“Vinha um forte cheiro de fossa que subia do ralo e invadia meu nariz. Invadia a sala toda. ‘Cheiro de merda’, ‘É do ralo’, afirmei. Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim”.
MUTARELLI, Lourenço in ‘O cheiro do ralo’ (Companhia das Letras – 2002)
Londres, meados do Século XIX. A civilização industrial começa se erguer. Com o telégrafo, ninguém mais precisa esperar semanas por uma carta. Com a máquina a vapor, as distâncias são encurtadas pelos trilhos e a produção industrial transformaria mais que qualquer coisa as relações sociais. Mas uma novidade inusitada marcaria para sempre o cotidiano daquela cidade.
Funciona assim: você levanta a tampa do vaso, senta-se confortavelmente nesse troninho com um buraco, deposita ali seus dejetos sólidos ou descarrega o excesso de chá de sua bexiga. Depois de usar, basta puxar a cordinha ou apertar o botão e, voilá, o cocô desapareceu! Simples assim. Longe da vista, sem cheiro. A sucção e o jato d’água das bombas de descarga inventadas por George Jennings em 1852 encantaram a família real.
Mas já era a era industrial. Todos em Londres queriam não mais ter que frequentar latrinas públicas, nem ter que cavar buracos, nem manejar composto orgânico, nem sair por aí carregando baldes até o matinho ou a fossa. Todos queriam ter seu trono mágico de fazer cocô. E todos tiveram.
Mas no verão de 1858, o mesmo ano em que os americanos inventaram o papel higiênico, algo saiu do controle em Londres. O parlamento teve que suspender suas reuniões e a família real deixou a cidade durante o episódio que ficou conhecido como “O grande fedor de 1858”. Acontece que a privada hídrica não era mágica. Ela não sumia com as fezes. Na verdade, descarregava nas tubulações de escoamento de chuva, que, por sua vez, desaguavam no Rio Tâmisa. A capital do grande império fedia a merda. O rio estava morto. Não bastasse, veio a epidemia de cólera e os entupimentos da rede causaram transbordamentos em diversos bairros da cidade.
Ninguém queria abrir mão de sua privada nova. Todos queriam continuar cagando. Mas ninguém queria que o cheiro coletivo incomodasse. Por isso, foram gastos mais de 150 anos e caminhões de dinheiro para tentar resolver o problema. Primeiramente, simplesmente criando galerias que descarregassem os dejetos londrinos alguns quilômetros a baixo. E, posteriormente, como não funcionou, criando estações de tratamento. Hoje, o Tâmisa ainda é sujo e fedido, mas pelo menos não mata ninguém a distância e voltou a ser usado inclusive para navegação.
Talvez se o banheiro seco (que quando bem feito elimina 100% dos patógenos e do cheiro, além de produzir adubo para a agricultura orgânica) inventado pelo pastor anglicano Henry Moule em 1860 tivesse se popularizado, muita grana e vidas poderiam ter sido poupadas. Mas a Inglaterra optou por padronizar e usar em larga escala o sistema hídrico mesmo que antes não se houvesse criado a estrutura necessária.
No livro de Mutarelli (adaptado para o cinema em 2007 por Heitor Dhalia, com Selton Mello no papel principal), o personagem acaba por perceber que, de um jeito ou de outro, o cheiro do ralo vem dele mesmo. Pois o cheiro do ralo vem do banheiro, que só ele usa.
O episódio do Grande Fedor deve despertar uma reflexão. Proponho um exercício essa semana aos companheiros de viagem. Que a gente reflita sobre a história das coisas. De onde elas vêm? Para onde elas vão? Não existe caixa mágica. Lavoisier é implacável. Tudo vai para algum lugar.
Latas de alumínio: de onde para onde? A energia que acende a luz: de onde para onde?
O combustível do carro não perde um único grama ao ser queimado. 10 quilos de combustível que entra são 10 quilos de carbono e outros gases e fuligem.
E a comida no prato? De onde vem e para onde vai? Você sabe se esse bife no prato tem sangue guarani-kaiowá misturado?
E se pensarmos todo o processo? Se lembrarmos que 70% do lixo a gente não vê, pois foi gerado durante o processamento do produto? O que de fato consumimos antes de os produtos que consumimos chegarem até nós? Quanto combustível fóssil isso veio queimando da origem até chegar em você? De onde veio esse combustível? Meu tênis escraviza alguma criança asiática? E o celular (trocado em intervalos de tempo cada vez mais curto) está causando o que na África?
Meu estilo de vida vai feder o mundo? Dá para diminuir o impacto?
Talvez seja hora de parar de ver certas coisas como naturais. Rios mortos por cocô e comer mais de cinco quilos de veneno por ano (média de consumo de agrotóxicos no Brasil), por exemplo, são coisas com as quais não podemos nos acostumar kafkianamente.
Economia é uma ciência humana. Ela estuda como as sociedades produzem, distribuem e consomem bens e serviços. Não interessa o quanto a economia cresce ou quanto lucro têm os empreendedores. As pessoas têm que voltar ao centro do processo ou não viveremos uma economia sadia. É uma anomalia que uma economia funcione justamente incentivando o consumo (a maioria das vezes de coisas inúteis).
Antes que o mundo todo transborde um grande fedor irreversível, a gente tem que começar a pensar. Algumas soluções terão de ser comunitárias, outras em escala maior. Mas tudo começa com as escolhas de cada um.