“Morte de Belaid não foi só um assassinato político, mas um crime de Estado”, acusa dirigente tunisiano

Era uma sexta-feira, 29 de março. Durante todo o tempo que o integrante do PPDU esteve na companhia de dirigentes comunistas do PCdoB, que o acompanharam em outras atividades, homens da polícia à paisana foram vistos em diversos momentos. “É assim o tempo todo”, revelou Mohamed Jmour, que conversou com exclusividade com o Portal da Fundação Mauricio Grabois logo depois da atividade.

O advogado Chokri Belaid, assassinado na capital tunisiana, quando saia de casa, foi lembrado durante a conversa. As investigações, até então, ainda não apontavam nenhum suspeito. Belaid, que liderava a Frente Popular, formada por 12 partidos de esquerda, fazia duras críticas ao partido islâmico Ennahda, que governa atualmente o país. Ele acusava seus integrantes de omissão por não conter a violência dos ultraconservadores, que ameaçam a manutenção da estabilidade conquistada. Há dois anos, uma insurgência popular tirou do poder o ditador Zine El Abidine Ben Ali, que comandava a Tunísia desde 1987, o que levou a população a um processo de grandes mudanças.

“É um partido [o Ennahda] que tem por objetivo a instauração de um Estado teocrático e a “islamização” da sociedade tunisiana. Ou seja, objetivam a aplicação da sharia [código das leis do islamismo]. Esse é seu objetivo. Eles não mudaram, apesar do discurso e das declarações que fazem aos jornais ocidentais ou às delegações ocidentais”, alerta o vice-secretário.

Segundo o representante da Frente Popular, o atual governo é uma ameaça ao processo revolucionário, que desencadeou, inclusive, outras insurgências no mundo árabe, que ficou conhecida como Primavera Árabe. . “Há ameaças bem concretas contra até mesmo as margens de conquistas de democracia e liberdade que obtivemos”, afirma.

Sobre a morte de Belaid, Mohamed Jmour é direto: “Nós conhecemos os assassinos, e o assassinato de Chokri Belaid não foi só um assassinato político, mas um crime de Estado, porque o Ministério do Interior é cúmplice. Foi um crime urdido pelo partido Ennahda.”

Acompanhe a íntegra da entrevista:

Mohamed_Jmour.jpgMohamed Jmour/foto: Deborah Moreira

Jornalista: Atualmente, o Senhor é o secretário, ou melhor, vice-secretário…

Vice-secretário: O Vice-secretário geral do Partido dos Patriotas e Democratas tunisianos.

Jornalista: Sobre a situação política atual, qual sua análise política da situação?

Vice-secretário: Atualmente, na Tunísia, há um governo composto essencialmente do partido Ennahda, um partido, uma variante dos irmãos muçulmanos. É um partido que tem por objetivo a instauração de um Estado teocrático e a “islamização” da sociedade tunisiana. Ou seja, objetivam a aplicação da sharia [código das leis do islamismo]. Esse é seu objetivo. Eles não mudaram, apesar do discurso e das declarações que fazem aos jornais ocidentais ou às delegações ocidentais. E além desse partido, há outros dois partidos que são frágeis, que se despedaçaram após as eleições.

Um desses partidos tem orientações econômicas fundamentalmente liberais e, aliás, os wahabistas, os islamitas wahabistas são liberais, pertencem à corrente que é fundamentalmente liberal. E esse grupo representa os interesses dos grandes proprietários de terra e dos compradores na Tunísia. E essas duas classes, os rentistas, em geral, são classes que não apresentaram mudanças desde a queda de Ben Ali. Houve uma parte dessa classe que caiu, a que érea representada por Ben Ali, mas essas classes continuam hegemônicas na sociedade tunisiana. Esse governo é pró-ocidental e pró-americano até a alma.

Jornalista: O senhor acha que o estrangeiro, as forças estrangeiras apoiaram esse processo?

Vice-secretário: Há os Estados Unidos, há a Europa, a União europeia.

Jornalista: Não está aí a contradição?

Vice-secretário: Sim, é contradição. Bom, na Tunísia…

Jornalista: Porque é teocrático, de um lado…

Vice-secretário: E há a reação árabe. O Catar e a Arábia Saudita. Então, para nós, a contradição principal na Tunísia é entre o povo tunisiano e o imperialismo. O povo que quer se libertar do jugo do imperialismo. Mas a luta nacional, a luta anti-imperialista está intimamente ligada à luta pela democracia, por uma república democrática e pela justiça social. Não se pode separar hoje a luta anti-imperialista da luta por justiça social e pela igualdade entre as regiões. Também não se pode lutar somente por questões sociais, sem lutar pela democracia, pelas liberdades, pela igualdade entre homens e mulheres. Então, essas três dimensões estão intimamente ligadas e, como estou dizendo, nosso partido é a Frente Popular que luta hoje por uma república, uma democracia cívica e social. E é uma etapa rumo à revolução nacional e democrática. Para nós, essa república é só uma etapa na construção de uma sociedade nacional e democrática, etapa necessária, para nós, para se chegar ao socialismo na Tunísia. Hoje, esse governo, esse partido Ennahda, está em crise, em crise e isolado, porque os tunisianos não viram sua situação melhorar no plano social. Não viram o desemprego diminuir, não viram investimentos nas regiões desfavorecidas. E é por essa razão que o povo continua a lutar de diferentes formas: greves, ocupações. Então, a luta do povo tunisiano toma diferentes formas. E diante dessa luta, o governo atual não faz nada senão recorrer à violência. Nós consideramos que o Ennahda se assemelha a todos os regimes fascistas que – e todos os regimes de direita – quando estão em crise, não recorrem ao diálogo, não abrem o diálogo entre o povo e seus representantes, eles recorrem à violência. E hoje, não recorrem só à violência do Estado, mas à violência de grupos fascistas, grupos armados, grupos violentos que combatem, que enviam mensagens de ameaça de liquidação física aos militantes políticos, aos militantes sindicais, aos jornalistas e a todos os criadores, a todos os artistas também. Dessa forma, querem criar um clima de terror que tem o objetivo de calar as vozes livres, criar um clima de medo e, no fim das contas, esperam que os tunisianos fiquem em casa, não saiam para votar, pois eles querem aumentar a quantidade, a porcentagem de abstencionistas.

Jornalista: Abstencionistas?

Vice-secretário: São aqueles que não vão votar. O clima de terror não é incentivo para as eleições, não é favorável às eleições.

Jornalista: Qual a porcentagem?

Vice-secretário: Nas eleições de 2011, houve uma porcentagem de mais de 50% de abstencionistas. Foi muito. Com esse clima de violência e medo, há risco de que essa porcentagem seja ainda mais elevada. Hoje, é importante, é imperativo lutar pela dissolução das pretensas ligas de proteção da revolução, ou seja, esses grupos armados, esses grupos fascistas. Devemos, portanto, garantir a todos os partidos que possam fazer sua campanha em paz e em segurança. Não numa atmosfera de medo e insegurança. Então, se não houver essas condições…

Jornalista: Mas para isso é preciso que haja mecanismos que garantam minimamente condições para uma eleição democrática?

Vice-secretário: Devemos, claro, também ter uma justiça independente, uma mídia independente que possa ser utilizada por todos os partidos. Sem justiça independente e sem imprensa independente, sem meios audiovisuais públicos ao alcance de todos, não pode haver igualdade entre os concorrentes. Sabemos muito bem que o Ennahda goza de muito dinheiro do Catar. O Catar investe muito na Tunísia, dá muito dinheiro.

Jornalista: Atualmente?

Vice-secretário: O Ennahda criou mais de 2000 instituições de caridade pretensamente para ajudar as pessoas pobres, e a pobreza na Tunísia é um fenômeno importante. Então, eles fazem tudo para que a Frente popular, a esquerda, a revolução não tenha sucesso.

Jornalista: Uma pergunta. Depois do assassinato de Belaid, vocês têm alguma segurança, algum tipo de proteção especial?

Vice-secretário: É o contrário. Logo depois do assassinato do camarada Chokri, Chokri Belaid, a polícia ficou fazendo cena, fazendo barreiras, às vezes, perto de onde moro. Mas há alguns dias deixaram de fazer, e por quê? Vou dizer por quê. Porque nós dizemos, declaramos e vocês podem dizer, nós conhecemos os assassinos e eles sabem. Nós conhecemos os assassinos, e o assassinato de Chokri Belaid não foi só um assassinato político, mas um crime de Estado, porque o Ministério do Interior é cúmplice. Foi um crime urdido pelo partido Ennahda com a cumplicidade do Ministério do Interior e a cumplicidade das potências, dos países estrangeiros que apoiam o Ennahda, simplesmente, e nós sabemos.

Jornalista: Falei com um sindicalista, e ele me disse que nesse momento há uma espécie de golpe na revolução, porque esse governo vai acabar com a democracia. É verdade? O que acha?

Vice-secretário: Sim, há ameaças bem concretas contra até mesmo as margens de conquistas de democracia e liberdade que obtivemos. E como há essa pressão do movimento, Fórum Social Mundial…

Jornalista: Isso é bom?

Vice-secretário: É bom para nós, é bom para o povo tunisiano. Não para nós pessoalmente. O que buscamos é o bem de nosso povo. Não temos interesses pessoais. Porque sabemos que essa liberdade vai custar muito caro, caríssimo. Centenas de tunisianos foram mortos para tirar Ben Ali, e vai haver outras vítimas, outros mártires pela libertação de nosso povo. Houve Chokri e haverá outros. Não sei quem, mas haverá outros, é a voz da liberdade. E pela voz da liberdade não temos qualquer proteção. Sabemos que a qualquer momento um de nossos dirigentes, um de nossos militantes poderá ser agredido, poderá ser assassinado.

Jornalista: Gostaria de completar aquela pergunta. Como está a investigação do assassinato de Chokri? Estão pressionando?

Vice-secretário: Há um inquérito, mas que não avança. Nós fornecemos vários indícios, indícios sérios, mas enquanto a polícia for dominada pelo Ennahda, não poderemos conhecer a verdade, visto que ele está implicado, só isso.

Entrevista concedida a Renato Rovai e Deborah Moreira

Tradução: Robson J. F. De Oliveira

Fonte: Fundação Maurício Grabois

(imagem de Chokri Belaid no cartaz: http://www.tunisia-live.net)

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