É 6 de fevereiro, abertura do Fórum Social Mundial em Dacar. A informação que eu tinha é que a marcha de abertura do Fórum, pelas ruas da cidade, começaria às 13h na frente da RTS – Radio Television Senegalaise, que fica bem próxima à Grand Mosqueé de Dakar, uma mesquita enorme.
Cheguei lá por volta do meio-dia e pude notar diversos grupos diferentes de participantes a postos com faixas defendendo suas reivindicações e gritando palavras de ordem. Eram cercados por cordões de policiais que impediam a dispersão. Vi refugiados mauritanos no Senegal; famílias marroquinas clamando justiça por terem sido expulsas da Argélia; mulheres francesas contra estupros por soldados em zonas de conflito africanas; senegaleses contra a exploração dos camponeses; e a Via Campesina contra estupros na área rural do Senegal. Todos os grupos, de certa forma, pregavam algum conceito entre igualdade, paz, justiça, união e democracia. O que mais me chamou atenção, no entanto, era o que pedia pela liberdade do Saara Ocidental. Cantavam em espanhol “Marruecos asesino/ Fuera de Sahara”.
Fui dar uma volta nas cercanias e quando voltei vi que a poucos metros dos saaráuis, algumas pessoas faziam discursos inflamados em cima de um caminhão. O primeiro, um senhor grisalho com jeito de europeu, vociferava em inglês sobre união e igualdade para a África. Na sequência, outro homem começou a gritar em espanhol sobre união. O discurso não fazia muito sentido, parecia uma tradução do anterior. Insistia muito em unidade, igualdade, união. Quando terminou pude entender seu propósito, pois finalizou com um surpreendente “Sahara es de Marruecos”.
Sabe quando você ouve algo tão inesperado que até toma um susto? Pois é. Pensei “esse cara falou isso mesmo?” e comecei a procurar pelo grupo saaráui que tinha visto cerca de uma hora antes.
O país
O Saara Ocidental é um dos poucos territórios no mundo que ainda tem o status de colônia. É o maior destes e o único que fisicamente está em um continente, já que os outros são ilhas. Fica na costa atlântica norte da África e foi colonizado pela Espanha de 1884 a 1975, sob o nome de Saara Espanhol. Quando a Espanha deixou o lugar, em 1975, o território foi dividido entre a Mauritânia (ao sul) e o Marrocos (ao norte). Surgiu então a Frente Polisário, movimento nacionalista que defende a autonomia do Saara Ocidental. Apoiada pela Argélia (fronteira ao nordeste), conseguiu que a Mauritânia liberasse o território. Mas o Marrocos não. O Marrocos ainda explora os recursos naturais da região, rica em fosfato e em pesca, e por isso não tem interesse na independência da nação que hoje é reconhecida pela União Africana e mais 58 países.
Pois bem. O Fórum Social Mundial visa promover diferentes causas sociais, mas fiquei surpreso com a presença de representantes de movimentos tão opostos ali. Um jornalista belga com quem conversei, Julien Vassenbroek, alertou: “Os marroquinos apenas enviaram uma delegação para ofuscar os saaráuis, eles não tem uma causa”. Parece razoável. A delegação marroquina não anda por aí com faixas, bandeiras ou cantando músicas. Apenas estão com as bandeirinhas do país, não parecem indignados com algo, não exigem nada.
Abordo um deles, Abdel Hak Laaki, e pergunto sobre a exploração. “Não é verdade”, diz ele. Complementa dizendo que está ali contra a pobreza, desigualdade e guerras e que quer a união. “Somos contra a divisão! É um território dentro do Marrocos!”, fala, exaltado. “O Tribunal de Haia já reconheceu isso”, acrescenta, para tentar me convencer. Refere-se a uma decisão de 1975, na época da divisão.
A versão saaúri
Converso então com os saaúris. “Estão nos ocupando há quase meio século”, diz Fatimety Zrug. Já Mahub Oulad-Cheikh conta que é irmão de um desaparecido e ele mesmo foi prisioneiro político. “Fiquei preso por três anos no Marrocos”. Mahub foi detido em 1989 na fronteira com a Argélia, por ser um ativista da libertação e afirma ter sido torturado.
Outra, Yamila Sid Ahmed, vendo que eu era da imprensa, vem contar que há violência sim. Segundo Yamila, a polícia marroquina matou seu irmão, Said, de 26 anos, no último dia 22 de novembro, quando ele saiou de um cyber café à noite. “Abordaram-no pedindo pelo cartão da internet [um carnê], mas não estava com ele, então deram um tiro na cabeça e outro no peito”, fala Yamila, indignada e com os olhos marejados de raiva. Said virou um mártir do movimento desde então, e os marroquinos “recusaram-se a fazer autópsia para dizer a causa do morte”. Segundo ela, não foi lhe dada nem a dignidade de um enterro, pois o corpo é mantido até hoje em um hospital militar marroquino.
A ONU procura uma solução, mas como a maioria das suas propostas, o processo é moroso. Enquanto isso, os saaúris seguem explorados e seu povo continua morrendo.