Acontecem coisas muito diversas numa conferencia de mulheres, onde estão reunidas cerca de 3 mil delas (2.781 delegadas, mais 200 convidadas e as trabalhadoras do evento), vindas de um processo que envolveu em todo o país cerca de 200 mil mulheres. Elas se (re)encontram e comemoram, abraçam-se, dançam, cantam, batucam, fazem rodinhas de conversa, cirandas, recolhem assinaturas para as moções, compram, emocionam-se. Tudo isso, além da programação propriamente dita, plenárias, mesas redondas, conferencias, shows. Uma explosão de criatividade.
Painel inicial – Vera Soares, Luiza Bairros e Iriny Lopes
A 3ª Conferencia de Políticas para as Mulheres, a primeira sob o governo Dilma, realizou-se sob uma tensão permanente, como disse a Ministra Iriny Lopes. Forte boataria, com a ajuda da grande mídia nacional, criou a principal tensão vivida nas semanas que antecederam esta conferência: a notícia de que as Secretarias Nacionais da Mulher e da Igualdade Racial seriam extintas. A presidenta Dilma fez questão de reafirmar a importância de sua existência e de comprometer-se com a sua manutenção em seu governo. “Diferente do que vem se falando, a secretaria não será extinta. Ela é fundamental como instrumento de governo para que a gente continue avançando na luta pela igualdade de gêneros”, defendeu a presidenta.
Rebeldia 1
Outras tensões estiveram no ar o tempo todo, algumas geradas pela metodologia do encontro, outras por falhas e violências na prestação de serviços, outras criadas pelas próprias participantes da conferência. Estas últimas, as tensões internas, são as mesmas colocadas pela luta de classes no dia a dia, pois todos os segmentos sociais estão representados numa conferência, que pretende ser instrumento de democracia participativa para aferir demandas de todas as tribos. Preconceitos e discriminações “aparecem” no convívio, valores e modos de vida diferente se revelam, e às vezes surpreendem, práticas distantes dos discursos feministas mostram as contradições do nosso caminhar.
Votando…
Foi a participação política, a cumplicidade de gênero, a vivência da solidariedade, da visão coletiva, amorosa e igualitária a formar tantas feministas, valores que conduziram e ampliaram o movimento de mulheres no Brasil, conquistando espaços e políticas. Entretanto, o individualismo e a violência, propagandeados cotidianamente pelos meios de comunicação e por outras instituições, também contaminam as mulheres. Apareceram em várias situações, revelando o quanto a conscientização para o coletivo está distante da maioria da população. Aparecem também as mulheres guerreiras da vida inteira, lutadoras por justiça e liberdade em seus locais, e nunca notícia na mídia. O aprendizado intensivo foi permanente nesta conferência , pela programação extensa para tão poucas horas, pelas manifestações organizadas por segmentos da nossa diversidade.
Mesa coordenadora da plenária final
Enfrentamento ao racismo e à lesbofobia
A mudança de metodologia, priorizando o debate da autonomia econômica e financeira da mulher (todos os grupos no primeiro dia discutiram este tema), deixou apreensivas as mulheres que tem no eixo 9 do segundo PNPM (Plano Nacional de Políticas para as Mulheres) – Enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia -, sua prioridade. A orientação dada foi de que todos os grupos incorporassem na sua discussão as dimensões de raça e etnia, orientação sexual e geracional e houve o painel 2, com lideranças representativas das lésbicas, indígenas e negras, mas não foi considerado suficiente na compreensão de todas as mulheres desses grupos. As mulheres com deficiência, não citadas formalmente nos eixos, nem colocadas nas mesas, unidas a estas, exigiam ter os segmentos incluidos no texto de cada proposta. Propostas para citar também indígenas, quilombolas, povos da floresta, populações ribeirinhas, do campo e da cidade… etc. Ainda bem que na plenária final, a resolução proposta pela metodologia tinha no início do texto esses princípios, nas “resoluções de caráter geral”, ratificando a importância do eixo 9 e reconhecendo “a insuficiência da estratégia da transversalidade”.
Painel 2
A superação dos problemas enfrentados foi uma constante, a SPM agiu rapidamente em todos, mas só foi dado conhecimento para aqueles cujo inconformismo com as situações levou a denúncias e manifestações em plenária. Quase ao final do evento, a Ministra Iriny veio ao microfone para esclarecer as medidas tomadas frente a denúncias de racismo, que teria sido praticado por funcionários da empresa prestadora de serviços. As mulheres negras da plenária foram mobilizadas a ir na frente, encabeçadas pela mãe de Santo Rita de Cássia Maciel, de Minas Gerais, que disse ter acontecido aqui os tipos de agressão recorrentes contra o povo “de terreiro”, e que uma delas teria sofrido inclusive violência física.
Denunciantes e Ministra
“Dialogamos com a empresa”, disse a Ministra Iriny, “no sentido de reafirmar que não toleramos e não convivemos com o racismo na sociedade, não conviveremos com o racismo na Conferência”. As medidas adotadas foram procurar a Ouvidoria da SEPPIR, pelas denunciantes, e abrir Boletim de Ocorrência. A SPM colocou também sua Ouvidoria para acompanhar a questão. “Isso é natural para nós”, falou Iriny, “é para isso que as ouvidorias foram constituídas, elas são uma conquista”. Vários outros problemas aconteceram na “conferencia, que está sob tensão desde o seu início”, segundo a Ministra, alguns dos quais obrigaram a SPM a se explicar e pedir desculpas. “Não houve omissão em nenhum deles, não perdemos a capacidade de dialogar e não compactuamos com o constrangimento a ninguém!”
“hotel de luxo, nao quero não
a gente faz ocupação”
No credenciamento, teve início a maior tensão de todas. Começou porque algumas delegações foram hospedadas em hotéis próximos ao Centro de Convenções Ulysses Guimarães, onde se realizou o evento, e outras estavam em hotéis mais simples e distantes ou alojamentos coletivos. Inclusive as maiores delegações, SP, MG, RS e RJ, cerca de 900 participantes, foram destinadas ao Centro de Formação da CNTI (Conf.Nacional dos Trabalhadores na Indústria), situada em Luziânia (GO). Depois que resolvemos ir, parte de outras delegações – ES, BA, AM, e avulsas – decidiram ocupar os lugares deixados.
Min Iriny esteve na CNTI
Ninguém gostou da distância, mas os segmentos das “barbies/peruas” das delegações, como também o dos partidos de oposição ao governo, sobretudo o paulista (claro!) começaram a espalhar o terrorismo, dizendo que o local era perigoso, que não se poderia deixar o computador, que havia lama e bichos. A reação das militantes – acostumadas a improvisar alojamento nas lutas – foi imediata, a criação de palavras de ordem tentava abafar o alarido das revoltadas, que ameaçaram ir à justiça, retirar-se da conferência, não poupando nem a Presidenta Dilma, na única conferência deste ano em que fez presença.
“hotel de luxo é prá turista
a nossa causa é feminista!”
Aconteceu, segundo as explicações da SPM, que a empresa vencedora da licitação para a organização física da conferência, abandonou o trabalho dias antes da sua realização, derrubando os hotéis que haviam sido reservados, e hotéis continuavam a ser buscados pela equipe do governo até a noite de abertura da conferência, com pouco sucesso. Partes de algumas delegações, sobretudo as representantes governamentais, como as de SP, dirigentes de partidos e organizações sindicais, saíram em busca de melhor hospedagem, utilizando recursos que a maioria não tem.
Assim, a CNTI acabou hospedando apenas 600 mulheres, sendo que a maior delegação, a paulista (344), foi a que menos ocupou os quartos na sede para trabalhadores. Em compensação, foi agradável a surpresa quando encontramos um lugar muito bom, com uma estrutura de clube de campo, quartos confortáveis, bom café da manhã. E a convivência entre as mulheres, que rendeu até uma baita festa, com churrasco organizado pelas gaúchas, que botou muitas prá dançar na noite de quarta-feira, véspera do último dia da conferência. O preconceito contra a classe trabalhadora, seus espaços e suas causas, começava a manifestar-se ali.
Flash da festa/churrasco
Contra a hipocrisia, pela legalização do aborto
Entretanto, o tema de maior disputa na plenária foi – uma vez mais – a legalização do aborto, questão central na luta por autonomia para as mulheres. Boa parte das delegadas, inconformada com o “consenso” construído pela relatoria, e o não debate do tema pela plenária, foi mobilizando uma indignação manifestante, que obrigou a mesa a retomar a questão no final dos trabalhos. Embora a formulação das propostas, a junção de tudo o que saiu nos grupos, tenha sido feliz na maioria dos temas, incluindo este, não poderíamos aceitar a proposta sem colocar claramente a reivindicação de “legalização” do direito ao aborto, conquista muito cara das feministas em alguns partidos e movimentos, e necessária para acabar com a hipocrisia reinante, que permite a quem tem boa condição econômica realizar abortos seguros.
Rebeldia 2
Um racha no movimento feminista brasileiro parecia estar prestes a acontecer, enquanto a pauta seguia com outros assuntos. Rodas de discussão paralelas se formavam e cresciam… Ao final das votações das propostas de todos os temas, a mesa acatou os fortes pedidos de voltar ao assunto. Acontece que houve um acordo entre as maiores e tradicionais organizações feministas e componentes da SPM e da relatoria sobre a questão, com base também na moção que circulou a favor da reivindicação. O texto estava muito bom, mas a escolha de não promover o debate e votação pela legalização deixou alguns GTs, que a aprovaram, insatisfeitos, assim como muitas das ativistas que haviam circulado a moção e apostavam na sua aprovação. Católicas pelo Direito de Decidir e a Liga Brasileira de Lésbicas solicitaram que a questão fosse a voto, como ocorreu em outras reivindicações onde havia divergência.
Painel sobre Autonomia
Vera Soares, que participou da relatoria, defendeu a posição pela descriminalização, lembrando o quanto este tema foi polêmico na campanha da presidenta Dilma, e que “construir um texto de consenso foi o caminho escolhido”. Naiara Malavolta, da LBL e da MMM do RS, defendeu a legalização; a plenária estava toda ouriçada, boa parte se manifestava perto da mesa. A posição contrária veio lá do fundão calado, defendida por uma delegada que portava aquela figura de um “bebezinho”, utilizada há muito tempo pelos fundamentalistas para pregarem contra o direito para todas as mulheres. Ganhamos, e a legalização foi incluída na formulação da proposta que deverá ir para o novo plano de políticas públicas. Foi um dos momentos mais emocionantes da Conferência, pela vitória dos movimentos, que precisavam daquilo.
Cultura e comunicação: estratégicas ou transversais?
GT Educação, cultura e comunicação
Ativistas de outros eixos do plano vigente também se sentiram prejudicadas, sobretudo do 8 – Cultura, Comunicação e Mídia Igualitárias, democráticas e não discriminatórias – ainda que possa também ser trabalhado transversalmente. A politização do tema, a importância da incidência na educação e na formação de valores, a dúvida em relação ao que veicula a radiodifusão comercial (concessões públicas!), o que se entende por cultura, infelizmente, assuntos ainda não popularizados, com necessidade de muita formação. Nesta conjuntura nacional, a luta por um novo marco regulatório das comunicações, que coloque limites na propaganda ideológica permanente a que estamos submetidos dentro de nossas casas, tornou-se estratégica e urgente. O assunto foi tema de uma roda de conversa, a cargo de Rachel Moreno (Observatório da Mulher) e Fátima Jordão (Instituto Patrícia Galvão).
“Tô de olho”…
A autonomia cultural foi o tema 2 do segundo dia de debates, juntando o eixo 8 com o 2 – educação inclusiva, não sexista, não racista e não lesbofóbica. Como sempre acontece nesta junção, a educação acaba ocupando mais tempo nos debates, pois é grande a presença de servidoras na área, como também de educadoras e ativistas. Aliás, aqui existiam alguns educadores (sexo masculino) como delegados. A discussão sobre a dominação cultural exercida, opressora da autonomia e da liberdade, e disseminadora de preconceitos e de doenças de todos os tipos, nunca é feita. O papel da comunicação de massas na difusão dos valores que sustentam a dominação, também não. E é assunto priorizado por poucas mulheres. Rachel Moreno tentou, na plenária, reabrir a discussão, colocando a necessidade das propostas do Eixo 8 e da Plataforma de Beijin no tocante a este tema, terem implementação imediata; também destacou a proposta de introdução nos currículos escolares de leitura crítica da mídia, pois sabia de sua aprovação em alguns grupos. Mas as propostas tiveram aprovação apenas em dois grupos, por isso não foram para debate na plenária. Uma pena.
Painel 3
Outros assuntos importantes, sobretudo para a formação das mulheres, foram temas das rodas de conversa simultâneas: pensar políticas para a pluralidade, historia das desigualdades entre mulheres e homens, as políticas e as diferenças de geração, experiências da gestão pública, orçamento para políticas para as mulheres, um olhar internacional, mulher e participação política. Acontece que elas eram simultâneas também com o horário do almoço!!! E as filas para almoçar, o trânsito difícil entre as mesas, escovar os dentes, levavam mais que uma hora! Fora a exposição e venda de artesanatos e outras coisas interessantes que foi organizado desde os Estados, e nos quais muitas mulheres esperavam encontrar seus presentes de fim de ano. E as filas nos stands dos patrocinadores para receber as lembranças. Além de tudo isso, as organizações nacionais do movimento, de segmentos, apresentações culturais, lançamentos de livros e campanhas, chamavam também para o intervalo do almoço… Uma rica mostra da enorme diversidade que compõe nossas mulheres, mas estressante como uma múltipla jornada de trabalho!
A política e as mulheres
E frustrante quando a gente engole a comida, perde um pedaço de alguma outra coisa para ver aquela conversa que te interessa e, chega lá, foi cancelada! Aconteceu comigo e tantas outras, em relação à roda de conversa “Mulher e Participação Política”, com as deputadas Janete Pietá, Benedita da Silva, Luciana Santos e Luiza Erundina, e com as senadoras Lídice da Mata e Ana Rita. Assunto dos mais importantes às vésperas de um ano eleitoral, num país com um dos piores índices de participação política da mulher, mas o Itamaraty convocou as parlamentares – parece que para acompanhar a delegação estrangeira.
O destaque foi Michelle Bachelet, que fez uma conferência muito concorrida no final do segundo dia de debates. Como sempre, homens e instituições aproveitando e usando o tempo das mulheres. Não poderiam ter previsto horários distintos para as duas coisas? A delegação estrangeira, apresentada no encontro com a Secretária Geral Adjunta da ONU e Diretora Executiva da ONU Mulheres, era bem significativa, composta por representantes de organismos de mulheres em seus países, ou representantes de embaixadas no Brasil – Chile, Peru, El Salvador, Uruguai, Venezuela, Timor Leste, Coréia do Sul, Espanha, Grécia, EUA.
Alegria e prazer ao fim e ao cabo
Talvez o período mais emocionante e emocionado de toda a conferência tenha sido o show de Zélia Duncan. Além de ter uma legião de fãs entre as feministas, ela escolheu o repertório a dedo. Cantou Pagu (música feita com Rita Lee), Raul e Cássia Eller, além de suas melhores e conhecidas músicas, que transformaram a plenária num grande coro dançante… No dia seguinte, foi a vez da moçada cair no samba, com o show do grupo de Brasília, SaiaBamba.
As Blogueiras Feministas participaram da cobertura da 3ª Conferência, leia os artigos no blog. A Abraço (Associação nacional das rádios comunitárias), instalou no espaço a “Abraço no Ar”, realizando seguidas entrevistas e reportagens que podem ser ouvidas no site.
Painel 4
Com tudo, e por tudo, foi realmente uma histórica conferência nacional de mulheres! Cujo resultado é sem dúvida positivo. Com certeza, nas listas de reivindicações estão as demandas mais sentidas pelas mulheres deste Brasil em ebulição, mas a maioria não sabe disto. Para construir as propostas, na prática, em muitas cidades e em alguns dos estados mais importantes, estão mulheres reacionárias, conservadoras, que conquistam espaços doados pelos homens, em governos afinados com os valores da elite racista, machista e capitalista, detentora dos verdadeiros poderes em nosso país.
Precisamos urgente ter liberdade de expressão para todos e todas, ter uma comissão da verdade inteira, superando de vez a opressão da ditadura que fez calar as milhares e diferentes vozes que compõe o nosso povo. Só quando pudermos ouvir com a mesma força, e espaço público correspondente, os milhões de brasileiras e brasileiros ainda hoje sem voz, começaremos a desenvolver nossa democracia. Precisamos concretamente romper com a propaganda ideológica que nos controla, induzindo, a nós e a nossas crianças, ao consumismo, à banalização da violência, do sexo, ao descarte rápido das coisas e das pessoas, ao levar “vantagem em tudo”, ao individualismo.
Precisamos cuidar para que a maior participação da mulher, sobretudo na política, cantada atualmente em verso e prosa, na televisão e no carnaval, não seja objeto de mais uma apropriação e deturpação indevida da causa feminista. Queremos apenas transformar o mundo, salvar o planeta e a vida, para que toda a humanidade tenha autonomia e liberdade, desfrute do bem viver e da possibilidade de criar…
AMB agitando
LBL prepara manifestação
Indígenas apresentam um toré
MMM em reunião
Tambores de Safo
AMB na Tenda Feminista
Clara Charf acompanhou a Conferencia
Tenda da CUT ponto de encontro
Uma Conferencia eficiente
Meninas, ver as fotos, ler a materia é ficar cada vez mais orgulhosa de nossa luta por conquistas e dreitos e, em tempos de descrédito de conferências, de participação popular, é muito bom saber da incidência feminista, dos resultados possitivos frutos de nossa luta preparatória no municípios, nos estados.
Parabens a todas nós mulheres, parabéns para a AMB.
Joana Santos – Forum Mulheres jojoernambuco
Uma Conferencia eficiente
a III Conferencia trouxe um diferencial a diferença de classes. Enquanto mulheres feministas e populares se preparava par discutir o IIPNPM, erros e acertos, novas propostas. Notamo que um pequeno grupo mas atuante faziam coro par “melar” a primeira conferencia de mulheres do governo Dilma. Foi estranho a debandada da empresa que ganhou a licitação dias antes da abertura, foi estranho o desbloqueio dos hotéis, o que deixou a SPM a correr atrás para hospedar os estados de maior delegação. Finalmente foi estranho a incitação que a delegação do poder público de SP fazendo corro “que toda a delegação iria embora”. quem autorizou isso??? A sociedade civil agiu rápido afirmando que estávamos ali pra discutir política para as mulheres e não se ficaríamos em hotel 5 estrelas ou em um alojamento que proporcionou a integração entre estados. Alias algumas delas se hospedaram no CNTI. Por que???
Uma Conferencia eficiente
A Toda Sociedade Brasileira.
Abaixo, manifesto nacional por melhoria da condição de um povo com o estigma doloroso de vidas – 800000 pessoas, 90% analfabetos, segundo o IBGE – relegadas ao abandono e à execração pública diária. Resolvemos apelar para a compaixão e a responsabilidade civil de todos os segmentos da sociedade, por puro cansaço de anos de tentativa inglória de amenizar a dor do despertencimento. O momento é agora, já que o governo federal confirma o intento de erradicação da miséria em nosso país.
Estamos enviando-lhes este manifesto de pedido de socorro imediato ao Povo Cigano, para que todos se sensibilizem e interfiram junto aos órgãos competentes, para incluí-los nas políticas públicas de saúde, educação, erradicação da miséria e de comportamentos preconceituosos que causam tanto sofrimento a esses seres à margem da vida.
Nós, voluntários do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, APAC, Casa de Passagem, e na cidade de Viçosa, Minas Gerais, além do Forum Mundial Social – Mineiro e diversas outras entidades requeremos as medidas emergenciais de inclusão destes brasileiros, que já nascem massacrados pelo fardo vitalício da dor do aviltamento e segregação atávica em nossa sociedade, desabrigados que são da prática do macroprincípio da dignidade da pessoa humana, telhado da Constituição.
Cliquem no link abaixo, no artigo da SEPPIR, que confirma a situação deles. E, por favor, leiam o anexo.
http://noticias.r7.com/brasil/noticias/falta-de-politicas-publicas-para-ciganos-e-desafio-para-o-governo-20110524.html
Se nosso país tornou-se referência em crescimento econômico, certamente conseguirá sê-lo também em compaixão e acolhimento dessa causa universal.
DE GENTE ESTRANHA, em caravana.
Dolorosamente incômoda.
Ciganos. Descobrimos, perplexos, que suas famílias são excluídas dos programas de bolsa-família, saúde, educação, profilaxia dentária, vacinas etc. Sua existência se torna mais dramática, pois não conseguem os benefícios do governo por não terem endereço fixo. Segundo o IBGE, são cerca de 800.000, 90% analfabetos.
Há seis anos, resolvemos visitar um acampamento em Teixeiras, perto de Viçosa. E o que vimos foi estarrecedor: idosas, quase cegas, com catarata. Pais silenciosamente angustiados, esperando os filhos aprenderem a ler em curto espaço de tempo, até serem despejados da cidade. Levamos ao médico crianças que “tinham problema de cabeça”. E eram normais. Apenas sofriam um tipo diferente de bullyng, ignoradas, invisíveis que são. Chefes de família com pressão altíssima e congelados pelo medo de deixarem os seus ao desamparo.
Vida itinerante. Numa bolha, impermeável. Forasteiros no próprio país. Dor sem volta. Passamos a visitar todos que aqui vem. E a conviver com o drama de mulheres grávidas, anêmicas e sem enxoval. Crianças analfabetas aos dez, onze anos.
Em 2008, pesquisando, achamos a Cartilha dos Direitos Ciganos da advogada Dra. Mirian Stanescon Batuli, a primeira cigana com curso superior no Brasil.
Certa vez, ao entregar a Cartilha na rua, ouvimos o seguinte: “se vocês chegassem há pouco, veriam uma dona xingar todo mundo de ladrão, como sempre fazem.” Outra, com os olhos turvos, grávida de dois meses e já com quatro filhos, tentou doar-me o bebê. Um cigano olhou a Cartilha com descrença. Medo cravado na alma. Alguns às vezes nos ligam para ver se conseguimos do prefeito de algum lugar que eles fiquem um pouco mais até que um ou outro menino termine o semestre na escola.
Sugeriram-nos que eles precisam se organizar e reivindicar. Ora, alguém já viu seqüestrado negociar com sequestrador? Como pessoas reféns do analfabetismo, execradas publicamente todos os dias de suas vidas, amordaçadas pelo preconceito e com filhos para alimentar conseguirão lutar por algo? Vide a Pirâmide de Maslow. Quem tem que gritar somos nós. Para eles não sobra tempo de aprender o ofício da libertação, já que são compulsoriamente nômades – sempre partem porque os donos dos terrenos ou algum prefeito desinformado logo dão um jeitinho de “precisar com urgência daquele local”. Assepsia étnica.
A gente descobre, atordoada, que desde a primeira diáspora, quando passaram a viver à deriva, sempre expulsos, eles vivem numa cápsula do tempo. Conservam os mesmos hábitos daquela época, ou seja, sociedade patriarcal, vestuário, casamento prematuro, a prática de escambo e a mesma língua dos antepassados. Tudo isto PORQUE NÃO PARTICIPAM DAS TRANSFORMAÇÕES DA CIVILIZAÇÃO. Jamais tem acesso às benesses das pesquisas tecnológicas e científicas, aos programas governamentais de erradicação da miséria, às celebrações civis agregadoras ou sequer a proposta de ao menos um olhar de compaixão.
E, então, “civilizados” que somos, cristãos ou não, que gritamos por nossos direitos, que votamos a favor ou contra, que existimos, continuaremos a dormir em paz?
Agradecemos a todos que se sensibilizarem com a causa e nos ajudarem.
Abaixo, email recebido de uma senhora cigana , esposa de um professor de Viçosa.
Respeitosamente,
Profª.Bernadete Lage Rocha
l.bernadete@yahoo.com.br
031-88853369
Voluntariado:
APAC – Viçosa-MG
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
Conselho de Segurança Alimentar
MULHERES PELA PAZ
PASTORAL NÔMADE
(O nome foi deletado em respeito à ela)
Bernadete: Li seu artigo e os outros que me indicou e, neste momento, de alma pesada, garganta em nó e olhos úmidos, não sei como expressar-me. A dor que experimento é como chaga viva, sangrenta, para a qual não parece haver remédio. Parece que se instalou em mim toda a dor do meu povo e, tudo que posso, exatamente agora, é deixar que o pranto role e lave os lixos da minha mente, ora poluída pelo desamor, pelo descaso, pela vida miserável a que tem sido obrigados os meus iguais, a minha carne, o meu sangue.
Sei, perfeitamente, o que ser cigano no mundo dos gadjés. Também tenho sofrido preconceito e muitas vezes experimentei “o dom da invisibilidade”, outras tantas, conheci o verdadeiro significado e a dor do desprezo, pelo simples fato de não negar minha origem. A forma que encontrei de não mais deixar-me exposta às feridas que levava para casa, cada vez que fui alvo de repúdio, de zombaria, de desconfiança e de outros tipos de preconceito foi o anonimato, o refúgio da minha casa, de onde raramente saio. Aconselharam-me, mais de uma vez, esconder minha origem para que a sociedade me aceitasse, mas não posso ou quero e, ademais, tenho orgulho de ser uma filha da Casa de Rom, tenho orgulho do meu pai e de sua quinta casta, da minha mãe e da terceira casta à qual pertence.
Sempre sonhei em lutar pelo meu povo, porém fomos criados para sermos pacíficos, para entendermos e aceitarmos que o mundo é dos Gadjés e que somos hóspedes de passagens, além de minoria. Nunca consegui realizar o sonho que acalento de criar “A Escola Itinerante Pró-Ciganos”, para levar o saber, a educação a cada acampamento, a fim de diminuir a linha de desigualdade que separa o meu povo dos Gadjés. Quem sabe, agora, com sua ajuda e mais de quem queira abraçar essa causa, a escola possa ser criada e eu realize o sonho de ensinar a cada ciganinho a descobrir a escrita, a leitura e, através da educação, meu povo aprenda a lutar por respeito à sua condição de ser humano?
Obrigada, amiga, por se importar com os “párias” da sociedade.