Aquilo que até alguns meses atrás era um país com quase nenhuma vida política visível, hoje tornou-se um centro de agitação e propaganda das mais diferentes tendências políticas do mundo árabe.
Mesmo assim, as relações entre Estado e sociedade civil continuam bastante tensas no país. Apesar das conquistas da revolução, o Egito ainda é uma ditadura militar, e enquanto está claro que o atual momento histórico pode permitir grandes avanços sociais, poucos têm clareza de qual caminho o país esta seguindo.
O maior exemplo das tensões e contradições que têm tomado conta do Egito nas últimas semanas é o julgamento do ex-presidente Hosni Mubarak. Entre as acusações apresentadas contra Mubarak, além dos crimes de corrupção e diversas outras infrações penais de colarinho branco, está a acusação do homicídio de centenas de pessoas durante as manifestações que ocorreram pouco antes da queda de seu regime. Caso condenado, o todo poderoso ex-presidente pode ser mandado à forca. A grande duvida é se o Conselho Supremo das Forças Armadas ou SCAF (Supreme Council of the Armed Forces, em inglês), como a junta militar que hoje governa o país é conhecida, permitirá a aplicação de tal sentença.
A SCAF, cujos membros foram todos nomeados durante o governo Mubarak, é presidido pelo Marechal Mohamed Hussein Tantawi, ex-ministro da defesa e amigo próximo do presidente deposto. Enquanto a revolução democrática de 11 de fevereiro derrubou o presidente e seu vice, Omar Suleiman, a estrutura política do exército, que desde os anos 50 governa o país, se manteve intacta. É exatamente esta estrutura política que pode muito bem ir ao banco dos réus ao lado de Mubarak, algo que a SCAF quer impedir a todo custo.
O desenrolar do julgamento, que acontece na Academia da Policia Militar, ironicamente, o mesmo local onde Mubarak deu seu ultimo discurso público antes de ser derrubado pelo povo, tem visto cenas repetidas de tumulto nas ruas ao seu redor. Só segunda-feira, data da ultima sessão do julgamento, 34 pessoas ficaram feridas nos confrontos que aconteceram do lado de forma da academia.
As cenas de dois campos opostos, igualmente grandes atirando pedras uns contra os outros está bastante distante da realidade da conjuntura política do Cairo. Aqui, quase todos se declaram opositores de Mubarak. Segundo Menna Thabet, uma militante do movimento de juventude que esteve presente quase todos os dias nas manifestações na Praça Tahir, o debate atual do Egito não gira mais em torno de Mubarak “aqui, todos são contra Mubarak, sem exceções, a questão é se apóiam ou não a junta militar.”
Porem, é exatamente a integridade desta junta militar que pode estar em jogo com o julgamento do tirano, dai a centralidade e atualidade política do evento. Caso Mubarak seja condenado, o próprio general Tantawi, presidente de facto do país, pode também ser responsabilizado pelas mortes, ao lado de diversos outros membros de alta patente das forças armadas. Os advogados da acusação têm feito um esforço tremendo para garantir como que o atual presidente deponha no caso, algo que a SCAF tem trabalhado para impedir.
Utilizando como argumento a violência que vem ocorrendo do lado de fora do tribunal, o juiz Ahmed Rifaat, responsável pelo caso jurídico mais importante da historia do Egito, ordenou que se encerrassem a transmissão ao vivo do julgamento do ex-presidente. Soma-se ao argumento da violência, a questão de que a presença de câmeras ao vivo atrapalharia o andamento do caso, expondo depoimentos que deveriam ser, em tese, sigilosos. Por mais que os argumentos de Rifaat tenham algum fundo de verdade, e que a medida tenha recebido o apoio dos advogados das vitimas do ex-ditador, a ação gerou suspeita entre muitos no Egito. A idéia de que esta se iniciando uma operação para impedir como que Mubarak seja julgado de forma séria circula amplamente no país. Apesar da proibição da presença de câmeras de TV, o julgamento continua aberto para o publico e imprensa.
JUNTA MILITAR
Tem circulado na imprensa egípcia que a proibição da transmissão ao vivo do caso foi fruto de pressão da Arábia Saudita sobre o governo egípcio. Os monarcas árabes tem se mostrado particularmente preocupados com a possível condenação e exposição de seu ex-colega. A Arábia Saudita, assim como o Qatar e outros países do golfo, possuem uma profunda influência sobre a junta militar egípcia. Para alem da grande convergência ideológica entre os dois grupos, após a recusa da junta militar de receber ajuda financeira do FMI (algo visto por muitos como uma vitória da esquerda), os militares egípcios tiveram que buscar financiamento nos países árabes exportadores de petróleo. Tal fato aumentou ainda mais a influência direta dos sauditas sobre o cenário político egípcio. Alem da recusa a ajuda financeira do FMI, outra conquista do campo da esquerda tem sido a suspensão do processo de privatizações iniciado por Mubarak sob tutela do ocidente. Hoje, se fala muito em re-nacionalização das indústrias privatizadas.
O julgamento de Mubarak, porém, está longe de ser o único evento político que tem ocupado o dia-a-dia da vida política do país. Enquanto a data das eleições parlamentares continua sendo constantemente adiada pela junta militar, as organizações autônomas da classe trabalhadora estão aproveitando a atual conjuntura para construírem seus sindicatos livres. A luta dos trabalhadores egípcios esta em franco ascenso. Esta semana, os trabalhadores das ferrovias entraram em greve, paralizando o transporte público do país e exigindo maiores salários e liberdades políticas do governo.
Diversos setores da esquerda egípcia parecem estar menos preocupados com as eleições parlamentares e mais focados na organização da classe. Desde a greve dos operários da fabrica de tecidos Mahalla em 2006, o movimento operário tem passado por um grande período de mobilizações, catalisando ainda mais pela queda de Mubarak. De lá para cá, 260 novos sindicatos livres foram criados, e uma nova central independente, que já possui um milhão de trabalhadores em sua base, vem crescendo e se desenvolvendo no Egito.
Segundo Tamer Wageeh, dirigente do Partido da Aliança Popular Socialista, um dos principais partidos políticos de esquerda do Egito pós-Mubarak, a fase da revolução na qual a juventude ocupava o espaço de vanguarda se encerrou. “Agora cabe aos trabalhadores assumirem a rédea do processo”, alega o dirigente. Seu partido, segundo ele, está inteiramente voltado a isso.
A situação política no Egito parece profundamente fluida, cercada de incertezas e confusões de todos os tipos. E enquanto o exercito e a tropa de choque continuam ocupando a praça Tahir, impedindo assim a presença de novos protestos no espaço, a única certeza que se tem hoje no país é que a revolução iniciada no dia 25 de janeiro está longe de ter chego ao seu fim.
Matéria publicada originalmente na Caros Amigos
http://www.carosamigos.com.br
Aldo Sauda é formado em Relações Internacionais e faz pesquisa no Egito.