Desafios – O Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) conseguiu chamar a atenção em todo o mundo para as previsões sobre o aquecimento do planeta. O senhor acredita que o processo de aquecimento será atenuado a partir de agora?
Fearnside – É absolutamente necessário que o aquecimento seja mitigado de forma séria. Embora seja verdade que o planeta vai continuar a aquecer durante 20 ou 30 anos, mesmo que fossem parar completamente as emissões, a diferença entre cenários com e sem a mitigação é muito grande depois desse período.Portanto, é um dever nosso fazer esta mitigação, começando já. É muito perigoso presumir que vão fracassar os esforços para chegar a um acordo internacional para diminuir as emissões. Este tipo de pensamento se torna uma previsão que se auto-realiza. Não temos alternativa a não ser conseguir atenuar o aquecimento global. Tenho esperança de que, em Bali, na Indonésia, em dezembro deste ano, na 13ª Conferência das Partes (COP) da Convenção sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU), teremos um progresso mais concreto do que nas outras COPs. Essas reuniões anuais decorrem dos compromissos assumidos na Eco 92, realizada no Rio. Desde 1993, todo ano tem uma COP, e algumas dessas rodadas têm grandes resultados, como foi a de 1997, com o Protocolo de Kyoto. Agora, temos que tomar as decisões sobre o que vai acontecer em 2013, porque em 31 de dezembro de 2012 termina o primeiro período de compromisso do Protocolo de Kyoto.
Desafios – Qual será o impacto do aquecimento global no continente sul-americano? Será diferente do resto do mundo? No caso brasileiro, haverá diferenças conforme a região?
Fearnside – O Brasil é um dos países com maior impacto previsto do aquecimento global. Na Amazônia isto pode levar à mortalidade maciça da floresta amazônica.No Nordeste teria um ressecamento em uma região que já sofre constantemente de falta de chuva. No Sul aumentariam as trombas d?água e os tufões. O aumento do nível do mar afeta toda a costa, onde boa parte da população do país vive. Mas, nas últimas reuniões de negociação, o Brasil não tem se destacado, porque o discurso brasileiro é a mesma coisa que vem defendendo desde 1992. Isso tem que mudar, porque o Brasil é um dos países que vão perder mais com o efeito estufa. Já houve uma certa mudança com relação às conversas sobre florestas tropicais. Era praticamente um tabu.Agora, o Brasil apresentou, no final de 2006, uma proposta de fundo para receber doações voluntárias para tentar diminuir o desmatamento. Como é uma coisa sem compromisso e sem créditos para os países que contribuiriam, nem nada que possa contar nas cotas de carbono, não creio que obtenha apoio ou a perspectiva de gerar dinheiro para evitar o desmatamento. Sobretudo, se todos os países do mundo concordam com cortes grandes de emissões, aí eles vão usar todo o dinheiro que têm para cumprir com os compromissos. Mas é muito importante no sentido de o Brasil entrar nas conversas sobre as florestas, porque o governo brasileiro não estava negociando isso.
Desafios – A resistência do governo brasileiro tem a ver com os custos de conter o desmatamento?
Fearnside – Para o Brasil é mais fácil diminuir as emissões do que para outros países, porque o desmatamento aqui gera muito pouco em termos de retorno econômico. A economia do Brasil não depende do desmatamento, quetambém emprega muito pouca gente. A Amazônia tem 20 milhões de pessoas, mas o número delas nessa atividade é absolutamente mínimo. As pessoas estão nas cidades, e quem está na zona rural está fazendo outras coisas.Então, o Brasil poderia diminuir o desmatamento sem grandes dores sociais, diferentemente de outros países tropicais onde são os pobres os grandes agentes de desmatamento.Aí é muito mais difícil diminuir o desmatamento sem ter alternativa para tanta gente. Assim, o Brasil tem grande vantagem para assumir compromisso de controlar o desmatamento. Tem que fazer. Por outro lado, o aquecimento global vai diminuir a produção agrícola do país inteiro. No Nordeste, onde ainda há o problema da fome, vai piorar. E não é só agricultura. Há também a geração de energia, que precisa da chuva vinda da floresta amazônica. Perder a floresta realmente traria grandes impactos.
Desafios – Mas em outras regiões haveria um aumento das chuvas com o aquecimento global, não é?
Fearnside – Sim, exatamente. Nas regiões costeiras, no Sul do país, haveria mais chuva, mas não uma chuva que presta.Serão tufões,o que é diferente da chuva que vem da Amazônia, que vai cair do outro lado da serra do Mar, que vai descer pela bacia do Paraná, uma região com muita chuva, que termina em Itaipu e vai gerar energia lá. Uma parte também vai cair no rio São Francisco, que é muito importante também na geração de energia. E tem ainda os problemas da costa e os problemas da Amazônia.A Amazônia é um dos principais bens que o Brasil tem e não dá para colocar isso em risco.
Desafios – O motivo dessa resistência não seria a questão da soberania?
Fearnside – O Brasil pode continuar não admitindo falar sobre compromissos de controlar o desmatamento talvez por mais cinco anos, mas um dia vai ter que assumir compromissos. Mais cedo ou mais tarde,isso vai acontecer.A questão é se deve fazer agora e assumir a liderança da coisa,ou se deve esperar ser encostado na parede pelos outros países e ser obrigado a fazer o controle.Acho melhor assumir a liderança.O governo atualmente está até dizendo que o desmatamento está sob controle,que caiu nos últimos três anos, embora eu deva dizer que não dá para tirar uma conclusão, porque existem outros fatores econômicos juntos. Mas há o outro exemplo,de Mato Grosso, entre 1999 e 2001, quando tinha um programa de controle do desmatamento. Teve realmente um efeito e foi numa época em que o desmatamento estava aumentando. Um trabalho meu explica os dados e chega à conclusão de que realmente tinha um efeito o programa de controle. Isso é muito importante para comprovar que o governo pode controlar se tiver um programa sério, coerente com a gravidade que o desmatamento exige.Lembro também que a interpretação dessa questão de soberania varia muito. A coisa mais incrível foi o governador anterior do Amazonas,Amazonino Mendes,que passou mais de dez anos denunciando ameaças internacionais contra a Amazônia e ele próprio apoiou isso e tentou vender carbono do Amazonas em Chicago.
Para o Brasil é mais fácil diminuir as emissões do que para outros países, porque o desmatamento aqui gera muito pouco em termos de retorno econômico. Todos os nove estados que compõem a Amazônia Legal estão a favor de se terem créditos por desmatamento evitado.Os governadores desses estados não são menos patriotas. Felizmente, chegam a outra conclusão a partir do mesmo conjunto de fatos
Desafios – Por favor, explique o que diz o modelo do Centro Hadley, que indica uma mortalidade maciça da floresta amazônica até 2080.
Fearnside – O modelo do Centro Hadley, do Escritório Meteorológico do Reino Unido (UKMO),é o modelo que dá os resultados mais catastróficos para a Amazônia. Não é o único modelo do clima global, mas é o que tem liderado neste campo há muitos anos e deve ser levado a sério.Há vários outros modelos que também indicam a Amazônia secando e sendo pelo menos parcialmente transformada em savanas, embora também existam alguns que não mostram isto. O que mais nos preocupa na Amazônia é que o modelo do Centro Hadley é o que melhor reproduz o efeito El Niño, que é um fato dominante nas secas reais no clima de hoje na Amazônia. Nós sabemos por experiência direta que cada vez que a água no oceano Pacífico esquenta (o gatilho que provoca El Niño), temos secas e incêndios florestais na Amazônia. Portanto, o modelo que melhor representa esta ligação é o mais relevante para nós. O último relatório do IPCC chegou à conclusão importante de que os mais de 20 modelos testados concordam que o aquecimento global leva a ?condições tipo El Niño?,que significa água quente no Pacífico.Não há concordância entre os modelos sobre o passo seguinte, que é a ligação entre as ?condições tipo El Niño?e o El Niño em si,que são as secas e inundações que ocorrem em diversas partes do mundo. Conseguir tudo isso em um modelo simultaneamente é uma tarefa muito difícil, já que tem que modelar não só a seca na Amazônia, mas também enchentes em Santa Catarina, chuva intensa na costa do Peru,seca na Etiópia e Bornéo, etc., tudo ao mesmo tempo.Mas,para nós,o importante é que o modelo representa as secas na Amazônia, que são mais bem representadas no modelo do Centro Hadley. Esse modelo não é perfeito (fica quente demais na Amazônia), mas é o mais realista entre os modelos para o clima de hoje na região. Portanto, estamos preocupados sim com a possibilidade de a floresta morrer até 2080, ou de se concretizar uma catástrofe que seja, grosso modo,parecida com isto.
Desafios – O senhor defende a tese de que o mundo precisa pagar para manter a floresta amazônica. O que deve ser feito? Por quem?
Fearnside – Precisa-se negociar isto. Hoje,o contexto para essas negociações teria que ser a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), aprovada na Eco 92, e o Protocolo de Kyoto, de 1997. Não dá para jogar fora mais de 15 anos de negociações e começar do zero (como o Bush quer). Não há tempo para isso. É necessário criar instituições para receber e usar o dinheiro, assim como um acordo adequado que garantisse que o dinheiro tenha seu efeito desejado de manter tanto a floresta como a população humana da Amazônia e de outras regiões tropicais.
Desafios – Quais são as conseqüências previsíveis das emissões de gases de efeito estufa provocadas pela mortalidade da floresta devido à mudança climática?
Fearnside – A floresta contém um enorme estoque de carbono, não só na biomassa das árvores, mas também no solo. Morte da floresta implica liberação de muito deste carbono, o que forma um ciclo vicioso, levando a mais aquecimento, mais mortalidade e mais emissões de carbono. Isso é uma das chamadas ?retroalimentações bióticas?. O IPCC analisou um pouco mais de 20 modelos, mas somente meia dúzia deles tinha capacidade para representar as retroalimentações bióticas. A solução foinivelar para baixo,desligando as partes dos modelos que simulam as retroalimentações bióticas. Portanto, os cenários já graves para o resto deste século representados nos mapas e gráficos do relatório são subestimados. A temperatura média do planeta prevista para 2100 será cerca de 30% mais quente se as retroalimentações bióticas forem incluídas, principalmente devido ao efeito da morte da floresta amazônica.
Desafios – Os resultados apresentados nos relatórios mostram grande diversidade, alguns bastante pessimistas. A verdade está no meio?
Fearnside – Não,a verdade não tem nenhuma razão para estar no meio. Isto é a chamada ?falácia de Cachinhos Dourados?, ou seja, a presunção de que o valor do meio é sempre o mais certo.O valor do meio é o mais provável quando se trata de mensurações repetidas sem informações sobre possíveis vieses. Quando se trata de diferentes cenários e modelos, sobre os quais há informações comparando-os com a realidade, o caminho é de comparar cada um com o que se sabe do mundo real e confiar neles na medida em que se acerta. Pode muito bem ser um valor longe do ponto médio que acerta melhor, como é o caso em relação a aquecimento e seca na Amazônia, onde o modelo mais catastrófico, do Centro Hadley, acerta melhor.
Desafios – Como deve ser, na sua opinião, a definição de mudança climática perigosa?
Fearnside – Deve ser no máximo 2°C acima do nível pré-industrial. Isto é o valor escolhido pela União Européia como definição de ?mudança climática perigosa?,que é a frase que a convenção do clima usa para o limite que teria que ser respeitado, limitando as emissões dos países o suficiente para que não seja ultrapassado. Seria difícil negociar um valor mais baixo que 2°C, mas seria bom se fosse menor, do ponto de vista biológico.
Desafios – Como se forma a chuva nos principais centros de população do país, como o Centro-Sul? O que acontecerá com essas áreas com a degradação da floresta amazônica? E em conseqüência do aquecimento de todo o planeta?
Fearnside – As chuvas no Sudeste brasileiro sofrem influências que tendem em direções opostas como resultado de mudanças climáticas. Parte da chuva depende de água transportada da Amazônia, o que tende a diminuir se a floresta for substituída por gramíneas, seja devido ao aquecimento global ou ao desmatamento direto. Por outro lado, muita chuva no Sudeste também vem de água diretamente do oceano Atlântico. Isto tende a aumentar. Primeiramente, com o aquecimento global, os oceanos vão esquentar, fazendo com que haja mais água evaporada, e essa água tem que cair em algum lugar como chuva.Outro fator é um deslocamento previsto do grande anticiclone (um círculo de ventos) que prevalece no oceano Atlântico Sul, para ficar mais perto à costa brasileira. Isto traria mais chuva, mas em forma de tufões e de trombas d?água. Por último, a freqüência do El Niño deve aumentar, o que leva às inundações famosas em Santa Catarina e regiões vizinhas. São basicamente mudanças indesejáveis do ponto de vista humano.
Desafios – Por que as florestas tropicais são mais sensíveis ao fogo e às alterações climáticas?
Fearnside – As florestas tropicais úmidas são mais suscetíveis ao fogo do que outros tipos de vegetação porque os incêndios florestais têm sido tão raros ao longo dos milênios passados que as espécies de árvores não precisavam evoluir em defesas contra isto. As árvores amazônicas têm casca fina e, quando o fogo ocorre, o câmbio (um tecido vital) esquenta abaixo da casca na base do tronco, e a árvore morre. Árvores em outros ambientes, como no cerrado, têm casca grossa e resistem ao fogo.As árvores amazônicas também são sensíveis às secas e a ondas de calor por terem evoluído em um ambiente climático relativamente constante, ou pelo menos bem mais constante do que na grande maioria dos outros biomas.
Desafios – Qual é a sua opinião com relação à controvérsia sobre o crédito de carbono por desmatamento evitado? Essa proposta também recai no caso da soberania?
Fearnside – Como sou um dos primeiros proponentes disto, eu não poderia ser contra. É claro que o sistema adotado tem que fazer com que o carbono que recebe crédito seja real e que seja verificado. Todos os nove estados que compõem a Amazônia Legal estão a favor de se terem créditos por desmatamento evitado. Os governadores desses estados não são menos patriotas. Felizmente, chegam a outra conclusão a partir do mesmo conjunto de fatos.