Imagine que toda dívida mundial desapareceu quando o calendário Maia terminou.
Problemas como o aquecimento global e a pobreza extrema instantaneamente se tornariam facilmente solucionados com contratos justos e investimentos prospectivos. As dívidas estruturais de subsídios, capital investido, paraísos fiscais e acordos comerciais que mantém esses problemas distantes de uma solução simplesmente não existiriam mais.
Em seus primórdios, a tradição hebraica realizava esse sonho a cada sete anos. Costumava-se celebrar um grande jubileu, que dava cabo às dívidas e à escravidão econômica. Blocos de pedra em que inscreviam-se contas eram quebrados. Papiros com orçamentos, queimados. Escravos retornavam às suas famílias. A todos era oferecido um novo começo (a mesma tradição é viva atualmente com o projeto Rolling Jubilee, inspirado nos ocupas, que já aboliu mais de $9,000,000 em dívidas).
A invenção da dívida
Devemos saber que o endividamento surgiu recentemente. Durante mais de 99% da nossa história, nós não tínhamos nem a noção de dívida (o leitor interessado pode percorrer as páginas de Debt: The First 5000 Years, de David Graeber, para mais detalhes).
Estudos antropológicos revelam que sociedades de coletores e caçadores não tinham sistemas de trocas, moedas para usar como dinheiro e, na ausência desses artefatos culturais, endividamento. Na grande variedade cultural que se deve esperar de uma pesquisa etnográfica, antropólogos constataram que comunidades tribais mantinham uma espécie de economia baseada na troca de presentes, onde a posição do indivíduo dependia do quão generoso ele se mostrava. Outros grupos mantiveram-se igualitários e não-hierárquicos durante milhares de anos por dividir alimentos e instrumentos sob os princípios de “de cada um o quanto pode, para cada um o quanto necessita”.
Deriva daí a leitura sobre o comunismo que o trata como um sistema de governo centrado no estado, quando na verdade ele conserva o sentimento fundante de qualquer comunidade construida sobre a confiança e a boa vontade das relações sociais entre as pessoas – condição preservada em toda sociedade de coletores e caçadores durante 200,000 anos.
Em qualquer compêndio de economia se encontra a clássica (e falsa) história de que todo sistema de trocas necessita de dinheiro. Todos eles são mais ou menos da seguinte maneira. Felipe tem batatas e precisa de sapatos, Gabriel tem sapatos mas não precisa de batatas. Em função desse desencontro de necessidades, eles são incapazes de fazer trocas e, assim, faz-se necessário introduzir um sistema monetário que preserve o mesmo valor em múltiplas trocas e permita a Felipe vender suas batatas a Maria e adquirir dinheiro para comprar os sapatos de Gabriel. O que essa simples narrativa oculta é toda a evidência antropológica de que os problemas não surgem assim.
Na verdade, os problemas se originaram das conquistas impostas por sociedades guerreiras. Quando uma terra era conquistada, os mandantes impunham um sistema de cobranças para cobrir os custos da guerra. Essa imposição de escassez por extrair recursos da população local é o que leva à emergência de um sistema de trocas e, em alguns dos casos, à introdução de um sistema monetário pelo conquistador.
Na ausência de guerras e conquistas, sociedades não criam sistemas de troca. Em vez disso, os bens são divididos dentro da tribo ou trocados com outras tribos através de rituais de câmbio costumeiramente conflituosos. O surgimento de sistemas de troca dá-se em sociedades agrárias, nas quais algum tipo de sistema de contabilidade é criado para apurar dívidas.
Então, de onde vem o endividamento, se ele não é natural entre os seres humanos? Novamente, é a imposição da escassez pela classe dirigente, elaborada para que uma elite poderosa extraia e acumule riqueza, que cria a noção de dívida. Isso soa familiar no atual contexto? Muitos países “modernizaram-se” no século XX por introduzir sistemas de mercado que dão forma a dívidas nas economias de nações recém-fundadas. Essas nações hoje devem pagar tributos, na forma de juros, para bancos estrangeiros que extraem riqueza de países pobres para os cofres de países ricos.
Em bom português, o endividamento é criado quando um grupo poderoso de pessoas impõe escassez sobre outro grupo, que foi conquistado. Essa é causa da pobreza. Isso desestabiliza sociedades e alimenta inquietações sociais e revoluções. Daí a introdução do jubileu pelos reis hebreus. Eles sabiam que uma revolução poderia fazer com que o povo se levantasse e acabasse com suas próprias dívidas, extirpando a monarquia do poder. Para preservar sua base de poder, os reis desfaziam dívidas e tudo principiava novamente.
O endividamento e a responsabilidade moral
O leitor atento já deve estar se perguntando, “o que essa história da criação do endividamento tem a ver com o uso religioso da responsabilidade moral?” Talvez o mesmo leitor tenha notado que todas as religiões trazem em seus núcleos uma relação de troca entre Deus e os homens. Cada um deve algo ao criador e é capaz de pagá-lo por livrar-se de pecados ou retornar ao seu fabricante após a morte.
Esse tipo de transação econômica por responsabilidade moral não é presente em toda sociedade. As tribos de coletores e caçadores que punham sua ética em prática pela distribuição baseada na necessidade não estavam trocando olho por olho. Muito menos enxergavam um presente como forma de reembolso – com efeito, tratar a generosidade de maneira transacional seria um insulto.
A moral baseada no endividamento só é presente em sociedades que possuem sistemas contabilísticos e cotidianamente desempenham trocas monetárias. Em outras palavras, esse sistema de responsabilidade moral é um produto de guerras e conquistas, não parte natural da vida em sociedade. Assim, da próxima vez em que você sentir-se endividado, seja com seus amigos, a sociedade ou o criador, mantenha isso em mente.
O que significaria acabar com toda dívida?
Nós vivemos num tempo em que muitos de nossos recursos financeiros estão ligados a atividades não produtivas, muito em virtude do privilégio míope a atividades econômicas que servem a nossas imensas dívidas. Por isso pessoas detestam seus próprios trabalhos e investimentos não são feitos em energias renováveis, educação pública, cultura, saúde ou na erradicação da pobreza. Nós construimos gigantescos castelos de areia sobre dívidas – com o dinheiro tornado-se um bem em si quando empréstimos são feitos e crescendo exponencialmente com os juros – e, assim, somos incapazes de acabar com a cultura do consumo ou concentrar nossa criatividade na sustentabilidade do planeta.
Se acabássemos com todas as dívidas, 7 bilhões de pessoas poderiam concentrar-se em suas paixões. Nós poderíamos nos juntar para cuidar do que nos ameaça, como a escassez de água potável ou a extração de petróleo.
Eu suponho o que seria possível se todos pudessem desenvolver suas capacidades intelectuais e empíricas sem medo de um coletor de dívidas. Como os povos do mundo escolheriam viver suas vidas?
Talvez você tenha seus próprios sonhos de um mundo melhor para si e os seus. O que vem à sua mente? A propósito, essa não é uma questão meramente acadêmica porque cada um de nós participa das realidades sociais a que emprestamos nossas crenças, ações e obrigações. Se decidíssemos que nossas dívidas inexistem, elas inexistiriam.
Cada um de nós poderia ser um economista – escolhendo o que medir e impregnando tal medida de significado. O Produto Interno Bruto foi escolhido como medidor do progresso da civilização no século XX dessa maneira. Talvez no século XXI nós o substituiremos pela Felicidade Interna Bruta ou outra medida que capture a essência de nossos valores e objetivos enquanto civilização.
Imagine, pois, novamente, que toda dívida mundial desapareceu junto com o fim do calendário Maia nesta sexta-feira. O que se alteraria?
(*) Joe Brewer é fundador e diretor do Cognitive Policy Works, um centro educacional e de pesquisas dedicado à aplicação de ciências cognitivas e comportamentais à política. Ele é um ex-membro do Rockridge Institute, um grupo de estudos fundado por George Lakoff para analisar discursos políticos para o movimento progressista.
Traduzido por André Cristi para Carta Maior