Não somos conduzidos, conduzimos

Sabem de uma coisa? Hoje eu fui na marcha da maconha e usei tóxicos. Usei mesmo! Eu e uma cambada que descia a Consolação. Ficamos com os olhos vermelhinhos, tossindo pra caramba. Como a gente descolou a parada? Ora, com a Polícia Militar de São Paulo, com quem mais? O tóxico, no caso, chama-se Clorobenzilidenemalononitrila, o gás CS, mais conhecido como gás lacrimogênio. É considerado uma “arma branca” pelas forças de segurança, e toda tropa de choque que se preza porta um belo estoque quando vai às ruas.

Hoje tive a involuntária chance de tragar o gás em quatro oportunidades. A primeira foi na frente de um abandonado cinema Belas Artes. Uma bomba de efeito moral estourou bem ao meu lado, e meu ouvido zuniu pelo resto do dia. Corri, e tive a sabedoria de não olhar para trás quando escutei os tiros de escopetas com balas de borracha. Elas não matam, mas cegam facilmente quem as toma nos olhos. Estava seguindo em frente pelo canteiro do meio da Consolação, entre os desavisados cidadãos que esperavam um ônibus no ponto do corredor.
Foi ali que o gás chegou primeiro em meus olhos e narinas. Bem como nas mucosas de crianças, jovens, adultos e idosos de ambos os sexos que esperavam uma condução apenas.

A última inalada, e mais intensa, foi entre as esquinas da Consolação com Sergipe e Maria Antônia. Eu já não estava mais no miolo da manifestação, mas seguia pelo outro lado da rua, tirando fotos da tropa de choque e me juntando ao coro de manifestantes que, já meio dispersos, apontavam suas palavras contra a polícia. Foi quando duas bombas foram atiradas na pista oposta, sentido Paulista, onde não havia marcha, nem manifestantes em grande número. Apenas automóveis engarrafados, pedestres atravessando a rua e o comércio aberto. Segui em frente, protegendo minhas vias com um lenço verde (distribuído aos montes no começo da marcha como mordaça pela censura, tornou-se máscara).

Vi dezenas de pessoas levando a mão ao rosto, vi senhoras correndo com dificuldade para fugir da fumaça, um pasteleiro sufocado, encurralado pelo gás dentro de seu trailler. Queima, quimicamente falando. A pior coisa que já respirei. Ainda pior do que o gás de pimenta que sorvi ano passado, na marcha da maconha de 2010, no Parque do Ibirapuera. Com o gás lacrimogênio, a pele e os olhos sentem uma agressão corrosiva, intolerável. Prendi a respiração e corri em frente. Tentando alcançar o resto do pessoal. Eu precisava estar lá para ver o desfecho.

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A Consolação foi intoxicada porque a “lei” não tolera outra fumaça. Aliás, a “lei” não tolera quem fale sobre a tal fumaça sem condená-la. Pelo entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo, em uma decisão tomada menos de 24hs antes da realização da Marcha, é ilegal dizer que maconha não deveria ser ilegal. Proibido, o evento se concentrou no MASP, levantou cartazes e cantos, e acordou com o Capitão Benedito Del Vecchio, comandante da 1a companhia do 7o batalhão da PM, a realização da marcha pela liberdade de expressão, condenando a censura sofrida.

A interpretação do Tenente ao texto do TJ, foi a seguinte: qualquer um que leve cartaz, camiseta, material ou slogans que incluam a palavras maconha, ou legalização, ou qualquer referência que induza à maconha, serão punidos. Cobriu-se a maioria dos cartazes com faixas ou tinta preta, e a polícia disse que apenas iria escoltar a marcha – e seria esse o saldo do dia.

Eu arrisco dizer que havia duas mil pessoas marchando pela Paulista. A causa não era mais a legalização da maconha, exatamente. Era um protesto pelo direito de pedir a legalização da maconha. Uma planta de inequívocas propriedades medicinais, industriais e e dona de uma amistosa psicoatividade. Eis todo o problema. Psicoatividade. Que, para mim, mostra o que está por trás dessa tarde de sábado: consciência. E o que fazer para alterá-la.

Análises médicas do gás lacrimogênio indicam que ele causa danos graves ao fígado e ao coração. Também é indutor de anomalias genéticas em células mamárias (aka câncer de mama). Quando metabolizado, o gás CS deixa traços de cianureto no corpo humano… coisas assim. Fatos que duvido que conste nas cartilhas de formação de um PM como o Cap. Del Vecchio (no mesmo sábado, 93 novos soldados ganharam seus espadins, gaba-se o único tweet do dia do @pmesp). Ou nos calhamaços dos exmos. juízes do TJ. Duvido que a toxidade do gás lacrimogênio conste no repertório do médico Geraldo Alckmin, hoje governador de São Paulo. Mas foi essa a substância que a Força sobre seu comando atirou, em pleno sábado de sol, em gente indefesa, pelas costas, por discordar de uma lei – ou que apenas circulavam por São Paulo na hora errada.

A troco de que? O parecer do desembargador Teodomiro Mendes é claro: “o evento que se quer coibir não trata de um debate de ideias, apenas, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha, presentes indícios de práticas delitivas no ato questionado, especialmente porque, por fim, favorecem a fomentação do tráfico ilícito de drogas (crime equiparado aos hediondos)”.

Sim, eu vi gente acendendo baseados na marcha. Imediatamente reprimidos pelos próprios participantes que, em grupo, falavam que “não era a hora”. Toda a argumentação que vi na Marcha é em torno de um debate de ideias que, invariavelmente, aponta para a extinção do tráfico (“equiparado aos crimes hediondos”) através do cultivo legal de canabis (equiparado à jardinagem).

Sim, eu vi gente sendo presa na marcha. Ninguém por porte de drogas. Apenas por distribuir um jornal, e debater ideias, chamado “O Anti-proibicionista”, feito pelo coletivo DAR. A polícia não deu satisfações aos jornalistas que questionavam o motivo da prisão. Tive uma escopeta (com balas de borracha, suponho) apontada para mim quando tentei me aproximar para fotografar um dos membros do coletivo indo em cana.
Marchei até o fim, e peguei um táxi para o 78 DP na Rua Estados Unidos, para tentar entrevistar o delegado e os presos na marcha. Saber qual era, enfim, o B.O.

Cheguei no primeiro grupo de pessoas, e não pude, nem como repórter, falar com o delegado ou os presos. Foi de lá que mandei meu primeiro de muitos tweets do dia, e vi chegar mais tropa de choque, um helicóptero, e vi a rua Estados Unidos ser fechada para impedir a chegada dos manifestantes mais resolutos que subiram e desceram de novo a Augusta para pedir a soltura dos dois que ainda restavam presos no 78. E foi quando entendi que aquela não era mais uma marcha da maconha. Não era sequer uma marcha pela liberdade de expressão. Era um explícito enfrentamento da consciência coletiva consigo mesma.

Consciência era o tema de hoje, eu preveni. E o que fazer para alterá-la.
Nossa extrema e recente capacidade de obter informação e conexões redimiu os libertários. Temos a rede, os argumentos, a vontade de união. Mas como em um pesadelo Junguiano, esse despertar gera seu exato oposto… a sedimentação de preconceitos e discriminações que infla os intolerantes, os donos da verdade, os demagogos. As balas não eram contra nós, eram contra nossos argumentos, contra nossa capacidade de demonstrar que o mundo que a ignorância oferece é pior do que o da tolerância. Com o twitter na mão, vi meus breves relatos sendo retransmitidos e espalhados para muitos milhares de pessoas em segundos. Assim como tantos por ali, meu telefone era só um uma sinapse de um cérebro maior, coletivo.

Não, essa briga não é pela maconha. Assim como a luta por direitos LGBT, das mulheres, dos negros… nada disso é apologia de raça, sexo ou formas de amor. São gritos por tolerância, respeito, igualdade de direitos. E uma luta da consciência por mais consciência. E pela transformação dela em grupo, em rede, em sociedade.

Consciência! Eu insisto. E especulo aqui, com pouco medo de errar: PMs, juízes, governadores, legisladores… devem saber tanto sobre o males do gás lacrimogênio quanto sobre os da maconha. Nada. E não serei eu o infinitésimo mártir a enumerar fatos científicos e culturais sobre a planta que provam, sem controvérsia, que ela pode conviver entre nós como uma verdadeira aliada, em vez de uma falsa ameaça. Ameaça que se tornou violentamente real com a proibição. É um mercado bilionário que flui diretamente para os cofres do crime organizado e da inevitável corrupção policial. É a base da renda da enorme malha criminosa. Tudo por causa de uma planta quase sempre benigna.

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Consciência… e me lembro das pessoas não envolvidas com a marcha que viram a brutalidade da polícia, respiraram um gás trocentas vezes mais tóxico do que a mais vil das maconhas de bocada, e não se indignaram com a PM. Mas conosco, os maconheiros, os vagabundos que financiam o tráfico de drogas. “Porque vocês não vão trabalhar?”, me sugeriram no twitter enquanto eu reportava abusos da polícia. Não tiveram a chance, a boa-vontade (ou a inteligência?) de pensar um pouco além do que lhes oferece o mais ignóbil jornalismo televisivo.

Não sabem que ex-coronéis da PM comandam 25 das 31 subprefeituras de São Paulo (http://tinyurl.com/3f4k9fk) . Não entenderam o significa ser governado por gente que confunde Ordem com Justiça. Não entenderam, ou concordam, também pensam dessa forma. Ainda assim, fazem parte do mesmo cérebro coletivo em que pia meu twitter.
Hoje, sentimos na pele o que é viver no meio de um nó cego de ignorância, ideias preconcebidas e uma sórdida conveniência comercial e política. Eis a receita invariável da qual a direira (a extrema direita, eu quero dizer) se alimenta. E provo o que digo com uma uma cena, a mais importante de todo o evento para mim.

Durante a concentração no MASP, a maioria ainda nem havia chegado, uma turma de uns 20 neonazistas, facistas, ultra-nacionalitas, se colocou em fila para protestar contra a marcha. Diziam defender a família, o Brasil, o nacional-socialismo. A polícia não os molestou. Ao contrário, fez um cordão para os manter isolados das centenas de manifestantes que foram chegando. Quando as primeiras bombas voaram, o pequeno grupo nazi aplaudiu. Eu vi. Eu e muita gente viu. E você também pode ver se procurar na rede. Facistas batendo palmas para a polícia que reprimia com extrema violência um protesto pedindo liberdade de expressão.

Essa é uma cena triste? Não ainda. Ela é um sintoma, apenas, dessa bipolaridade social que estamos vivendo. E a cena diz mais sobre quem não estava lá do que sobre a PM, os nazis, ou os maconheiros. Sobre as centenas de milhares de pessoas que sabiam da marcha, e preferiram não ir, por preguiça, por medo de ridículo, por medo da polícia ou por puro descaso. Sobre os incontáveis artistas e figuras públicas que adoram um baseado, mas se escondem na hora do debate. Um silêncio que dá força às balas de borracha, às liminares de última hora, a uma política cínica sobre drogas no país. Um silêncio que abafa o eco da bombas de gás e dá mais voz aos desinformadores de plantão.

Eu saí indignado da marcha. Mas não saí triste. O protesto durou mais de seis horas. Andamos metade da Paulista, descemos toda a Consolação, voltamos até os jardins, sob porrada e abusos, para soltar nossos companheiros. Temos que nos orgulhar. A marcha de São Paulo nunca mais será a mesma. Mas viramos mais do que uma página na luta pela legalização e regulação do mercado de maconha no Brasil. Ficou evidente, em fotos, vídeos, relatos, cicatrizes e saudações integralistas que nossa democracia é tudo, menos madura.

E se isso não é motivo para lotar a Paulista no sábado que vem, então, lamento informar, mas os facistas terão muitos motivos para aplaudir a PM de São Paulo. Na esquina da Augusta com a Estados Unidos foi decidido que um novo protesto, contra a violência policial, será feito no MASP, às 14hs do dia 28. É hora de mostrar para o governo Alckmin o significado do lema da bandeira da nossa cidade: Non ducor, duco.
Traduzindo o latim: Não sou conduzido, conduzo.

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