustentado por interesses de setores políticos, econômicos e por valores morais que estruturam nossa sociedade. Esses setores, já há muito tempo, percebem a relação das lutas que os questionam, não são poucas as vezes em que assistimos atos conservadores unindo as pautas contra a legalização da maconha, do aborto e da união homoafetiva. Assim como o questionamento sobre a proibição das drogas não é tarefa apenas de usuários, as lutas feministas devem atingir todos que buscam uma sociedade igualitária. Engrossamos, portanto, as fileiras das manifestações dessas duas lutas imprescindíveis, e num processo de troca e fortalecimento, avançaremos na busca de outra sociedade.
Participe do bloco feminista da Marcha da Maconha SP.
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