Na Turquia, o acesso à internet é proibido ao povo curdo. Recentemente, o jornal “Livre e Atual”, publicado pela comunidade curda, teve 66 jornalistas assassinados e seu diretor condenado a mais de 100 anos de prisão. Na Dinamarca, a emissora de TV que dava voz a este povo foi fechada após pedido do governo da Turquia junto às instâncias da OTAN.
Em Moçambique, as rádios comunitárias são o principal meio de expressão dos 20 idiomas falados por 60% da população, além do oficial português. Parte dos habitantes tem sotaque brasileiro por influência das novelas veiculadas por lá. As emissoras que desagradam o poder político central, no entanto, são fechadas sem justificativa. O mesmo acontece com canais de TV que questionam a autoridade da Presidência do país. Moçambique não dispõe de uma lei de acesso à informação e há uma dependência dos veículos em relação à publicidade governamental.
Na China, há os veículos que dependem do Estado e os que dependem do mercado. A luta pela liberdade de jornalistas, nos últimos três anos, ganhou o apoio da população com o aparecimento das redes sociais. Hoje, 500 milhões de chineses são usuários de internet e o controle da informação pelo Estado está ruindo. A liberdade de imprensa, no entanto, ainda não é garantida institucionalmente. O Estado e a polícia podem prender jornalistas e ativistas a qualquer momento.
No Brasil, no último dia 17, a Anatel, com o auxílio o Exército e da Polícia Militar, tentou tirar do ar a Rádio Cúpula, emissora livre que funcionava no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, para divulgar à população os temas em debate na Cúpula dos Povos por Justiça Social e ambiental em defesa dos bens comuns, contra a mercantilização da vida. Graças à pressão dos movimentos populares, a Rádio Cúpula conseguiu funcionar até o final do evento. No mesmo final de semana, 11 rádios comunitárias da região de Campinas, interior de São Paulo, também correram o risco de serem caladas após a expedição de mandados judiciais ordenando a apreensão de seus equipamentos pela Anatel.
O que essas quatros histórias tem em comum, além da óbvia constatação que o acesso à informação e o direito à comunicação e à liberdade de expressão dos povos seguem sendo cotidianamente violados em todo mundo? Todas elas foram contadas, compartilhadas e até mesmo vivenciadas por comunicadores e ativistas que participaram do II Fórum Mundial de Mídia Livre (II FMML), evento realizado na Cúpula dos Povos, que terminou neste final de semana no Rio de Janeiro.
Organizado a partir de uma articulação internacional que começou no Fórum Social Mundial de 2011, no Senegal, o II FMML reuniu centenas de pessoas de mais de 15 países, de todos os continentes do planeta, para debater o papel estratégico da comunicação na construção deste outro mundo, ambientalmente sustável e socialmente justo. O evento aconteceu não apenas 20 anos após a ECO 92, mas também vinte anos após a chegada da internet no Rio de Janeiro, implantada na cidade por organizações da sociedade civil justamente durante o Fórum Global.
E se hoje as novas tecnologias estão teoricamente disponíveis para todos, os desafios não são menores do que nos anos 90. Consideradas as diferentes conjunturas e temporalidades, ficou claro para todos que a defesa do direito à comunicação precisa ser colocada na ordem do dia das lutas dos povos de todo o mundo.
Em primeiro lugar, porque, na disputa ideológica por modelos de desenvolvimento, os grandes meios de comunicação comerciais reproduzem, em sua maioria, um discurso permissivo em relação a práticas predatórias e consumistas. Apesar de falaram da crise ambiental vivida pelo planeta, não questionam o modelo capitalista que a causou. Neste sentido, a mídia livre, em suas mais diferentes formas de organização, é fundamental para dar voz aos setores que defendem outra forma de se relacionar com os recursos naturais e os bens comuns.
Em segundo lugar, porque a comunicação e a cultura, elas próprias, também devem ser vistas bens comuns, que, assim como a água e as florestas, vem sendo historicamente apropriados e mercantilizados pelas grandes corporações, perante a omissão ou conivência dos governos. E se, neste caso, não estamos discutindo recursos finitos, como fez a agenda da Rio+20, a mercantilização da informação e a colonização das mensagens pelo poder econômico também tem tornado escassas a diversidade e pluralidade desses bens imateriais.
Mas assim como a Cúpula dos Povos mostrou experiências populares de gestão comunitária de bosques, rios e territórios, o Fórum de Mídia Livre foi um espaço para debater e praticar os princípios do compartilhamento e da produção comum de comunicação: das iniciativas da cultura digital à construção de protocolos livres, passando pela gestão de rádios livres e comunitárias e pela defesa de marcos regulatórios democráticos e políticas públicas que garantam a universalização da banda larga, a apropriação tecnológica e o exercício da liberdade de expressão de todos os povos.
Num cenário em que, numa parte do mundo, ainda se vive sob a censura do Estado na radiodifusão, nos meios impressos e na internet e, em outra, a monopolização de sistemas mediáticos tem inibido o acesso à informação e a liberdade de expressão dos povos, o II FMML levantou alto a bandeira do direito à comunicação. Considerando o momento histórico singular que o tema vive, muito distante das épocas em que os emissores detinham o controle da palavra, os comunicadores que estiveram no Rio apostam no crescimento do protagonismo popular para o desenvolvimento de fluxos distintos de comunicação e no fortalecimento de uma nova dinâmica de redes, em que outras vozes ganhem espaço e alcance global.
Uma das decisões da assembléia final do Fórum Mundial de Mídia Livre foi transformá-lo num espaço permanente de articulação entre ativistas de comunicação de todo o mundo, por meio de plataformas livres e interoperáveis de participação. Também será elaborado um decálogo de referência internacional para a garantia do exercício das mídias livres. Em torno desses princípios, o movimento pretende construir uma plataforma de ações que dialogue com a realidade de cada país.
Da mesma forma, deve ser construída, em parceria com os movimentos populares de outras áreas, uma agenda internacional de lutas em torno do direito à comunicação. O objetivo é que os movimentos sociais se apropriem da mídia livre para fortalecer suas próprias lutas, rompendo com a barreira hoje imposta pelos grandes meios privados ou pelos Estados.
Aqui no Brasil, a sociedade civil se organiza na batalha por um novo marco regulatório das comunicações, que garanta a liberdade de expressão para todos e todas, e não apenas para aqueles que detem o controle e a propriedade dos meios de comunicação de massa. A luta agora é para ampliar o número de atores políticos nesse processo e envolver o conjunto da população brasileira neste debate.
Em 2013, no próximo Fórum Social Mundial, na Tunísia, o Fórum de Mídia Livre se reunirá presencialmente uma vez mais. Que até lá tenhamos avançado por aqui na construção de um sistema midiático efetivamente plural e livre no Brasil.
Bia Barbosa é jornalista, integrante do Intervozes e participou da organização do II Fórum Mundial de Mídia Livre na Cúpula dos Povos da Rio+20.