“ O MPL existe desde 2005 da mesma forma, é movimento horizontal, autônomo, onde a discussão vai mais devagar”, disse Mariana Toledo, do MPL (Movimento Passe Livre). “É um movimento social de esquerda, agora é preciso falar”, frisou a militante. Mas não tem receitas, nem quer ter, segundo as militantes. O MPL não pode responder as questões que agora lhe são feitas, inclusive por jornalistas e movimentos de esquerda, mas sobretudo por pessoas “com sede de organização”, como diz Mariana. “Tem muitas pessoas querendo ser lideradas, e nós não queremos líderes. Como politizar essas pessoas?”, perguntou. Muitas outras perguntas, ainda sem resposta, foram feitas durante o debate. Mas todas celebravam a disposição dos manifestantes de lutar por suas reivindicações, o enfrentamento da polícia, a juventude vencendo o medo e não se deixando levar pela mídia.
“O que causa estranheza é pessoas terem tantas respostas neste momento”, disse Sarah de Roure, falando na mesa pela MMM (Marcha Mundial de Mulheres). Ela criticou o projeto governamental de “país rico sem pobres”, a inclusão das pessoas pelo consumo e que se confrontam com a falta de serviços públicos e com a falta de perspectiva de vida. Fazendo um bom apanhado da conjuntura nacional, Sarah falou ainda do aumento do custo de vida, da Copa, da mobilidade urbana e da especulação imobiliária. “É o avanço do capitalismo sobre os territórios e sobre os nossos corpos”.
O crescimento exponencial das manifestações e seu alastramento por todo o Brasil parecem ter surpreendido a todos. Nalu Faria (MMM) lembrou que “não é novidade na História as pessoas se surpreenderem com mobilizações que de repente ganham as massas”, e exemplificou com a grande manifestação das mulheres russas em 8 de março de 1917, cuja reivindicação era “Pão e Paz”. A greve geral viria a seguir e esses movimentos desencadeariam a Revolução Russa de 1917. “Em muitas das manifestações havia a recusa do discurso do Brasil grande, do Brasil potência”, falou Nalu. “Não queremos ser esse Brasil, queremos um Brasil mais justo. Como potencializar a atuação unitária dos movimentos?”, perguntou.
Repensar os movimentos, fazer autocrítica, é necessário, na opinião de Adriana Oliveira Magalhães, Secretária de Comunicação CUT/SP. Para a dirigente sindical, aquela quinta (13 de junho) em que a polícia extrapolou na violência ao reprimir uma marcha de quinze mil pessoas “foi emblemática e levou à unificação da esquerda”. Entretanto, ela diz ser “difícil tirar pauta única das Centrais”. Além da reforma política, Adriana cita outras reivindicações fortes colocadas pela esquerda, “reforma agrária, taxação de grandes fortunas, diminuição da jornada de trabalho, que serão objeto de disputa política e a democratização da mídia, que faz uma disputa partidária”.
Mídia disputa direção do movimento
Não à toa o discurso único e mutante capitaneado pela Rede Globo, serve de base para qualquer análise que se faça do mês de junho que findou, e que ficará na História como o começo de um novo jeito de expressar a luta de classes no Brasil. “Criminalizaram, editaram e, por fim, tentaram pautar o movimento”, disse Rachel Moreno, do Observatório da Mulher. Foi impossível não ver o papel que os grandes meios de comunicação tiveram, junto com a maioria dos políticos, na virada da análise e opinião sobre as mobilizações crescentes, depois de as terem criminalizado e até insuflado a repressão violenta. “As manifestações adquiriram caráter de revolta popular, independente do nosso controle”, falou Luiza Mandetta (MPL). “A guinada na maneira de mostrar o movimento foi uma guinada perigosa”, disse Mariana. “Havia pessoas do bem indo na onda das palavras de ordem da mídia e também vândalos. A mídia tentou até dar dicas de como se portar numa manifestação”.
Se a mídia no início apoiou a violência, não pode evitar que circulassem pelas redes, listas e grupos de vários tipos imagens e vídeos mostrando a ação truculenta da polícia, como a do policial quebrando sua própria viatura; ou várias, comprovando a inércia policial quando foi mais interessante para o que se queria mostrar, como o vandalismo. “As imagens produzidas pelas pessoas mostraram bem o que aconteceu. Temos que produzir conteúdo para circular, construir nossas mídias”, falou Tica Moreno, da ala jovem da Marcha Mundial de Mulheres, saudando o “aumento de jovens feministas que se articulam e colocam as nossas pautas”. Embora a televisão diga que o movimento é convocado pelo Facebook, as feministas sabem que não é bem assim. “A disputa é nas ruas, mas também na internet, que é um espaço a ser ocupado”, falou Bruna Provazi, feminista, roqueira e uma das organizadoras do Festival Mulheres no Volante. “Devemos usar a tecnologia de forma militante, o importante é a organização permanente”.
Transporte gratuito, aborto livre
Um fato com que todas concordaram, como falou Rachel Moreno, é que “destamparam diversas reivindicações que estavam contidas e há disputa no sentido delas e na direção”. Como faz questão de destacar a todo momento o MPL, a conquista da redução da tarifa foi das milhares e milhares de pessoas que foram se mobilizando, sobretudo quando a periferia também começou a ir para as ruas, impedindo o trânsito em várias ruas importantes das regiões leste e sul. “Emocionante ver os jovens na rua”, falou a poetisa e ex-moradora de rua Tula Pilar, “mais ainda quando comecei a ver o povo da periferia, onde fazemos muito movimento de poesia, teatro popular, saraus, que também são atos políticos”.
Pois é, a cultura é viva na periferia, os movimentos sociais atuam o tempo todo, o MPL tem trabalho de base antigo, sobretudo nas escolas. “São muitas razões para eclodir todo esse movimento, que a tv fala que é convocado pelo Facebook”, comenta Maria Fernanda, da SOF – Sempre Viva Organização Feminista. “As condições do nosso transporte são de humilhação, os ricos continuam muito ricos, o governo não deixou de propiciar lucros aos bancos, fazer hidrelétricas e grandes obras que removem as pessoas”. O MPL sempre priorizou a questão do ônibus, mas o transporte tem ligação com as outras questões, educação, saúde, moradia, cultura, disse Mariana. “Quantas pessoas não abandonam tratamentos de saúde, a escola, não tem vida cultural, por falta de acesso ao transporte?”
Uma das primeiras bandeiras a ser queimada, na manifestação que a direita veio violentamente disputar, na quinta-feira seguinte (20 de junho), foi a bandeira da Marcha Mundial de Mulheres. A bandeira dizia ‘Transporte Gratuito Aborto Livre”. “Isso é sinal do conservadorismo presente”, disse Mariana. Ela contou que o machismo é tão grande que a direita diz coisas diferentes do Legume e da Maiara, dois jovens do MPL que apareceram bastante na mídia. “O Legume é o vendido, que tá querendo ser deputado; a Maiara é puta mesmo, uma vadia”. Na concentração para a marcha desse dia, muitos bate-bocas entre militantes dos movimentos e os “pitbulls” puxadores dos blocos verde-amarelos; várias mulheres tem histórias de gestos e palavras machistas que lhe foram dirigidos.
Se o transporte coletivo é péssimo, caro e insuficiente, a mulher sofre ainda o assédio sexual anônimo e o desrespeito quando está grávida, carregada, com crianças. As soluções que se apresentam nunca desqualificam o machismo. “A Assembléia Legislativa aprovou vagão para as mulheres, nós não queremos” , disse Sonia Santos, da MMM, “os homens devem ser coibidos, não nós”. A desqualificação enquanto feministas é algo que acontece inclusive dentro dos movimentos. “É necessário processo mais amplo de questionamento das nossas manifestações”, falou Sara. “Nós, feministas, questionamos a ordem e as relações de poder estabelecidas”.
Foram dias intensos, em que os acontecimentos se precipitaram a cada momento. As manifestações continuam por todo o Brasil, e jornadas de luta unificadas estão programadas, principalmente para 11 de julho. Com plebiscito ou sem plebiscito, com reforma política cínica ou verdadeira, a juventude está cada dia mais consciente da hipocrisia das regras políticas e da moral impostas pelos poderes e pela mídia. “Estamos acordadas há muito tempo” disse Provazi, “participando dos movimentos e não queremos mais ser assediadas, encoxadas, não queremos mais o modo como aparecemos na mídia”. Todas sabem que a jornada será longa e que o embate com a direita não será fácil; os movimentos sociais e partidos de esquerda devem estar unidos, este também é outro consenso. Como diz Tula Pilar, “o povo sabe o que quer sim, o movimento só destampou, a coisa vai esquentar ainda mais!”