Marco Civil da Internet só será aprovado com mobilização popular, defende Sérgio Amadeu

Como era de se esperar, o Marco Civil da Internet destacou-se no debate sobre Privacidade, Inimputabilidade da Rede e Liberdade de Expressão. O tema ganha visibilidade com o caso Snowden: o ex-técnico da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos vazou documentos que revelam a violação da privacidade do governo e dos usuários brasileiros.

Segundo Carlos Affonso, representante da academia no Comitê Gestor da Internet (CGI), todos nós temos condições de pressionar para que o governo não fique somente #chatiado com a vigilância exercida pela NSA – e a aprovação do Marco Civil da Internet é prioritária para garantir os direitos civis na internet.

“É necessário haver uma manifestação clara nesse Fórum de que a internet que queremos é a que garanta a liberdade de expressão e a privacidade, não o cerceamento que temos visto. Temos que ter nossos direitos garantidos no que diz respeito ao tratamento de dados”, defende. Contudo, Affonso esclarece que o Marco Civil não resolve o caso Snowden, mas coloca princípios que poderão ser aplicados pelo judiciário. Ou seja, ele não resolve todos os nossos problemas, mas é um necessário primeiro passo para termos uma base legal que garanta direitos na internet, impedindo que os usuários sejam criminalizados e tenham sua privacidade violada compulsoriamente.

Por exemplo, se o compartilhamento de arquivos online for considerado crime sem antes termos nossos direitos estabelecidos, quase todos os usuários serão considerados criminosos: basta ter o hábito de baixar ou compartilhar músicas e filmes para isso. Nesse cenário, a internet perderia sua essência de viabilizar infinitas trocas e, consequentemente, a democratização do conhecimento.

Privacidade e liberdade de expressão X interesses privados

Ficou comprovado recentemente que a NSA escaneia os dados da presidência da república. Mas, de acordo com Sérgio Amadeu, representante do terceiro setor no CGI, não se trata de algo novo – e o governo brasileiro nunca deu atenção a isso.

O fato é que só é possível fazer esse tipo de espionagem massiva com a qual nos deparamos com a ajuda de grandes empresas. Uma delas é a Microsoft, como está explícito nos seus termos de política de uso. A Microsoft entra na máquina de seus usuários toda vez que eles se conectam à internet. Isso é feito com a máquina da presidência, do ministro e de todos que usam Windows – o que é crime no Brasil desde a Lei Carolina Dickmann, que tipifica alguns crimes cometidos via internet. (Veja como a Microsoft vigia você que usa Windows).

Para Amadeu, primeiramente precisaríamos ter nossos direitos garantidos, para depois podermos pensar em termos de legislação penal. “Está acontecendo uma confusão muito grande, uma das coisas que se fala é que não tem como ter privacidade na rede. É claro que é difícil se proteger de ataques muito poderosos, mas podemos facilmente nos defender da maioria dos ataques massivos”, defende. Também é preciso pensar no incentivo e na disseminação de softwares livres, que considerem a privacidade do usuário e não somente interesses privados. “Há uma noção de que discutir privacidade é algo superado que atrapalha o empreendedorismo – uma visão de que importante é o software que dá lucro, que responde ao mercado”, acredita Antônio Alfonso, da Universidade Federal do Pará.

É o anonimato que permite a privacidade na rede e é possível exercer esse anonimato, sugere Amadeu. Por isso, “quando se vincula a identidade civil ao IP (sigla para protocolo de internet, o ‘endereço’ de cada computador), nós estamos perdidos”, acredita. No modelo comercial atual, os princípios da internet colocam a propriedade intelectual acima dos direitos de privacidade dos usuários: por suspeita de violação de direitos autorais, se autoriza que se entre nas máquinas dos usuários. “Essa loucura de ir atrás de IP é muito equivocada”, critica Amadeu, e parafraseia Julian Assange, o porta-voz do Wikileaks: precisamos de transparência completa nos governos e privacidade total para os cidadãos.

bicicletada-de-sunga-1024x768.jpgFoto da bicicletada de sunga foi removida do Facebook: mais um caso de censura indiscriminada.

O representante do terceiro setor no CGI citou alguns casos representativos do impacto que a censura e perseguição indiscriminada geram na liberdade de expressão: o caso da foto da bicicletada de sunga, realizada em Curitiba, que foi censurada no Facebook; e o recente caso de Christian Fischgold, que foi convocado a depor por ter divulgado manifestações populares nas mídias sociais. “Hoje a gente luta por liberdade de criação e invenção, e pelo direito de crítica”, destaca Amadeu.

christian-fischgold--mandato.jpgMandado de intimação a Christian Fischgold. Ele foi convocado a depor por ter divulgado manifestações populares nas mídias sociais.

Hartmutt Glaser, que faz parte do CGI desde que surgiu em 1995 e hoje é seu secretário-executivo, revela que a polícia já pediu diretamente ao CGI para tirar conteúdo do ar, o que o CGI sempre se negou a fazer, mesmo sendo ameaçado por isso. “Esse assunto é muito delicado e precisa ser tratado com cuidado”, alerta Glaser.

Há uma pressão gigantesca para que conteúdo possa ser removido sem ordem judicial – por parte de interesses relacionados à propriedade intelectual (direitos autorais) e denúncias vazias. “Não dá para responsabilizar a internet pelos crimes que são cometidos nela. Uma empresa não pode agir como o judiciário, determinando o que pode ser removido ou não. Se nós colocarmos essas suposições acima de uma avaliação legal sobre o fato, nós vamos implementar uma indústria da censura espontânea”, complementa Amadeu.

Evidentemente é preciso construir instrumentos para investigação de crimes que se dão no meio digital. Rosane Leal da Silva, da Universidade Federal de Santa Maria, se preocupa com a difusão de discursos de ódio na rede. “Quais são os limites da liberdade de expressão?”, questiona. Mas como na vida cotidiana, no ambiente digital também não se deve poder criminalizar a priori, ou abriremos caminho para um sistema totalitário de vigilância. Que os crimes sejam investigados, mas que os usuários não sejam condenados à censura antes mesmo de terem direito à julgamento e defesa – o que abre brecha para uso político da censura, de modo a calar vozes divergentes.

É consenso que as redes sociais não são gratuitas: se o usuário não paga pelos serviços, é porque é em si a mercadoria. O pagamento não é em dinheiro, mas por meio dos dados pessoais. Por isso é preciso exigir transparência para que o usuário possa optar conscientemente, e que se imponha limites ao acesso e uso dos dados privados. “Nós temos que avançar em relação à privacidade, ter um parâmetro para a atuação das corporações, para chegar a um acordo do que é comercialmente aceitável ou não”, defende.

Interesses privados emperram a aprovação do Marco Civil da Internet

Representantes do CGI destacaram na abertura do Fórum que o comitê decide na lógica do consenso, defendendo ser essa uma postura construtiva de diálogo. Gésio Passos, integrante do Intervozes, discorda: “Na lógica de consenso, o poder econômico fala mais alto. Por isso que nem tudo dá para discutir por consenso, sendo que o empresariado nem se dá ao trabalho de discutir”. Passos revela que o CGI não aprovou a reivindicação da sociedade de que as reuniões do comitê fossem transmitidas ao vivo – ou seja, internamente o próprio CGI tem dificuldade de democratizar seus debates.

O representante das teles (empresas de telecomunicação) no CGI (que é multissetorial, composto pelo poder público, iniciativa privada e sociedade civil) declarou na última reunião do comitê que o setor não participaria do Fórum da Internet. No processo de Conferência de Comunicação, que se deu em 2009 para discutir as políticas públicas do setor, o mesmo aconteceu: o empresariado, no caso os empresários da radiodifusão, que não têm interesse em mudanças na área, também se ausentou do debate com a sociedade – o que se revela uma postura estratégica da iniciativa privada quando se recusa a abrir mão de seus privilégios.

De acordo com Glaser, a mídia está disseminando informações visando confundir a opinião pública, pois não quer a aprovação do Marco Civil da Internet. Uma dessas notícias dizia que a organização que administra o registro de IPs internacionais nos EUA (endereços terminados em .com, por exemplo) controla o fluxo de informações, o que não é verdade.

Ou seja, a disputa entre os interesses privados e o bem comum se dá dentro do comitê, na esfera governamental, na mídia e na própria sociedade, e pode ser intensificada em prol da liberdade e da privacidade por meio do debate e da conscientização. “O CGI deve realizar uma ampla campanha em defesa da privacidade da rede”, acredita Amadeu, que pondera que o CGI não está fazendo isso. “As pessoas não sabem que estão tendo seus direitos violados”, complementa.

O representante do terceiro setor informa que as teles faturaram 240 bilhões em 2012 e são muito mais poderosas que a Globo (o setor de radiodifusão, que abarca empresas de rádio e TV, faturou como um todo 22 bilhões no mesmo período).

“Por que cinco empresas de telecomunicações impedem a aprovação do Marco Civil no Brasil? Porque elas movimentam 8% do PIB”, revela. O ministro das comunicações, Paulo Bernardo, tem contribuído para o lobby das teles, e ano que vem teremos eleições: a moeda de troca dessas empresas é o financiamento de campanha. “É muito difícil aprovar o Marco Civil da Internet nesse cenário, a não ser que haja um movimento social que pressione fortemente nesse sentido”, convoca Amadeu.

Ele sugere levar adiante o que foi discutido nesta trilha temática do Fórum: explicar para as pessoas que a lei tem como intuito deixar a internet do jeito que ela é hoje, livre, e impedir mudanças que permitam controle de fluxo e de conteúdo. Uma maneira de fazer isso é por meio de aulas livres. “A gente pode levar, explicar para muita gente. E se não for algo que dialogue com as pessoas, que mobilize, não conseguiremos garantir a liberdade na rede”, alerta.

Entenda o Marco Civil da Internet

O Marco Civil veio em resposta ao “PL do Azeredo“, projeto de lei que tratava de criminalizar atividades comuns na internet. Mas como é possível tipificar crimes se ainda não temos nossos direitos no meio digital regulamentados? Eis a importância desse projeto: garantir que existam princípios legais para que nossos direitos sejam respeitados na rede.

Veja mais na página da campanha Marco Civil Já e contribua na divulgação do debate.

Propriedade intelectual: a Igreja é dona de cristo

Uma caso que revela a esquizofrenia que permeia o debate da propriedade intelectual é o de Joãozinho Trinta no carnaval de 1989. O carnavalesco idealizou um cristo mendigo, retratando o enredo da escola, que não pode desfilar – a Igreja conseguiu impedir alegando a propriedade da imagem de cristo. Decidiram cobrir a imagem com um pano preto e penduraram uma faixa com os dizeres “Mesmo proibido, olhai por nós”.

O caso foi recordado por um participante do Fórum e pode ser conferido aqui: http://www.brasilescola.com/carnaval/alegorias.htm.

Imagem da capa: da Página do Marco Civil Já

Michele Torinelli está em Belém pelo Coletivo Soylocoporti

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