Foto: Manifestação em Bahrein 4 de março
MDL: Que se passa actualmente no mundo árabe?
Tariq Ali (TA): Acho que estamos assistindo a segunda onda histórica do despertar árabe. A recusa dos povos em beijar, durante mais tempo, a mão que segura o pau que os puniu durante décadas abriu um novo capítulo na história da nação árabe. A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo. Os que faziam a promoção desta ideia são os que estão mais descontentes. Penso em Israel e nos seus lóbis na Europa e nos Estados Unidos – o que eu chamo a Euro-América -, na indústria militar que vendia tudo o que podia àqueles regimes, mas igualmente nos presionados dirigentes da Arábia Saudita que se interrogam hoje sobre se a epidemia democrática vai propagar-se até ao seu reino tirânico.
Até agora, estes últimos deram refúgio a numerosos déspotas, mas, quando o momento vier, onde vai a família real saudita encontrar refúgio? Os dirigentes sauditas devem saber que os seus protectores ocidentais, antigos ou novos, os deitarão fora sem cerimónia como meias velhas e proclamarão que sempre foram favoráveis à democracia.
Se houvesse comparação a fazer com a história europeia, seria com 1848, quando os levantamentos revolucionários tomaram forma continental, poupando apenas a Grã-Bretanha e a Espanha.
Como os Europeus de 1848, os povos árabes lutam contra a dominação estrangeira: 82% dos egípcios têm uma “imagem negativa dos Estados Unidos”, recordava recentemente uma sondagem. Não julgaram útil pôr a questão a respeito dos europeus… Eles lutam contra a violação dos seus direitos democráticos e contra uma elite cega pela sua própria ilegitimidade. Eles querem mais justiça económica.
MDL: Quais são as características desta “segunda vaga do despertar árabe”?
TA: A situação é diferente da que conhecemos na primeira vaga do nacionalismo árabe. Essa foi essencialmente anti-imperialista e tinha como principal objectivo libertar a região dos vestígios do império britânico.
As actuais revoluções árabes, desencadeadas pela crise económica, mobilizaram a vontade, a criatividade e poder de enormes movimentos de massas. No entanto, nem todos os aspectos da vida humana foram postos em questão. Os direitos sociais, políticos e religiosos são alvo de fortes polémicas na Tunísia, mas não noutros lugares, pelo menos para já. Até agora, nenhum novo partido se formou, o que leva a pensar que as futuras batalhas eleitorais oporão o liberalismo e o conservadorismo árabe, neste último caso sob a forma das Irmandades muçulmanas, versão local da democracia cristã europeia.
Estes últimos tomarão como modelos os seus correlegionários actualmente no poder na Turquia e na Indonésia e confortavelmente instalados no regaço dos Estados Unidos. Os dirigentes da Confraria propõem uma transição ultra-ordenada se Washington os apoiar, o que poderá acontecer. A diferença com a Turquia reside no facto que foram movimentos de massas que derrubaram ou ameaçam os déspotas do mundo árabe. O futuro poderá ainda reservar-nos surpresas se os regimes de transição ou de sucessão provocarem decepções na frente social.
MDL: Como vão reagir os Estados Unidos?
TA: A hegemonia dos Estados Unidos na região foi beliscada, mas não destruída. Ela retornará, mas não da mesma forma. Os regimes pós-despóticos vão ser mais independentes, mesmo que, no Egipto ou na Tunísia, o exército esteja sempre presente para garantir que nada vai longe de mais. O novo grande problema para a Euro-América tem por nome Bahrein. Se os dirigentes deste pequeno reino – que dependem de um exército dominado por oficiais e soldados reformados do exército paquistanês – forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita. Pode Washington dar-se ao luxo de ficar de braços cruzados perante uma tal perspectiva? Ou vão os Estados Unidos implicar as suas forças armadas na manutenção no poder dos cleptocratas wahabitas?
MDL: Como analisa a situação na Líbia?
TA: As raízes dos levantamentos na Líbia não são diferentes dos que explicam os acontecimentos na Tunísia ou no Egipto.
Mouamar Kadhafi dirigiu o país com mão de ferro. Se por vezes recorreu a uma retórica anti-imperialista num passado longínquo, ele colaborou directamente, nas últimas décadas, com a Euro-América. O ideólogo de Tony Blair, Anthony Giddens, fez elogios ditirâmbicos ao Guia. O estilo de vida deste último e as suas políticas excêntricas tornaram-no inapto para modernizar o seu país. Apesar dos quarenta anos que passou no poder, os líbios têm um nível de educação muito pior que os tunisinos e o sistema de saúde do país é muito deficiente.
O balanço de Kadhafi é um Estado de partido único degenerado, as prisões e a utilização da tortura. E tudo isto para manter a sua família no poder. A sua decisão de recorrer ao exército e à aviação para reprimir o seu próprio povo levou à libertação de Benghazi e provocou uma dissidência na instituição militar. Os soldados que recusaram abrir fogo sobre o povo foram executados pelos esquadrões da morte do ditador, como pudemos ver na Al-Jazeera. Fazer querer que este regime é progressista é uma vergonha. Com um país dilacerado e um exército dividido, os dias de Kadhafi estão contados.
Entrevista publicada em Mémoires des luttes, traduzida por Carlos Santos para esquerda.net