Depois do apoio ao golpe de estado em Honduras e da continuidade da prisão de Guantánamo em Cuba e das guerras no Iraque (onde mais de um milhão de civis foram mortos) e no Afeganistão (de onde recentemente surgiram novos vídeos e fotos de soldados estadunidenses matando civis e vilipendiando os cadáveres), o “prêmio Nobel da Paz”, Barack Hussein Obama, lançou mais uma “intervenção humanitária”, desta vez na Líbia. O apoio militar à oposição a Muammar Al Gaddafi, os chamados “freedom fighters” (ou lutadores da liberdade), foi autorizado desde o Brasil (país que se absteve de votar na Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU que liberou “todos os meios necessários” para criar uma zona de exclusão aérea que “preservaria a vida de civis” na Líbia) e incluiu em suas primeiras 24 horas, o lançamento de 45 bombas com quase uma tonelada de explosivo cada e ogivas de urânio empobrecido, que queimam a 10.000ºC e lançam um pó negro com partículas de 5 micra de diâmetro do extremamente tóxico óxido de urânio, com vida média de 4,5 milhões de anos. No começo de abril, os próprios rebeldes reclamaram com a Otan (aliança militar controlada pelos EUA que atualmente comanda os ataques) pela morte nos bombardeios de pelo menos 17 “freedom fighters” e cerca de 50 civis na cidade de Brega.
Dias antes, o Secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates (que se opôs abertamente à criação de uma nova frente de guerra na Líbia) esteve reunido com os dirigentes do Bahrein, uma pequena monarquia no Golfo Pérsico onde “coincidentemente” está estacionada a V Frota estadunidense e que enfrentava à bala protestos pacíficos que reuniam na Praça Pérola a maioria da população do país. Provavelmente ele fora transmitir ao príncipe herdeiro, Hamada Al Khalifa, a posição oficial que Obama declararia na TV em 28 de março: “Não podemos dar as costas a esses movimentos de mudança. Temos de estar ao lado dos que têm os mesmos princípios que nos guiam: nossa oposição à violência direta de um regime contra seu próprio povo e nossa defesa de direitos universais, incluída a liberdade de expressão e de escolher seus próprios representantes”. Ao mesmo tempo, o Conselho de Cooperação do Golfo mantinha tropas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos no Bahrein para esmagar a revolta popular e literalmente destruir a praça, de modo a quebrar o símbolo e impedir a continuidade dos protestos. Oito entidades da sociedade civil do país emitiram um apelo à comunidade internacional. Mas não houve qualquer discussão na ONU sequer sobre sanções ao regime, muito menos “intervenção humanitária”.
O mesmo tem acontecido no Iêmen, onde os constantes massacres de opositores nas últimas semanas levaram até à renúncia de ministros e embaixadores, mas não à queda do presidente Ali Abdallah Saleh, no poder há 32 anos. Aliás, os mortos em protestos no Bahrein, no Iêmen, nos Emirados Árabes e na Jordânia têm recebido cada vez menos destaque no noticiário, ao contrário de qualquer embate na Líbia, Síria e Irã. Isso para não falar na pífia repercussão das dezenas de mortes de palestinos em Gaza e na Cisjordânia pelas “forças de segurança” de Israel em “resposta” a mísseis que, ora vejam só, feriram alguns israelenses. O maior ausente das TVs e jornais, contudo, é o único país do mundo que recebeu o nome da família que o governa em regime de monarquia absolutista e hereditária: a Arábia Saudita. Nesse próspero e feliz reino onde estão as duas mais sagradas cidades do islamismo, Meca e Medina, não existem eleições, partidos políticos ou congresso. As mulheres são proibidas de trabalhar, de sair às ruas e mesmo de procurar ajuda médica sem a presença de um parente homem e população vive sob uma das formas mais severas da lei islâmica. A Sharia, aliás, foi invocada pelo rei Abdullah Aziz Al Saud para proibir totalmente qualquer tipo de manifestação, marcha ou ato, incluindo suas convocações, o que foi rigorosamente aplicado pela polícia.
A diferença primordial entre essas duas “classes” de países não está na África ou no Oriente Médio em si, mas na história e nas relações com os Estados Unidos. Toda a região, depois da queda do Império Otomano, foi dividida entre os impérios europeus. Com o fim da Segunda Guerra, o novo império ocidental dominou o mundo árabe, plantando ditaduras títeres a seu bel prazer. Foi nessa guerra que os EUA, então maior produtor de petróleo do mundo, entenderam que o recurso seria o mais estratégico das próximas décadas. Vem daí o tratado, mantido até hoje, firmado no início de 1945 entre o presidente Franklin Roosevelt e o rei Abd Al-Aziz Al Saud, que permitiu uma parceria comercial para a exploração do petróleo e “modernização” da Arábia Saudita em troca da “proteção” da primeira de muitas bases estadunidenses no Oriente Médio.
O primeiro “inimigo” dos EUA na região foi o Irã, cujo primeiro-ministro eleito democraticamente, Mohammed Mossadegh, nacionalizou o petróleo em 1951 apenas para ser deposto por um golpe de estado urdido pela CIA que entronizou em 1953 a ditadura do Xá Reza Pahlevi, deposto em 1979 por uma revolução popular, inicialmente de orientação socialista, que levou aos governos atuais. O segundo “inimigo” foi o Iraque que, junto à Venezuela, criou em 1960 a Organização dos Países Exportadores de Petróleo-Opep, tirando das empresas ocidentais o controle sobre os preços do produto. Não importa o quanto o Iraque tenha ajudado os EUA com a guerra contra o Irã, tio Sam iria dar o troco em 1991 e 2003. E o sadismo de Saddan Hussein tem tanto a ver com isso quanto as supostas “armas de destruição em massa”. Já a Líbia de Gaddafi, foi o primeiro país a conseguir, na virada de 1969 para 1970, inverter a tradicional relação entre países produtores e empresas exploradoras, obtendo 55% dos lucros do petróleo.
Gaddafi seduziu boa parte da esquerda do planeta em 1969 quando, à frente de outros 12 “oficiais independentes”, derrubou o governo corrupto do rei Idris, tomou duas das maiores bases estrangeiras da época (uma dos EUA em Trípoli e outra da Inglaterra próxima a Benghazi) e formou um governo baseado em “comitês populares”. Ele também angariou simpatias quando deu apoio total à luta palestina, mas perdeu parte da aura ao financiar o terrorismo internacional. Ultimamente, era apenas uma caricatura do antigo líder anti-imperialista que pregava o pan-arabismo. Seu gesto final de decadência foi o acordo de 2008 com Berlusconi, quando levou o “buga-buga” para a Itália e trocou um pedido de desculpas pelas atrocidades fascistas da colonização (1911 a 1942) por um fornecimento privilegiado de petróleo (26% do consumo italiano) e uma brutal repressão contra os barcos de africanos pobres que cruzam o Mediterrâneo saindo do litoral líbio. Como no caso do Iraque, os EUA apenas esperavam o momento certo para derrubar ex-readmitido “parceiro” e atual ditador. Esse momento chegou com as revoltas árabes e velhas alianças imperialistas foram refeitas.
Ninguém se importou, e nenhuma TV mostrou, quando em novembro de 2010 o Marrocos sufocou violentamente um protesto pacífico no Saara Ocidental, ocupado desde 1975. Ao contrário, a França vetou qualquer investigação sobre o caso no Conselho de Segurança da ONU. Quando os protestos eclodiram na Tunísia, a ex-ministra dos Negócios Estrangeiros, Michèle Alliot-Marie, ofereceu ajuda da polícia francesa para reprimir “mais eficientemente” os manifestantes na antiga colônia que ainda recebia os turistas sexuais europeus, inclusive com menores de idade, nos Club Mediterranée do país. Ainda assim, o ditador Zine Ben Ali não suportou a pressão das ruas. Mas quando nem Israel nem os EUA conseguiram manter o governo do sempre confiável Hosni Mubarak e muito menos emplacar seu “vice”, o senhor Omar “tortura” Soliman, no mais importante país árabe da África e berço do pan-arabismo de Gamal Abdel Nasser, ficou claro o potencial das revoltas de atingirem a “jóia da coroa”, a Arábia Saudita.
Os EUA já não podiam ficar apenas observando o povo tomar o poder em suas mãos e agiram como sempre agem, criando guerras reais e midiáticas para proteger seus interesses hegemônicos e garantir o controle absoluto sobre as maiores reservas de petróleo do mundo. Como admitiu o editorial do Wall Street Journal menos de uma semana depois da queda de Mubarak, lamentando o fato: “os ditadores pró-EUA têm mais escrúpulos morais do que os anti-americanos como os do Irã”. Essa tem sido a doutrina dos EUA desde que se tornaram uma potência mundial e que se expressa ainda mais claramente na sempre citada frase do mesmo Franklin Roosevelt, em 1936, sobre o então ditador da Nicarágua, Anastasio Somoza: “Pode ser um filho da puta, mas é nosso filho da puta”. Sem dúvida os reis da Arábia são os “filhos prediletos” da “América”.