“Desde 2013 o Coletivo Casa está impulsionando a escola de conflitos para o exercício dos direitos coletivos e da justiça de gênero. O objetivo principal é fortalecer as capacidades das mulheres, ampliando também a visão dos homens, porque a mediação dos conflitos é uma forma de exercício dos direitos coletivos”. O depoimento é da boliviana Ángela Cuenca, membro da organização sediada em Oruro, durante entrevista ao site da Fundação Rosa Luxemburgo quando de sua participação em um seminário internacional sore os impactos da megamineração no continente.
Nascido para apoiar o fortalecimento das organizações sociais que participam de movimentos em defesa dos direitos ambientais, o coletivo Casa – Coletivo de Coordenação de Ações Socioambientais – tem um projeto específico sobre a questão de gênero nas comunidades atingidas por mineração. Atualmente o trabalho se dá com 40 mulheres e 20 homens, provenientes de quatro estados diferentes, e foi iniciado a partir da percepção de que “em todos os conflitos mineiros quem recebe os impactos mais diretamente são as mulheres”. “São elas que denunciam, elas que iniciam a mobilização, são as que articulam as demandas. Mas no momento da tomada de decisão elas são completamente invisibilizadas, só se leva em conta a opinião dos homens. Essa é a principal motivação para impulsionar essa escola, e até o momento já há bons avanços, é algo que vamos seguir trabalhando de forma sistemática”, explica Cuenca.
Os impactos sociais e ambientais da chegada de um projeto de megamineração a uma comunidade ou região são bastante fortes, e foram debatidos com profundidade durante o seminário e também em sua etapa pública. No entanto, não é sempre que se dá muita atenção aos impactos específicos que este tipo de empreendimento tem sobre as mulheres. “Atualmente estamos realizando um diagnóstico a partir dessas dez comunidades que estão em conflito e temos identificado impactos bastante fortes ligados aos impactos ambientais.
Por exemplo o caso da água, toda atividade mineira requer grandes quantidades de água, e assim esse recurso vai diminuindo nas comunidades”, prossegue Cuenca, que aponta que, nestes casos, há impacto nas mulheres quando, por exemplo, elas têm que percorrer muitos quilômetros pra trazer água para sua família, muitas vezes tendo que carregar seus filhos pequenos.
“E elas também veem sua produção diminuir por essa ausência de água. Com o solo acontece o mesmo, a atividade mineira vai contaminando o solo e as mulheres acabam tendo que se virar uma vez que a produção já não basta para alimentar os membros da casa, os animais também produzem menos leite, alguns não conseguem viver… Toda essa carga familiar são as mulheres assumem”, prossegue a ativista.
Acordos entre homens
Por outro lado há relatos de impactos também no que diz respeito à chegada de novas populações às comunidades, na esteira dos projetos mineiros. “Há o caso de uma comunidade em que chegaram muitos mineiros de outras localidades para trabalhar nessa zona e há nove denúncias de estupro após isso. Essas coisas são muito difíceis de tratar”, salienta Ángela, que continua: “Há inclusive um caso de estupro por parte de um trabalhador da empresa, a senhora ficou grávida e teve esse filho. A forma como a empresa resolveu isso foi contratar o esposo da vítima para trabalhar lá se eles retirassem a denúncia, resolveram tudo entre os homens.
Toda a população sabia o que havia acontecido, mas era digamos uma forma de pagar, um acordo entre homens”. Tendo em vista este tipo de procedimento, Ángela conclui: “O valor que se dá as mulheres é o de um objeto, não as respeitam, é super complicado”. “Quando há conflitos com uma empresa mineira o mais fácil para eles é oferecer trabalho para os homens, e são as mulheres que permanecem com as demandas de água, de tudo que estão vivendo. O fato de que um homem da família saia para trabalhar significa ainda que todo o peso da organização e do trabalho familiar caia sobre a mulher, que precisa assumir as funções que o esposo desempenhava no dia a dia, se duplicam os papéis”, complementa.
Ela cita também a associação entre a chegada das empresas mineiras e aumentos nos índices de prostituição e de consumo problemático de álcool, com consequente violência física sobre mulheres em alguns casos. Além disso, destaca “o impacto quando o homem ganha dinheiro e o leva para casa, ele se sente superior e acha que tem o direito de mandar, de bater, de fazer o que quiser”.
Dentro deste quadro, o espaço da escola de conflitos serve como “oportunidade das mulheres fortalecerem suas capacidades, compreenderem melhor as leis, os direitos que têm. Não só como mulheres. Porque o que a experiência nos mostra é que elas não lutam só por elas, só como mulheres, mas fazem uma luta coletiva, pelo bem da comunidade, da família, estão defendendo os direitos de toda sua região”.
“Pelo momento utilizamos a justiça de gênero como uma bandeira para pelo menos fortalecer essas capacidades de participação. Muitas vezes elas compreendiam que participar das decisões da comunidade era só estar lá sentada, estar presente nas reuniões. Mas quanto decidem, quando falam? Aí se punham a pensar”, relata Ángela, que salienta não só violências físicas como entraves à participação feminina, lembrando como o ciúme também se converte em instrumento de opressão e machismo quando, por exemplo, homens chegam a proibir suas companheiras de frequentar espaços políticos pois elas se arrumam e se penteiam antes de comparecer a eles.
Perigo de retrocessos no código mineiro
Em relação à discussão mais ampla sobre a atuação de empresas mineiras no país, Cuenca avalia que o momento presente é de bastante importância, sobretudo pela iminência da aprovação de uma nova regulamentação para o setor. “Atualmente estamos com um código mineiro do ano de 1997, criado por um presidente mineiro, Gonzalo Sanchez Losada, para dar todas as facilidades às empresas e violando muitos direitos dos povos indígenas”.
Uma mudança nesta regulamentação aparentaria, portanto, ser um avanço, mas segunda Cuenca não é bem este o cenário, já que a nova proposta também estaria sendo elaborada tomando por base sobretudo os interesses empresariais, mesmo com um suposto representante dos indígenas no comando do governo federal. “Estamos muito preocupados porque há retrocessos nesse projeto de lei. Retrocessos porque a consulta prévia, livre e informada, que de alguma maneira está estabelecida no código anterior, agora querem mudar para uma consulta previa pública. Assim se muda todo o sentido e se contradiz o que diz a constituição”, critica.
Outro aspecto destacado como negativo e preocupante, além do desrespeito à consulta nos marcos previstos inclusive pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua resolução 169, é que, caso seja aprovado o novo código mineiro, a responsabilidade de outorgar licenças ambientais para projetos mineiros passaria do Ministério do Meio Ambiente e Água para o de Mineração e Metalurgia.
“Os povos indígenas têm uma proposta de consulta também, baseada no convenio 169 da OIT, que busca que se respeitem as formas tradicionais, a participação, etc. Se trata de decisões e consultas coletivas. Nessa proposta do governo é completamente diferente, muito menos cidadã e individualizada. Estamos em um processo muito forte, de muita divisão e muito confronto, porque os povos indígenas que reconheciam Evo Morales como seu representante estão vendo agora ele fazendo coisas contrárias ao que eles sempre acreditaram, é algo bastante forte. E por isso há muitas mobilizações, se essa lei for aprovado vai haver uma revolta forte, todos os povos estão contra”, conclui Ángela Cuenca.