Foto: Juan Castro
Dedicado à mulher africana, o dia 31 de julho, é uma data simbólica para a visibilidade das mulheres negras. A data foi escolhida para comemorar o 25 de julho, dia da mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, com bonita homenagem a brasileiras que assumiram destaque no cenário carioca das lutas afirmativas femininas e Afro-brasileiras.
Reunidas em cerimônia organizada por Lelette Coutto, coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – CEPPIR/RJ, receberam homenagens a escritora Conceição Evaristo, a trabalhadora doméstica e sindicalista Carlí Maria dos Santos, a economista Elma Aleluia, a atriz Léa Garcia, a professora doutora Helena Theodoro e a porta bandeira Dodô da Portela.
A noite foi aberta com uma homenagem para a professora Dulce Vasconcellos, presidente COMDEDINE e protagonista de ações decisivas para o início e continuidade das ações afirmativas realizadas no Rio de Janeiro.
A seguir, a rapper Refem – Revolta Feminina (Janaína de Oliveira) assumiu a condução da cerimônia. Representante da nova geração de mulheres negras atuantes na cultura carioca, a apresentadora falou da emoção em estar ao lado de precursoras de antigas lutas que atravessam a trajetória de mulheres negras de diferentes gerações.
Sob aplausos, as homenageadas foram chamadas para compor a mesa e convidadas a falar das experiências marcantes presentes em suas trajetórias. O primeiro depoimento veio da eterna porta bandeira Dodô da Portela, figura histórica do carnaval carioca, que resgatou fatos marcantes em suas nove décadas de vida, oito dedicadas aos desfiles de escola de samba. Com invejável memória, Dodô resgatou detalhes de sua chegada à Portela, seu encontro com o fundador da escola, Paulo da Portela e características dos primeiros desfiles. Cheia de humor, falou de seu aprendizado autodidata, lembrando que bailava com o cabo de vassoura e quebrava as coisas em casa. Ressaltou, ainda, que era preciso rezar um terço para que sua mãe, uma lavadeira muito católica, permitisse sua ida aos ensaios na quadra da escola em Oswaldo Cruz.
Na sequência, foi a vez da atriz Léa Garcia, cuja fala foi iniciada por uma reverência à presença da mais antiga Dodô, a quem a atriz viu desfilar várias vezes na Praça XI. Dentre os desfiles assistidos, Léa recordou aquele em que a agremiação de Madureira entrou na avenida silenciosa quando da morte de Paulo da Portela. Para Léa, o riso das homenageadas e da plateia diante dessas histórias é provocado por lembranças vindas à tona com semelhanças nas trajetórias femininas. Revisitando o passado, Léa recorda as expectativas de sua família de classe média, residente em Copacabana, que desejava que ela fosse contadora. Porém, após o encontro com Abdias Nascimento e contato com o Teatro Experimental do Negro, se afastou de seu desejo de ser escritora e da intenção do pai em ter uma filha contadora. Nos anos de 1950 sua carreira artística foi iniciada na dança, com Mercedes Baptista, no espetáculo Rapsódia Negra. Nesse período as convicções ideológicas e artísticas, recebidas de Abdias, foram decisivas para abraçar a carreira de atriz. Em momento emocionado e emocionante, a atriz enaltece a presença de Abdias em sua vida profissional e pessoal, destacando o pai de seus filhos como grande incentivador, seu grande amigo e um grande homem. Refletindo sobre a vida profissional ela pontuou a longevidade da carreira de atriz, na qual existem oportunidades em cada faixa etária, e manifestou seu desejo de continuidade nessa carreira e sua disposição em amadurecer trabalhos que já realiza como roteirista. Léa finalizou associando seu trabalho a um permanente interesse de trazer a figura do negro para o protagonismo na mídia, buscando, assim, uma sociedade mais justa e igualitária.
Atuando em ações do terceiro setor, Elma Aleluia falou do trabalho com crianças de baixa renda, realizado na comunidade carioca do Vidigal. Compartilha com a plateia a experiência de, como tantas brasileiras, ingressar na vida profissional após cumprir a tarefa de criar os filhos. Em sua fala engajada, Elma encoraja as realizações femininas afirmando que “não importa a idade que você tenha, importa o que você quer fazer” e usa como exemplo de êxito seu trabalho social, nascido de sua vontade em atuar na melhoria das condições de vida de crianças do Vidigal, comunidade onde nasceu e cresceu seu marido, hoje doutor pela COPPE. Aprendendo na prática, o casal tocou a instituição que hoje atende 303 crianças, oferecendo balé clássico, curso de inglês e outras atividades que ajudam na formação saudável. Um dos resultados do projeto foi a conquista de bolsas de estudos para ingresso de jovens em universidades, cursos de inglês e espanhol. Agradecendo a homenagem Elma ressaltou que “nós mulheres, somos valorosas, podemos fazer muito mais” e afirmou que sua experiência fortaleceu a convicção de que “só a educação transforma as nossas vidas.”
A quarta fala da noite foi de Conceição Evaristo. A escritora e poetisa enfatizou sua emoção diante de todas as histórias ouvidas, observando que todas as falas tinham a ver com sua história, e ressaltando que as semelhanças se devem ao “fato de sermos mulheres negras e de termos uma resistência muito grande”. Pensando a trajetória das mulheres negras em diferentes frentes de trabalho, a professora aposentada disse que “é muito bom perceber que, apesar da dificuldade que temos, somos muito fiéis. Que apesar da dificuldade, nada nos derruba. É bom dizer que nosso trabalho deu fruto. Quando a gente volta do COPENE (Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as), e vê a quantidade de mulheres negras, meninas, que estão aí… Isso prova que nosso trabalho tem efeito e que nos dá mais coragem para continuar. Minha escrevivência faz parte da minha experiência com mulheres negras.”
Professora pioneira na inserção do carnaval no universo acadêmico, Helena Theodoro falou do orgulho de estar entre mulheres que admira. Também escritora, Helena reverenciou o legado cultural herdado de seus pais que a levavam a espaços de cultura erudita e popular. Desse contato nasceu a admiração por Lea, Abdias, Dodô e outras figuras notáveis da cultura brasileira. Helena relembrou as lições recebidas do pai, um comunista que frisava sempre que era preciso batalhar para que todos tenham oportunidades, transmitindo à jovem a responsabilidade de aproveitar a oportunidade de adquirir uma bagagem cultural e formação raras aos negros. As palavras de Helena sintetizam seu sentimento nesta noite de homenagens: “a única coisa que a gente leva é o que a gente viveu. A minha relação com minha família foi muito importante e fico feliz de estar nessa família de mulheres. Estou colocando o carnaval dentro da perspectiva acadêmica para provar que esses saberes tem espaço de valorização. Os jovens podem encontrar apoio e inspiração nessas mulheres que estão aqui. Agradeço a Deus por poder ler e estar com vocês e ao lado de Conceição Evaristo.”
A fala final refletiu a simplicidade e poder de superação de Carlí Maria dos Santos, a dirigente do sindicato municipal das trabalhadoras domésticas do Rio de Janeiro. Após uma reverência à elegância de Dodô, Carlí lembrou que ao chegar ao Rio, aos doze anos, visitou a Portela e ficou impressionada com damas do samba que nunca saíram de sua memória. Ainda menor, aos 10 anos de idade, Carli começou a trabalhar como domética no interior do Rio de Janeiro. O início precoce do trabalho impediu seus estudos, aos quais deu continuidade depois de adulta e após muitos anos de trabalho na casa de uma mesma família na cidade do Rio. Seu trabalho de militância teve início quando passou a participar de um grupo de domésticas da igreja católica, onde teve acesso a um curso de alfabetização. Ela revela que foi preciso enfrentar a patroa para ter horas livres e garantir seu direito de acesso a educação. Teve início aí um processo de conscientização sobre seus direitos e sua humanidade. Deixou a casa dessa patroa, arrumou trabalho doméstico em melhores condições, entrou no movimento sindical e desenvolveu uma caminhada na Associação das domésticas, chegando à presidência em 2003. Carlí ressalta sua alegria diante do crescimento na militância e participação nas gestões que colaboraram com a evolução da associação para sindicato. Atualmente aposentada, considera necessário permanecer orientando as mulheres que chegam ao sindicato, porque “muitas pessoas ainda não se descobriram como gente, como seres humanos.”
Brindada com experiências de vida tão ricas, a plateia ainda foi surpreendida por intervenções artísticas que presentearam também as homenageadas. Vindas de diferentes pontos da plateia, talentosas artistas afro-brasileiras cantaram e encantaram. Declamando e cantando Lia Vieira fez a primeira intervenção, Iléa Ferraz deu vez ao samba, acompanhada do pandeiro e de sua poderosa voz e Maria Ceiça dividiu a cena com a saxofonista Mônica Ávila. Entoando Humbiumbi, canção de Filipe Mukenga, Maria Ceiça encheu o teatro com sua voz melodiosa, utilizada também em Muxima, canção tradicional angolana. Envolvida, a plateia participou da homenagem com um coro vindo de corações (muxima) que se deixaram levar pelo rio de histórias passadas nas vidas de Dodô, Lea, Elma, Conceição, Helena e Carli.
O som do sax fechou essa noite que abriu espaço na memória dos que presenciaram a ciranda formada por mulheres afro-brasileiras que dão as mãos para resistir na luta.