O único caso de Guantanamo que será julgado em Nova York

Democracy Now! A coluna semanal de Amy Goodman traduzida para o português

O único caso de Guantanamo que será julgado em Nova York
11 de abril de 2011, de Nova York, Amy Goodman

No mesmo dia em que o Presidente Obama lançou oficialmente sua campanha para reeleição, o procurador-geral de seu governo, Eric Holder, anunciou que o julgamento dos principais suspeitos dos ataques de 11 de setembro de 2001 não será realizado em tribunais federais, mas sim diante de polêmicas comissões militares na prisão de Guantánamo, em Cuba. Holder culpou os membros do Congresso, os quais, segundo afirmou, “intervieram e impuseram limitações que impedem ao governo levar a julgamento, nos Estados Unidos, qualquer prisioneiro de Guantánamo.” No entanto, um caso de Guantánamo será julgado em Nova York. Não, não se trata do julgamento de Khalid Sheikh Mohammed, nem de nenhum de seus supostos cúmplices. Nesta semana, serão expostos à Suprema Corte do estado de Nova York os argumentos contra John Leso, um psicólogo acusado de participar de procedimentos de tortura na prisão de Guantánamo, que Obama prometeu fechar, mas não cumpriu.
Leia também o comentário da equipe do portal.
A União pelas Liberdades Civis de Nova York e o Centro de Justiça e Responsabilidade (CJA, na sigla em inglês) apresentaram o caso em nome de Steven Reisner, psicólogo de Nova York e assessor dos Médicos pelos Direitos Humanos. Em torno de Reisner agrupa-se uma crescente quantidade de psicólogos que se manifestam contra a participação de colegas nos programas de interrogatórios do governo dos Estados Unidos, os quais, em sua opinião, equivalem à tortura. Ao contrário da Associação Médica Estadunidense e da Associação Psiquiátrica Estadunidense, a Associação Estadunidense de Psicologia, maior associação de psicólogos do mundo, negou-se a implantar uma resolução aprovada por seus membros que os proíbe de participar de interrogatórios em lugares onde se viola o direito internacional ou a Convenção de Genebra. O Dr. Reisner é filho de sobreviventes do holocausto e concorre à presidência da Associação Estadunidense de Psicologia, em parte para obrigar o cumprimento desta resolução.

O Dr. John Francis Leso é major do Exército dos Estados Unidos e ex-chefe do serviço de psicologia clínica do Centro Médico Walter Reed de Washington D.C. Segundo o comitê de Justiça e Responsabilidade, o Dr. Leso “dirigiu a primeira Equipe de Assessoramento em Ciências do Comportamento (BSCT, na sua sigla em inglês) em Guantánamo, entre junho de 2002 e janeiro de 2003.” Ali foi “co-autor de um memorando de políticas de interrogatório que incorporavam técnicas ilegais adaptadas a partir de métodos utilizados pelos governos da China e Coréia do Norte contra os prisioneiros de guerra dos Estados Unidos”.

Reisner arquivou uma queixa na agência estatal de Nova York, o Escritório de Disciplina Profissional de Nova York (OPD, na sua sigla em inglês), responsável por outorgar a habilitação aos psicólogos, na qual solicita uma investigação e ação disciplinar apropriadas. Reisner explicou por que optou por este caminho: “Os profissionais da saúde estão sujeitos a valores morais superiores a interrogatórios ou a homens e mulheres do exército. Estão sujeitos a um código de ética e este código de ética surge do fato de que as pessoas são mais vulneráveis ante os profissionais da saúde porque eles têm acesso a informações privadas, debilidades, problemas psicológicos e físicos, e acessam tal informação porque juraram não abusar dela para causar dano. Portanto, quando profissionais da saúde utilizam mal essa informação e seu conhecimento, nós temos de submetê-las a suas obrigações éticas e nos assegurarmos de que essas pessoas prestarão contas de suas ações, revogando-lhes sua licença, se necessário.”

O Escritório de Disciplina Profissional de Nova York negou-se a dar início a uma investigação, e por esse motivo, Reisner tenta obter uma ordem judicial que obrigue o organismo a estudar o caso.
O oficial Leso recomendou três categorias de intensidade para os interrogatórios em Guantánamo em função da capacidade de resistência do prisioneiro. A “Categoria III” inclui “20 horas de interrogatório diário, isolamento extremo sem direito a visitas de profissionais da saúde ou profissionais do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, restrições alimentares durante 24 horas uma vez na semana, palcos desenhados para convencer ao prisioneiro de que poderia passar por uma experiência dolorosa ou fatal, conseqüências físicas não consideradas lesões, remoção das roupas e exposição ao frio ou à água fria até o momento em que o prisioneiro comece a tremer.”

Acredita-se que Leso teria participado do interrogatório de Mohammed Al-Qahtani, um jovem detento do Afeganistão a quem chamam de “20º seqüestrado”. O interrogatório de Al-Qahtani foi tão severo que logo depois suas acusações foram retiradas. Ele é representado pelo Centro de Direitos Constitucionais, o qual, em resposta ao anúncio do procurador-geral Holder, afirmou: “O governo de Obama admitiu uma falha política hoje ao anunciar que julgará os acusados dos ataques do 11 de setembro mediante o profundamente viciado sistema de comissões militares ao invés de fazê-lo em tribunais civis segundo o Artigo III da Constituição, como se tinha previsto inicialmente. Ao mesmo tempo que os Estados Unidos excitam a aplicação do Estado de Direito no Oriente Médio, subverte-o em sua própria casa.”
É longa a lista de nomes de servidores públicos estadunidenses envolvidos com tortura, no entanto, nenhum deles enfrentou qualquer acusação: George W. Bush, Donald Rumsfeld, John Yoo, Alberto Gonzales e os psicólogos, coronel Larry James e major John Leso, entre outros. Ao mesmo tempo em que todo o mundo celebra a “primavera árabe”, nós, dos Estados Unidos, deveríamos virar a página e celebrar também uma “primavera estadunidense”, que recuse a tortura e não tenha medo de fazer uso de seu sistema judicial para julgar terroristas ou torturadores.

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Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
@2010 Amy Goodman

Texto en inglês traduzido por Fernanda Gerpe y Democracy Now! en español, spanish@democracynow.org

Esta versão é exclusiva de Estratégia & Análise para o português. O texto em espanhol traduzido para o português por Rafael Cavalcanti Barreto, e revisado por Bruno Lima Rocha. As opiniões adjuntas ao texto são de exclusiva responsabilidade dos editores de Estratégia & Análise.

Amy Goodman é âncora do Democracy Now!, um noticiário internacional que emite conteúdo diário para mais de 650 emissoras de rádio e televisão em inglês, e mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro “Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos”, editado pelo Le Monde Diplomatique do Cone Sul.
Comentário da equipe do portal

Não surpreende o estado de exceção dos EUA no que diz respeito à prisão de Guantanamo e o tratamento dedicado aos detentos lá encarcerados. Esta base militar opera como autêntico campo de concentração, onde o Império abusa da condição de única superpotência do mundo contemporâneo. Os prisioneiros lá encarcerados são fruto da Guerra contra o Terror.

Desde sempre o nível de operações das forças especiais e dos serviços de inteligência é de tempo completo. No período da Guerra Fria, ambas as partes das forças armadas dos EUA e aliados, assim como dos concorrentes do Bloco Soviético, operaram todo o tempo até a derrocada da chamada Cortina de Ferro. Após o 11 de setembro, ficou escancarada uma guerra sem trégua, nem terreno ou teatro de operações. Esta é a guerra contra as redes integristas, criaturas híbridas da última etapa da Bipolaridade, fortalecidas com as resistências no Iraque e Afeganistão (com mais peso para a última guerra de ocupação).

É da regra do Jogo Real da Política compreender que uma instituição não foge à sua natureza mesma. Assim, uma força armada em guerra, pública ou velada, é uma fonte inesgotável de ilegalidade diante das próprias leis de um país. Uma situação de pânico e choque, como o atentado contra as Torres Gêmeas aponta para a anomalia institucional como base de realidade. Importa pouco o que o Pentágono declara e sim o que os burocratas em armas do Império fazem ou escondem. Neste caso vale tudo, até repetir o esquema onde se aplica o horror em escala interna (e reduzida) para elevá-lo ao máximo contra o outro, contra o inimigo.

O major John Leso e o coronel Larry James, psicólogos militares, são dois a mais na multidão de operadores da ciência aplicada a serviço da dominação e do exercício da crueldade como forma de aniquilar o inimigo. A “revolução behaviourista” assim como outras “revoluções” científicas foi célebre em recrutar arrivistas e mercenários para todos os fins e meios com o intuito de ganhar pontos tanto dentro de uma instituição indefensável e na carreira da vida. Um Império necessita de gente assim, seja natural ou naturalizada, recrutada de vida inteira ou “virada” no jogo de espionagem. Se a escravidão marcara a formação da sociedade estadunidense, o Projeto Manhattan aumenta a vala comum da abertura de precedentes espúrios para o advento da tecnociência com fins militares (primeiro) e comerciais depois.

Passados os anos, os modelos se sofisticaram, tornando-se ainda mais complexos. Guantánamo é uma aberração, é algo tão absurdo quanto imaginarmos uma masmorra pós-moderna. Seus operadores são criminosos de guerra, ainda mais criminosos do que os suicidas que matam inocentes para defender a Umma sob a lei da Sharia e governado por Fatwas. Se a família real saudita é a vergonha dos árabes, Guantánamo é a excrescência o Ocidente.
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