Soberania digital e o debate dos ecoprotocolos

A era digital

A revolução nas ferramentas de comunicação, que tem se intensificado desde a década de 1970 com a criação da internet, vem transformando o ambiente social e político de maneira radical e acelerada. A infinidade de formas de interação que esse ambiente proporciona oferece um cenário complexo para o entendimento de como as pessoas se relacionam com a tecnologia e, principalmente, como essa apropriação altera o sistema cognitivo dos indivíduos e as interações sociais.

Se antes utilizávamos mecanismos primários que eram vinculados à nossa condição física e material, a mediação eletrônica das nossas formas de comunicar ampliou as possibilidades de maneira até então inconcebível. Essas interações, além de seguirem as perspectivas de uso para as quais as tecnologias foram criadas, produzem resultados não esperados. Sua reprodução se dá numa velocidade infinitamente maior do que a velocidade com que as relações materiais de comunicação permitiam, de modo a intensificar cada vez mais os impactos que os usos das ferramentas tecnológicas geram na sociedade e nos indivíduos.

Outro aspecto ainda mais complexo dessa discussão surge quando consideramos as relações de poder derivadas da ação comunicativa mediada, transformada e amplificada pelas ferramentas eletrônicas, que ganha maior relevância neste momento em que as mensagens conseguem se tornar praticamente onipresentes por meio das ferramentas digitais. Suas benesses são amplamente difundidas, pela descentralização do poder de produção, emissão e troca de conteúdos em larga escala. No entanto, a possibilidade de disseminação de uma mensagem universal abre brecha para uma relação de dominação tão nefasta quanto as possíveis a partir da coerção material.

Um exemplo clássico de utilização de ferramentas de comunicação para dominação das massas é o caso do nazismo alemão, na década de 30. Os meios utilizados na época, o cinema e principalmente o rádio, possibilitaram a difusão de um discurso único, sedutor e oportunista. Agora a dinâmica é um pouco diferente, principalmente se considerarmos a internet. As redes digitais propiciam a evasão de diversas versões dos fatos, e possibilitam remixes e releituras. Cada usuário escolhe o conteúdo que quer acessar e compartilhar. Mas tal configuração não deixa as redes imunes à manipulação e ao controle.

Ao contrário do que acontece nos regimes ditatoriais, o controle pode se dar de forma submersa numa suposta situação de liberdade – trata-se de restringir os discursos dissonantes somente quando necessário, mantendo o aspecto de liberdade a partir das diversas reproduções distintas, “autônomas”, de um mesmo discurso. É um mecanismo um pouco mais difuso e refinado. Quem controla não é mais só o Estado, mas principalmente as corporações – que, por meio da tentativa de impor legislações restritivas, utilizam de sua promiscuidade com o Estado pra que ele cumpra o papel de vigia.

Soberania ou privatização das redes

A característica fundamental da internet é a sua descentralização. Isso quer dizer que os computadores, ou redes inteiras, têm a possibilidade de se conectarem diretamente passando por diversos caminhos físicos (cabos de conexão) diferentes até se encontrarem para trocar informações. Se um dos nós no meio do caminho deixa de existir, a rede automaticamente tem a capacidade de se rearranjar e criar novos caminhos, como os pulsos elétricos cerebrais que se rearranjam caso determinadas estruturas da rede neural se desfaçam. Essa teoria de redes é fantástica, mas ela só concretizará seu potencial se conseguirmos deter o controle sobre os meios físicos com que essas redes se estabelecem e, também, se tivermos soberania sobre os dados que trafegam nesses cabos.

Para tentar simplificar a discussão, vamos nos ater a dois elementos fundamentais que fazem a rede: a infraestrutura de cabos e conexões e os dados que trafegam pela infraestrutura. Ao observarmos o panorama atual, percebemos que a infraestrutura de conexão que utilizamos não é nossa, mas de grandes conglomerados de telecomunicações que interligam as redes mundiais da internet. Com relação aos dados que trafegam, boa parte deles podem ser particularmente nossos, mas gerenciados de forma centralizada por corporações de software como o Google e o Facebook.

Além da ameaça direta vinda das corporações, grandes conglomerados da indústria fonográfica fazem lobby político para defender leis mais duras contra a cópia e a reprodução não autorizada das obras, dificultando a fluidez cultural e a troca de conteúdos entre os usuários. Para isso, estas empresas reivindicam um maior controle da rede, mesmo que isso represente a quebra da sua neutralidade natural, que é fundamental para termos uma internet livre e soberana. Exemplos dessas movimentações são as recentes discussões no congresso estadunidense sobre os projetos de lei PIPA (Protect IP Act) e SOPA (Stop Online Piracy Act), assim como o ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement) na Europa (veja esse vídeo para saber mais).

Conclui-se que existe um déficit de soberania de uso da internet. Nesse contexto, ela deixa de ser uma oportunidade para os instrumentos de mídia livre e se transforma também numa ameaça aos movimentos de comunicação, que correm o risco de serem suprimidos, limitados ou transformados em produtos das grandes corporações mundiais, de acordo com as inclinações dos agentes privados que controlam a rede. O modelo atual de uso da internet coloca os usuários como reféns dos serviços das grandes corporações, que agem como sanguessugas de dados e se tornam cada vez mais fortes, enquanto a soberania dos usuários é fragilizada.

Portanto, eis a questão: como desenvolver instrumentos emancipadores para que possamos explorar da internet todo seu potencial para o compartilhamento e a distribuição? Ao que tudo indica numa primeira leitura, a resposta está no domínio da infraestrutura de rede física e de software.
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Perspectivas para a autonomia e o compartilhamento

Muitos hacker-ativistas defendem a construção de estruturas próprias de telecomunicação – o que diminuiria a dependência da contratação de empresas que oferecem a infraestrutura de interconexão de redes à internet, pois parte dos serviços digitais necessários à determinada rede seria suprido internamente. Ou seja, a rede poderia oferecer uma série de serviços como um wiki (plataforma colaborativa de produção e troca de conteúdo), um servidor de arquivos ou uma rede social em que as pessoas pudessem compartilhar dados e informações, sem ter que pagar taxas para empresas externas ou ficar à mercê de controle (sendo que o tráfego dos dados passa por conexões que podem não ser seguras ou serem bloqueadas arbitrariamente pelas empresas).

O sonho da construção de uma rede de telecomunicação alternativa seria a possibilidade de constituirmos milhões de redes de coletivos e interconectá-las utilizando nossa própria infraestrutura, ou seja, ligando nossos cabos entre essas redes e compartilhando dados e serviços digitais que não dependeriam de ninguém, a não ser da articulação desses vários coletivos, hacker-ativistas e outros movimentos sociais e interessados que se engajassem na construção de uma rede livre.

Por outro lado, é interessante refletir até que ponto a criação de redes paralelas não constituiria ilhas digitais, num cenário em que diversas redes desenvolvidas em prol da liberdade e da autonomia não pudessem se interconectar pela limitação de estrutura, criando espaços soberanos, contudo isolados – o que descaracteriza a estrutura e o potencial das redes digitais. Como chegar a uma solução intermediária, em que pudéssemos aumentar a soberania sobre as nossas estruturas e informações sem ter que reconstruir a internet? A resposta passa necessariamente pela utilização da internet comercial para interconectar as diversas redes de movimentos, mas tomando o cuidado de utilizar esse recurso sem se tornar refém dele.

Outra bandeira importante de ser levantada, que é transversal a essa discussão, é a reivindicação de uma infraestrutura pública de telecomunicações. Durante os debates sobre o Plano Nacional de Banda Larga, essa pauta se tornou muito relevante para os movimentos ligados à luta pelo direito à comunicação e à liberdade da internet. A oportunidade estava em reativar a Telebras para que esta gerenciasse o plano e oferecesse uma infraestrutura pública que operaria paralelamente às concessionárias privadas, inclusive no oferecimento de infraestrutura para a chamada “última milha”, necessária para ligar os provedores de acesso às casas dos usuários. No entanto, para decepção dos movimentos, esse projeto foi engavetado e a Telebras foi reativada para operar somente na disponibilização de infraestrutura para provedores de acesso, frustando a expectativa de termos um ambiente pioneiro de garantias de uso dessa infraestrutura pública. Diante desse cenário desfavorável, surge a necessidade de os movimentos sociais ligados ao tema debaterem para construir novas alternativas e soluções.

Fórum de Mídia Livre e o debate de protocolos de rede

Diversos coletivos ligados ao direito à comunicação e hacker-ativistas vêm discutindo a construção de um protocolo de redes livres que possa aumentar a soberania dos usuários sobre seus dados na internet e favorecer o diálogo entre as diversas redes. O grupo partiu de conversas no meio digital e convocou uma atividade no III Fórum de Mídia Livre (FML), que ocorreu durante o Fórum Social Temático no início do ano em Porto Alegre, e teve continuidade em junho no II Fórum Mundial de Mídia Livre (FMML), realizado no Rio de Janeiro em meio à Cúpula dos Povos da Rio +20.

Mesmo se tratando de um protocolo eletrônico, seu significado em nada difere dos objetivos de construção de outros protocolos, sendo um acordo, convenção, tratado ou pacto. A ideia de um protocolo emerge porque tal prática permitiria interconectar as várias soluções de software que os movimentos dispõem. Essas diversas plataformas não se conectam diretamente, o que mantém a dependência de grandes redes sociais privadas para ligar os diversos coletivos.

No entanto, a ideia de um único protocolo não parece ser a solução adequada, pois passa pelo mesmo problema gerado pelas grandes redes sociais proprietárias: a padronização e a privatização. A discussão promovida durante o FMML indicou que a criação de um só protocolo não é a saída: especificar um padrão a ser seguido pelos movimentos poderia ser tão opressor quanto o uso de uma rede social mantida por uma grande corporação. Ademais, os diversos coletivos e movimentos já possuem soluções próprias para se comunicarem e não respeitar essa diversidade poderia gerar uma grande frustração no processo de integrar as diversas redes.

A construção de interconexões entre as redes populares não se finda no estabelecimento de um padrão técnico capaz de conectá-las. Ao contrário, essa construção deve ser entendida como um processo permanente de transformação. E para que esse processo se desenvolva, a discussão precisa ser apropriada pelos diferentes atores como uma importante pauta política, para atingirmos níveis cada vez maiores de soberania digital nos movimentos sociais.

Por sermos tão diversos, estabelece-se o desafio ainda maior de romper com a monocultura do Facebook para pensar a valorização da diversidade dos movimentos sociais. Como cada iniciativa se faz visível na internet utilizando as próprias ferramentas de comunicação com a qual já está acostumada? Como torná-las ainda mais efetivas num contexto de compartilhamento do ambiente de comunicação?

Ecoprotocolos

Seguir sob a ótica da constituição de um protocolo seria como impor um caminho único para integração das redes, o que negaria as formas alternativas possíveis para essa integração. É essa mesma fórmula que as grandes corporações utilizam para liderar tecnologicamente e garantir vantagens competitivas nesse ambiente tão complexo. Elas constituem uma monocultura do universal, em que as diversas pequenas redes são forçadas a se integrarem a elas sob pena de se isolarem técnica e informacionalmente.

Devemos romper com essa lógica se quisermos produzir resultados diferentes do que a disputa direta com os meios hegemônicos, que se daria numa relação desigual de poder devido às diferenças materiais entre os atores. Por isso, acreditamos que a discussão sobre formas de integrar as redes de informação contra-hegemônica deve retomar o espírito proposto pela internet: descentralização e diversidade.

O princípio da ecologia é bastante interessante para operacionalizar essa discussão. Numa ecologia se reconhece a eterna incompletude de cada uma das partes e a necessidade de troca entre os atores, para que estes se completem. Ou seja, nunca nenhuma das partes será capaz de se tornar completa em si mesma, senão compartilhando a sua existência com outros pares. Daí surge o conceito de ecoprotocolos (protocolos que se complementam numa ecologia), que se aproxima da proposta das redes P2P (Peer to Peer / Ponto a Ponto), na qual se estabelece uma ecologia de dados em que cada ponto do nó possui uma parte deles. Acreditamos que as redes P2P são uma proposta interessante dentro da discussão dos ecoprotocolos, mas tampouco são a solução universal devido às limitações técnicas para redes de banda curta (low bandwidth).

Para que essa discussão se torne efetiva, acreditamos que devemos seguir dois caminhos complementares e indissolúveis: a discussão técnica sobre formas de possibilitar uma ecologia de protocolos e a discussão política de convencimento dos movimentos da importância do tema, assim como da necessidade de integração para o enfrentamento das hegemonias da informação no mundo.

Estamos caminhando para o rompimento da ideia inicial da monocultura de um protocolo para construção de uma ecologia de protocolos, que possa se autossustentar e florescer a partir de que condições mínimas sejam dadas. Mas num cenário em que a ameaça da monocultura é constante, essa ecologia de protocolos também deve ser cultivada para gerar bons frutos. Para isso, podemos eleger espaços gestadores desse processo – como fóruns e demais pontos de encontro dos atores que pensam e militam nessa temática.

Outra vantagem de se ter uma sistema de ecologias é o cultivo ser solidário e compartilhado. O importante agora é a formação de um consenso a partir do qual possamos constituir esses ecoprotocolos. Por ora, o encaminhamento é continuar discutindo as possibilidades, mas também compartilhar soluções imediatas que possamos utilizar para integrar nossas redes.

O desafio técnico é menor frente ao pacto político necessário para estabelecer meios de compartilhamento de informações e serviços entre os movimentos sociais. Por isso, o desenvolvimento tecnológico deve andar junto com a práxis política, e o engajamento dos movimentos sociais é essencial para a continuidade dessa discussão e a concretização da soberania digital.

Participe dessa construção. Existem dois espaços semeadores da discussão, que esperamos que se multipliquem em pouco tempo. Um deles é o blog organizador de threads de discussão no CulturaDigital.br e outro é a lista de discussão.

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