Debater a questão do espaço, no teatro e na cidade, foi o que levou o Coletivo de Galochas a construir seu trabalho na região da Luz. Em primeiro lugar durante o ano de 2011, na Ocupação de Moradia Prestes Maia, habitação retomada por mais de 300 famílias em dois prédios abandonados no centro de São Paulo. Agora neste ano, as crianças da região da Luz , estigmatizada pelo apelido de “cracolândia”, já se acostumaram a reconhecer e seguir a turma do teatro, quando chega aquela trupe de jovens ensaiando e carregando pelas ruas cenários, figurinos, luz e som.
“O grupo sempre teve a perspectiva de trabalhar o debate em torno do espaço”, diz Rafael Presto, dramaturgo e diretor do Coletivo. Ele explica as duas instâncias que fazem parte deste debate. “Uma é formal, teatral, e propõe um teatro que aconteça em outros espaços, não apenas os determinados para o teatro acontecer; tentar criar outro circuito de produção e circulação do teatro. A outra instância é o debate político em torno do espaço, compreender o projeto que está por trás da produção do espaço, pois este está sendo produzido o tempo todo”.
Aquela região do centro foi a escolhida pois ali há diversos projetos que “movimentam” e disputam o espaço. Abandonada por décadas pelo poder público municipal, deteriorada, a região passou a ser, nos últimos anos, ameaçada de completa descaracterização por esse mesmo poder pelo Projeto Nova Luz, com expulsão de moradores e privatização dos espaços. “A região da Luz concentra todas as questões em discussão”, explica o dramaturgo, “são vários projetos voltados para a reestruturação física do espaço – centro legal, Nova Luz, operação sufoco – cujo fim é a especulação imobiliária. Pretendem valorizar aquele espaço para que a empresa privada invista ali, mas a justificativa utilizada é o crack, uma questão de saúde pública”.
Pirataria contra a violência de Estado
“A escolha do tema pirataria começou na ocupação, na busca para encontrar um interlocutor ficcional entre a gente e o nosso público, tanto os moradores da ocupação, como os que viriam para conhecer”, explica Presto. “Não queríamos contar uma peça sobre uma ocupação e o tema pirataria respondeu a isso, pois os piratas surgem num momento histórico em que o Estado compreende que para ser Estado precisa deter o monopólio da violência”. Na época, Idade Média, a violência era a regra e existiam também os corsários, que com uma carta de seu rei pirateavam em nome do Estado. “Um tema que fazia sentido estando na ocupação”, continua o diretor, “pois pirata é a pessoa que não aceita o monopólio da violência do Estado e defende a violência para saquear, os piratas queriam continuar independentes. É como o movimento de ocupação, é um uso de violência perante as leis do Estado, porém uma violência necessária para fazer valer o direito à moradia, garantido pela Constituição e quem não tem o direito e o acesso à cidade, só ocupando”.
Depois de um ano do projeto “Piratas de Galochas” na Ocupação, ficou o “desejo de circular nossa peça em outros lugares, onde tivesse importância nossa ação enquanto disparador do debate em torno do espaço”. Assim, o grupo levou o teatro a outras ocupações de moradia na região, mas também no Paço das Artes abandonado na USP, “um espaço maior que o Paço das Artes e abandonado”, e ainda numa comunidade em Caucaia do Alto. Com o apoio do Projeto VAI, da Secretaria Municipal de Cultura, eles puderam transformar o espetáculo numa “peça passeio”, que percorrerá trechos das ruas da “cracolândia”.
É uma nova peça, com mudanças muito além do aspecto formal. “São três horas de preparação para a peça acontecer, o formato passeio é difícil prá caramba”, conta Presto. O Coletivo fez um mapa das instituições, condomínios e comerciantes do local, e graças à colaboração de alguns deles, que permitiram guardar instrumentos da encenação, foi possível construir a peça. Além destes apoios, a que muito agradecem, ele faz questão de destacar a parceria do Pessoal do Faroeste, outro grupo de teatro, cuja sede na Rua do Triunfo abrigou o principal dos cenários e figurinos. “Sem eles o espetáculo não seria possível”.
Arte contra o preconceito
Carregar pelas ruas cenário, luz, figurinos, realmente não é fácil, mas “estar lá todos os dias ensaiando gerou uma identidade com os moradores”. O Coletivo de Galochas espera ainda que a proposta de um passeio por aquele trecho urbano “produza uma vivência do público com a região onde está a peça, uma experiência com aquele espaço, diferente do preconceito que as pessoas geralmente tem com este pedaço da cidade”. Para justificar todo o “desinvestimento” social do Estado no local e as bases da privatização, a grande mídia tem mostrado aquelas ruas como perigosas, cheias de traficantes e assaltantes, e o poder público tem investido bastante em policiar a região.
Alguns edifícios históricos tiveram altos investimentos e transformaram-se em espaços culturais belíssimos, como o Museu da Lingua Portuguesa, a Sala São Paulo , mas os moradores dali não tem acesso a eles. “Quando resolvem fazer alguma intervenção urbana, não há preocupação com o humano que existe ali”, opina Presto, “e se o humano não é o motivo, vira projeto de gentrificação (substituição de uma classe por outra num processo de urbanização)”. Para os jovens, oriundos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, a experiência da presença cotidiana ali tem sido muito boa. “As crianças descem das casas para ver quando chega a ‘turma do teatro’, eu acho isso altamente político. Ficará uma sensação de ausência quando acabarmos, com certeza, e essa sensação de ausência é um dos produtos mais políticos que deixaremos”.
O dramaturgo faz questão de dizer que vários outros grupos defendem perspectiva teatral semelhante a do Coletivo de Galochas. “Tem muitos grupos fazendo esse teatro, buscando ressignificar a cidade em alguma medida”. Refere-se tanto aos grupos que se apresentam em espaços alternativos, como aos que abrem sedes em lugares distantes, nas periferias. “Tudo aponta para a direção de criar um novo circuito de produção e circulação para a cultura. É a luta por uma arte pública, compreendendo que a cultura é um bem tão necessário quanto comer, morar…”.