Em abril deste ano, numa jogada política surpreendente para quem tem a obrigação de zelar pela realização da justiça e pelo cumprimento da lei, o então promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), Luis Moreno Ocampo, eximiu-se de suas responsabilidades ao declarar que não tinha competência de decidir se a Palestina era ou não um Estado. Com isso, engavetou o pedido do governo palestino, de investigação dos crimes cometidos em seus territórios desde 2002.
O resultado prático dessa atitude foi negar ao povo da Palestina o direito básico de todo ser humano à justiça e manter a impunidade dos sionistas de Israel em relação aos inúmeros crimes perpetrados contra os palestinos, em especial nas ofensivas militares à Faixa de Gaza e na repressão às marchas não violentas contra o muro do confisco e as colônias ilegais construídas pelos governos de Israel em terras palestinas.
Agora, depois do reconhecimento das Nações Unidas, por maioria esmagadora, do Estado da Palestina, a promotoria do TPI não tem mais desculpas a dar. No entanto, é necessário que a Palestina assine o Estatuto de Roma, que criou o TPI, e aceite a jurisdição do Tribunal para que seja possível o encaminhamento de um novo pedido de investigação dos crimes que autoridades, oficiais e colonos israelenses cometeram e cometem no território palestino.
Parece fácil mas não é. Potências mundiais como Inglaterra, França e Estados Unidos já advertiram a Palestina a não levar os sionistas de Israel ao TPI. Ameaças como cortes de doações e falta de apoio político levam o governo palestino a considerar se será mesmo possível exigir justiça e indenização pelas violações sofridas pela população da Palestina.— muitas delas gravíssimas, tipificadas como crimes de guerra e crimes contra a humanidade em relatórios e documentos das Nações Unidas.
Diante do impasse, mais uma vez a sociedade civil toma a iniciativa de exigir justiça. Quatro organizações palestinas – três de defesa dos direitos humanos e outra que reúne as ONGs do país – lançaram ontem, 10 de dezembro, Dia dos Direitos Humanos, uma campanha para que o TPI comece a investigar as violações do direito internacional cometidas por Israel na Palestina. A campanha, Palestine to the ICC [Palestina no TPI], foi iniciada pelo Palestinian Center of Human Rights (PCHR) e recebeu adesão imediata de duas outras entidades de direitos humanos, Al-Mezan e Al Dameer, além da PNGO, rede que congrega as organizações não governamentais palestinas.
Conheça a íntegra do documento que lançou a campanha e, em seguida, a petição “Fim da impunidade na Palestina: pedido de investigação e responsabilização pelo Tribunal Penal Internacional”.
Em 10 de dezembro de 2012, por ocasião do Dia dos Direitos Humanos, o PCHR lança a campanha Palestina no TPI. Ela visa a encorajar as partes interessadas – a saber, o Estado da Palestina, o promotor do Tribunal Penal Internacional e a comunidade mundial – a cumprir suas responsabilidades no sentido de garantir justiça e indenização às vítimas palestinas de violações do direito internacional. Dez anos depois da criação do Tribunal Penal Internacional, a instituição constituída para pôr um fim à impunidade dos autores dos mais sérios crimes, motivo de preocupação da comunidade internacional como um todo, o PCHR exige responsabilidade em relação às incontáveis vítimas palestinas às quais há muito tempo se nega acesso à justiça.
Os autores do Estatuto de Roma [documento que criou o TPI] reconheceram que “todos os povos estão unidos por obrigações comuns, suas culturas reunidas numa herança compartilhada”. Os valores que formam o Tribunal são de fato universais, baseados nos direitos proclamados na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Como o artigo 2 [da Declaração] estabelece, “…nenhuma distinção será feita com base no status político, jurisdicional ou internacional do país ou território ao qual uma pessoa pertence, seja ele independente, administrado, sem governo próprio ou com alguma outra limitação de soberania” .
Depois de 64 anos, inúmeros povos ainda são discriminados e enormes distinções são feitas entre indivíduos apenas em função do status político do país onde nasceram. O povo palestino vem sendo sistematicamente discriminado por causa da falta de independência de seu território e da limitação de soberania imposta a ele desde a criação do Estado de Israel, naquele mesmo ano [da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948].
A situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados piora ano a ano. O direito à autodeterminação e a conquista de um Estado aparecem como nobres ideais em relação à realidade do dia a dia. A situação na Cisjordânia e em Jerusalém se deteriora com a ocupação e a com a expansão das colônias, com o mundo inteiro como testemunha. Na Faixa de Gaza, 1,7 milhão de pessoas estão sujeitas a uma hedionda forma de punição coletiva, sem contato com o mundo exterior e obrigadas ao retrocesso.
Essas mesmas pessoas, protegidas pela Lei Humanitária Internacional, são submetidas a ataques cruéis. Durante a assim chamada “Operação Cast Lead”, a população civil viu-se no olho do furacão, sem ter nem mesmo a possibilidade de fugir. Mais de 80% de todas as baixas foram civis. Tudo isso aconteceu à vista da comunidade internacional. Quase quatro anos depois ainda não houve nenhuma investigação apropriada em nível nacional.
Pior ainda, a comunidade internacional assistiu, mais uma vez, Israel realizar outra ofensiva envolvendo ataques desproporcionais e indiscriminados que causaram a perda de muitas vidas civis. Quase dois terços dos mortos e 97% dos feridos durante a Operação Coluna de Nuvens eram civis. Mesmo antes de a Operação Cast Lead ter sido investigada de modo adequado, outra ofensiva em larga escala deixou ainda mais vítimas.
A Missão de Inquérito das Nações Unidas sobre o Conflito de Gaza descobriu que crimes de guerra e crimes contra a humanidade foram cometidos durante a Operação Cast Lead. Mais importante ainda, o documento delineou mecanismos de responsabilização no nível nacional e, em caso de falha, no nível internacional. A Comissão de Especialistas da ONU concluiu que “o inquérito oficial deve ser conduzido por um órgão verdadeiramente independente, dado o óbvio conflito inerente ao fato de os militares examinarem seu próprio papel no planejamento e na execução da Operação Cast Lead”.
O PCHR reconhece que o Tribunal Penal Internacional é o principal órgão independente capaz de conduzir essas investigações e, nesse contexto, lança a campanha Palestina no TPI, que visa a encorajar os atores pertinentes a cumprir suas responsabilidades no sentido de garantir que a Palestina tenha acesso ao TPI. Em primeiro lugar, o Estado da Palestina deve assinar e ratificar o Estatuto de Roma sem demora e apresentar uma declaração ao escrivão do Tribunal, de acordo com os artigos 11 (2) e 12 (3) do Estatuto, aceitando o exercício da jurisdição do Tribunal desde a data da entrada em vigor do Estatuto, em 1o de julho de 2002.
Em seguida ao acesso da Palestina ao Estatuto de Roma, o promotor do Tribunal Penal Internacional deve iniciar uma investigação proprio motu sobre os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade cometidos na Palestina, em violação ao Estatuto, e pedir autorização à Câmara de Pré-Julgamento para proceder a uma investigação, de acordo com o artigo 15 do mesmo Estatuto.
Daí em diante, o promotor do Tribunal Penal Internacional deve reabrir o exame preliminar e considerar os elementos apropriados para finalmente abrir uma investigação sobre a situação na Palestina, levando o assunto à Câmara de Pré-Julgamento para determinação judicial da matéria. Finalmente, cabe à comunidade internacional apoiar os esforços do povo palestino na busca de justiça em relação às violações das leis internacionais humanitárias e de direitos humanos, por meio do uso do princípio de jurisdição universal.
Fim da impunidade na Palestina: pedido de investigação e acusação pelo Tribunal Penal Internacional
Em janeiro de 2009, logo após a ofensiva israelense Operação Cast Lead, realizada em 2008-2009, a Autoridade Nacional Palestina assinou uma declaração aceitando o exercício da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, de acordo com o artigo 12 (3) do Estatuto de Roma. Em abril de 2012, o então promotor do TPI, Luis Moreno Ocampo, recusou o pedido, declarando-se não competente para decidir se a Palestina era um Estado, para poder aceitar a jurisdição do TPI. Essa decisão teve o efeito de negar ao povo da Palestina o acesso à justiça em nível internacional pelas violações da lei humanitária e dos direitos humanos cometidas contra ele por Israel. Ao fazer isso, o promotor não apenas foi além do que permite seu mandato, exercendo poder judicial em lugar de poder de promotoria, como também desconsiderou o artigo 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual “… nenhuma distinção será feita com base no status político, jurisdicional ou internacional do país ou território ao qual uma pessoa pertence, seja ele independente, administrado, sem governo próprio ou com alguma outra limitação de soberania”.
O único recurso disponível aos palestinos, no presente, é registrar queixa na Defensoria Geral Militar Israelense (procedimento criminal) e no Ministério da Defesa de Israel (procedimento civil). Esforços prévios de busca de justiça pelo sistema judicial israelense não surtiram efeito, falhando no sentido de levar a algum cumprimento substantivo da justiça. Trabalhamos durante muitos anos dentro do sistema judicial de Israel, tentando conseguir justiça e responsabilização para as vítimas palestinas; essa experiência provou, de maneira inequívoca, que o sistema é incapaz de assegurar uma solução efetiva para as vítimas. Essa conclusão foi confirmada pela Comissão de Especialistas da ONU depois da assim chamada “Operação Cast Lead”, entre 2008 e 2009. A Comissão estabeleceu que “o inquérito oficial deve ser conduzido por um órgão verdadeiramente independente, dado o óbvio conflito inerente ao fato de os militares examinarem seu próprio papel no planejamento e na execução da Operação Cast Lead”.
Na ausência de um órgão independente que tenha o poder de investigar o alegado cometimento de crimes contra o povo palestino e responsabilizar seus autores, as forças israelenses continuam a agir com impunidade, negligenciando numerosos princípios dos direitos humanos e da lei humanitária internacional. É essa cultura da impunidade que permitiu a Israel desfechar outra ofensiva contra a Faixa de Gaza em novembro de 2012. Durante a Operação Coluna de Nuvens, ataques indiscriminados e desproporcionais resultaram na morte de [mais de] 100 civis palestinos e no ferimento de 1.261.
Agora que a Palestina foi oficialmente reconhecida como Estado pela Assembleia Geral da ONU, nós, abaixo-assinados, repetimos nosso apelo por justiça e responsabilização e conclamamos:
1. o Estado da Palestina a assinar e ratificar o Estatuto de Roma sem demora, e a apresentar uma declaração ao escrivão do Tribunal, de acordo com os artigos 11 (2) e 12 (3) do Estatuto, aceitando o exercício da jurisdição do Tribunal desde a data da entrada em vigor do Estatuto, em 1o de julho de 2002;
2. o promotor do Tribunal Penal Internacional a iniciar uma investigação proprio motu sobre os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade cometidos na Palestina, em violação ao Estatuto, e pedir autorização à Câmara de Pré-Julgamento para proceder a uma investigação, de acordo com o artigo 15 do mesmo Estatuto;
3. o promotor do Tribunal Penal Internacional a reabrir o exame preliminar e considerar os elementos apropriados para finalmente abrir uma investigação sobre a situação na Palestina, levando o assunto à Câmara de Pré-Julgamento para determinação judicial da matéria.