Quando o sistema financeiro colapsou em 2008, eu pensei que tinha chegado a nossa hora. As ruas ficariam cheias de gente protestando contra a Besta Capitalista; o governo iria se mover para a esquerda, em resposta; as pessoas iriam repensar como queriam viver. Ainda assim, embora tenha havido tantos protestos no Wisconsin e, no exterior, na Espanha e na Grécia, muitos eleitores ainda vão se mover para a direita; o antigo regime financeiro foi restaurado. De certa forma isso não é surpreendente. Quando as coisas dão errado, as pessoas tanto querem mudar como aderir, por comodidade, ao que é familiar. Mas a esquerda não tem conseguido nem nos EUA nem em toda a Europa tornar-se uma voz confiável de reforma.
À medida que controla tanto o dinheiro como a mídia, a Besta pode, é claro, proteger-se. Nessa crise, os autores da Grande Recessão conseguiram se safar, ao culparem algumas pessoas em particular, ou políticos, em vez de admitir falhas estruturais no sistema. As classes dominantes não vencem invariavelmente: pelo Norte da África e no Oriente Médio, os oprimidos estão se levantando contra seus tiranos bizarros. Nem, mais perto de casa, seria correto culpar a letargia das massas; as pessoas são cheias de energia política, mesmo que contra imigrantes e estrangeiros.
O fato indigesto é que a esquerda incendiária cada vez importa menos no modo como as pessoas pensam a respeito de como viver junto. E se isso é há muito verdade nos Estados Unidos, onde a esquerda só ocupou uma pequena parte do discurso público, a decadência da esquerda agora marca o velho lar da Europa Ocidental, como na Suécia ou na Grã Bretanha. A palavra “progressista” parece não ser outra coisa que o despertar da “social democracia”. Embora Think tanks abundem nos EUA e na Europa e produzam propostas razoáveis e válidas de justiça social, as bizarrices da política parecem induzir um olhar fixo de indiferença dentre o grande público.
Como um sujeito de esquerda de velha geração, eu me preocupo com tudo isso. Seria lamentável que o futuro consistisse apenas em diferentes sombras de capitalismo. Dentre as anotações médicas e fúnebres, eu me perguntaria como a esquerda no poder se apequenou. Este é um problema, cheguei a pensar, mais social que ideológico, no fundo.
Você se torna confiável quando os outros o levam a sério mesmo que não concordem com você. Para ser levado a sério, você precisa saber quando se manter em silêncio e como escutar bem; assim você estende o respeito e o reconhecimento dos outros. A filósofa Anne Phillips insiste corretamente na importância da “presença” na política, com o que ela quer dizer alguém, um indivíduo ou grupo sentir que pode conduzir uma discussão em termos igualitários. Presença é algo que alguém de fora tem de obter por seu comportamento. Somar pontos não vai, sozinho, admiti-lo na vida de outras pessoas; vencer um argumento sobre eles não o inclui no seu pensamento a respeito de como viver. Quer dizer, a credibilidade habita mais o reino da receptividade que o da assertividade.
Se isso é correto, um certo tipo de política se segue. Uma política que iria se concentrar mais na sociedade civil que na política eleitoral – particularmente na política eleitoral em nível nacional. Uma comunidade organizada ou o ativismo das redes precisa ser honrado por si mesmo, não como abelhas trabalhadoras na colmeia da política nacional; é provável que essa comunidade organizada ou o ativismo das redes não tenham desenvolvido suas habilidades de bons ouvintes e de discussão que gera respeito. Nos EUA, na Dinamarca, na Finlândia e na Grã Bretanha, a direita tem colonizado redes políticas efetivas, construído comunidades viáveis e sustentáveis, mesmo que seus propósitos em nível nacional fracassem.
A direita conseguiu uma façanha genial: embora grandes montanhas de dinheiro estejam por trás de muitos de seus esforços organizativos, no fundamental as organizações de direita tem se comportado de maneira confiável quando fala em nome das pessoas comuns. Eu espero que a esquerda tome de volta esse território comunitário; mas fazer isso requer uma mudança de mentalidade de nossa parte.
A corrida política gira em torno da proposição segundo a qual se você tem um problema, nós temos a solução. Propor uma solução para os problemas de outras pessoas – particularmente se esses problemas se tornam questões complicadas, como o desemprego de longo prazo – pode não ganhar por si só presença e respeito. Nossa solução pode parecer correta em abstrato, mas é só o que ela é – longe dos traumas familiares e da desmoralização, por exemplo, que aflige o desempregado de longo prazo.
Uma linguagem confiável de mútuo engajamento deve, eu penso, transcender o discurso da resolução de problemas; tem de responder às experiências de ambiguidade, dificuldade e derrota.
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Eu pus tudo isso na cabeça ao ler um estudo recente do YouGov, uma instituição de pesquisa britânica. Esse estudo mostra as atitudes do público em relação aos políticos progressistas e dos progressistas nos Estados Unidos, na Grã Bretanha, na Alemanha e na Suécia. A pesquisa fornece um pano de fundo para um recente encontro em Oslo de dirigentes da esquerda europeia, políticos todos ameaçados pelas tendências de direita em seus países. Para Ed Miliband, o líder do Partido Trabalhista da Inglaterra, Jens Stoltenberg, primeiro-ministro da Noruega ou John Podesta, presidente executivo do Centro para o Progresso Americano, o estudo não pode ter sido uma leitura mais reconfortante.
A pesquisa da YouGov (disponível em policy-network.net) traça um quadro pessimista da confiança pública nos governos para resolver os problemas sociais. Essa confiança é fraca em todos os quatro países pesquisados e as pessoas duvidam especialmente de que a arrecadação de dinheiro possa fazer muita coisa. Os progressistas estão, é claro, mais simpáticos à taxação, em princípio, mas estão quase tão desconfiados de que governos maiores, por serem maiores, porão muito mais em prática. Esse achado é notícia quente, mas o estudo chegou a mim com um fato surpreendente: uma grande parcela de eleitores de centro disseram que estão dispostos a pagarem taxas mais altas se os políticos forem confiáveis – até 17% dos republicanos dos EUA topariam isso. A questão da credibilidade tem mais relação com o comportamento dos governantes do que com o conteúdo político.
Em todos os quatro países, o público em geral tem “em muito baixa conta a capacidade do governo de resistir aos interesses de alguns grupos”. Os números aqui são assustadores: só 15% nos Estados Unidos acham que os políticos resistirão a uma poderosa influência externa, enquanto na Inglaterra são 16% , 12% na Alemanha e 27% no país que um dia foi do padrão-ouro, a Suécia. Nem é complacente o público a respeito dos interesses externos; em todos esses países há massivas preocupações com as corporações “que só querem saber de lucros” (85% na Inglaterra acha que sim, enquanto 83% na Alemanha, 69% nos EUA e 60% na Suécia). O comportamento de Obama nos assuntos internos poderia servir como um emblema dessa combinação – sua retórica progressista casada com uma disposição de parecer dócil aos interesses poderosos.
A falta de confiança na esfera pública tem sido aguçada pela desigualdade arbitrária na vida cotidiana. Os pesquisadores da YouGov verificaram que uma maioria concordava que “quem você conhece é geralmente mais importante para conquistar algo na vida do que o trabalho duro e jogar segundo as regras?” (até 46% dos estadunidenses subscreve esta via, a despeito do histórico otimismo do país a respeito das iniciativas de ir em frente). As pessoas aplicam o medo da desigualdade arbitrária a si mesmos e a suas crianças quando discutem o valor de uma educação universitária; a maioria pensa que isso tem pouco valor no longo prazo (salvo os suecos, que tem um mercado de trabalho robusto). A maior parte desse medo vem da contração da renda da classe média em todo o Ocidente – o famoso “encolhimento” da classe média. Uma consequência desse encolhimento é o desejo de evitar riscos, cujas exigências por reformas estruturais parecem só agravar o quadro. Dentre os correspondentes de esquerda da YouGov, só 4% dos britânicos, 10% dos estadunidenses, 7% dos suecos e 11% dos alemães dizem que arriscariam a segurança de seus empregos na busca por “uma maior participação nas tomadas de decisão do meu empregador”.
Um estado corrupto, um sistema econômico indiferente aos bens sociais, uma sociedade na qual oportunidades iguais e realizações educacionais contam pouco, uma preocupação dominante com a perda de empregos: quatro crenças que combinam para produzirem sentimentos de terror – a mais paralisante e isolante das emoções. Em Oslo, no entanto, os dirigentes políticos e acadêmicos têm outra coisa em mente; eles falam da economia social de mercado, da socialdemocracia para além do estado nação, de empregos verdes e de crescimento econômico. Nada na agenda a respeito de organização comunitária: nem houve organizações de base convidadas. Na verdade, ninguém “desimportante” falou no evento.
Não há nada de novo em argumentar que deveríamos dar mais atenção à construção de uma política comunitária orientada na sociedade civil. No alvorecer do século vinte, a esquerda tinha se dividido em duas: uma esquerda política focada em eleições e lidando com governos e uma esquerda social envolvida em apoio à construção de moradias, cooperativas bancárias e outras associações voluntárias. Os dois lados se confrontaram em 1900, na Exposição Universal de Paris, numa série de debates dedicados à “Questão Social”; na ocasião, a esquerda política apresentou vários manifestos por reformas nos governos e pela organização de sindicatos, enquanto a esquerda social mostrou fotografias de ruas e edifícios em que trabalhadores organizados trabalhavam. A despeito do acordo de ambos os lados quanto aos males do capitalismo, eles discordavam quanto a como responder ao sistema: a esquerda política, representada pelas centrais sindicais alemãs, acusava seus oponentes de falta de disciplina e de força necessárias para a adesão aos movimentos de massa; a esquerda social defendia os trabalhadores dos assentamentos e moradias populares estadunidenses, argumentavam que só a cooperação cara a cara, não importa o quão informal ou bagunçada for, poderia resgatar imigrantes e outras pessoas do isolamento nas cidades. Um lado queria aderir à política; o outro via a política como algo que começa pelo engajamento, empatia e construção de confiança.
Esse conflito entre essas duas tendências durou, e o líder comunitário de Chicago, Saul Alinsky foi, penso, o seu mais agudo analista. Nos anos 60 e 70, ele contrastou a situação desconfortável dos dirigentes políticos de esquerda, que insistiam em definir as tomadas de decisão e em ter objetivos definidos, com o trabalho local que ele estava fazendo, cuja característica, ao agregar vizinhos para cooperarem junto, era de ser mais fluído e informal. A diferença repousa no objetivo mesmo do esforço radical. Em meio ao programa de reformas Great Society [ do governo Lyndon Johnson, para reduzir a pobreza e a injustiça racial nos EUA], Alinsky enfatizou que reunir as pessoas para participarem com outras de ações comunitárias era um projeto inerentemente radical por si só. Ele não praticou políticas de identidade do tipo das que dependem da solidariedade de classe, étnica ou racial; ele quis que grupos diversificados se conectassem e interagissem – uma política bagunçada e informal que ele assimilou em Chicago, a partir dos assentamentos liderados por Jane Addams, e do movimento Trabalhador Católico, fundado por Dorothy Day e Peter Maurin; dos “associanistas” da Inglaterra e de A.D. Gordon, em Israel.
Hoje, a direita colonizou e corrompeu o trabalho na sociedade civil de duas maneiras. Como no programa “sociedade grande” da Inglaterra, as iniciativas do terceiro setor e do setor informal foram usadas como peneira para tapar o sol do corte de gastos do governo; voluntários não pagos foram usados para tomarem o lugar de profissionais pagos em escolas, na política e no cuidado de idosos. Voluntários vão e vêm, sem que se acumule expertise. Pior, organizações civis são forçadas a competirem por financiamentos de doadores privados ou de governos. A economia de mercado invade e diminui a cooperação entre os grupos.
Os alemães e os suecos têm resgatado o terceiro setor tanto desses males, ao darem segurança e importância às demandas da sociedade, com financiamento público, enquanto asseguram que o “não lucrativo” significa exatamente isso. Instituições de caridade cristãs, judaicas e islâmicas, por exemplo, são encorajadas a trabalharem juntas. No interior das organizações os voluntários têm um verdadeiro treinamento e são exigidos deles compromissos de longo prazo. Assim o terceiro setor pode funcionar, mas nos EUA e na Inglaterra esse tipo de coisa parece uma zona turva para a ação da esquerda, já que as sombras do neoliberalismo são muito profundas.
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O ativismo não lucrativo não é uma panaceia para os males da sociedade, como a socióloga Nina Eliasoph deixa claro no seu livro fino Making Voluntários [Construindo Voluntários]. Ela traça o quadro dos “usos e abusos da esperança” em projetos locais de ativismo – que desmoronam, pensa, ao alimentarem falsas esperanças, desmoralizando-se frequentemente dentre os voluntários mais antenados. Ela recomenda às organizações que estabeleçam objetivos alcançáveis e modestos, e que tornem todos os participantes de alguma maneira experts no que estão fazendo. Isso é apenas o bom senso comum, mas ela também entende , assim como Addams e Alinsky, antes dela, que “administrar conflitos não é o mesmo que fazê-los desaparecer”. As organizações de base que são viáveis precisam manter as pessoas juntas mesmo que as conquistas levem tempo e estejam além de seu alcance; isso só pode ser feito fazendo da experiência da cooperação um fim em si mesmo.
Grupos como o dos Médicos Sem Fronteiras estão juntos há muito tempo, fazendo um trabalho muito frustrante, em larga medida porque as equipes que trabalham nas missões de campo se dedicam intensamente à manutenção do espírito de corpo. Eles fazem isso, do meu ponto de vista, fazendo da receptividade aos outros algo mais importante que a assertividade.
Algumas pessoas na esquerda desistiram do movimento sindical, o que é compreensível, mas eu penso que se trata de um grande erro. Embora muitos sindicatos tenham se tornado burocracias esclerosadas, obsessivas com privilégios de senhorio, nem todas são assim. O “novo movimento sindical” (que na verdade começou nos anos de 1880) soube ampliar a agenda e o apoio mútuos fornecidos pelos sindicatos, combinando o engajamento direto dos trabalhadores com ação de massa. O sindicato internacional dos trabalhadores na área de serviços, por exemplo, foi bem sucedido ao trazer as trabalhadoras e os imigrantes, mas não apenas ao engajamento numa luta sem fim do trabalho contra o capital, mas também fornecendo serviços sociais aos seus membros, encorajando a socialização informal e até promovendo as artes.
Eu venho pensando é numa mudança de temperamento da esquerda. Ao longo do século vinte a esquerda política teve mais influência que a esquerda social, com o lado político parecendo mais poderoso em suas soluções e políticas. Menosprezou-se a política social, enquanto terapia e engajamento social como um fim em si mesmo. Esse escárnio se provou autodestrutivo; políticos de esquerda mostraram-se mais adeptos de arguirem e se exibirem do que de se conectarem com outras pessoas.
Talvez a solidariedade seja o nó do problema. O desejo por solidariedade busca transcender as diferenças; a bagunça que é a vida cotidiana parece um impedimento à ação política. Enquanto isso, a esquerda social, dos velhos “novos sindicalistas” a organizadores comunitários como Alinsky, tem pretendido se engajar com a ambiguidade, diferença e incompletude. Eu não acredito que esse tipo de engajamento possa reduzir o caráter espontâneo da boa vontade. Engajar-se bem com os outros requer habilidades, seja a de escutar bem ou de cooperar com aqueles de quem se diverge.
Uma mudança de temperamento não significa a rejeição da política – como isso seria possível? Em princípio, renovar a sociedade civil de esquerda deveria restaurar a confiança no ativismo. A YouGov alerta, no entanto, que as pessoas estão céticas a como os políticos se comportam, quaisquer que sejam os seus programas. Retomar a confiança significa, paradoxalmente, reconhecer os limites da ação política e enfatizar a força inerente de agir na sociedade civil. A direita colonizou este território; a esquerda tem de toma-lo de volta. Na prática isso implica dispender mais energia e dinheiro em questões locais do que na política eleitoral nacional.
O Partido Democrata tem em larga medida considerados os votos da esquerda como garantidos; um localismo mais robusto poderia implicar uma grande pressão sobre os nossos dirigentes em nível nacional – assim como ocorreu com a direita. No que nos concerne, eu penso que esta é uma questão de pôr de volta o social no socialismo.
(*) Richard Sennett é professor na New York University e na The London School of Economics. Autor, entre outros livros, de A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo (publicado no Brasil pela Record).
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: http://agenceglobal.com/Article.asp?Id=2600