Conversa com Aleida Guevara

Aleida Guevara na 10ª Jornada de Agroecologia. Imagem: Joka Madruga.

Transcrição: Michele Torinelli

Agroecologia em Cuba

Só produzíamos açúcar, grandes quantidades de açúcar. Isso teve como consequência o desgaste de grandes extensões de terra em Cuba. Por sorte, nos demos conta a tempo. Diminuímos o uso de terras para plantar cana e consideramos que o açúcar em si não era tão importante: eram muito melhores os derivados do açúcar. Começamos a pensar como a cana-de-açúcar poderia ocupar menos espaço e produzir mais, com melhor qualidade, como resolver os problemas. 1º: cuidar dessa terra; 2º: buscar plantações que possam recuperar as terras esgotadas pelo monocultivo de cana; 3º: fazer rotatividade de cultivos, para que a terra se reestabeleça e mantenha sua fertilidade.

Foi um processo difícil, perdemos o primeiro lugar entre os produtores de açúcar do mundo, mas recuperamos nossa terra. Hoje Cuba produz açúcar, não tanto, mas em melhor qualidade, produz muitos outros produtos, e estamos preocupados em melhorar a produção dos pequenos agricultores. Havia franjas de terra do Estado, entre terras de pequenos agricultores, que não estavam sendo utilizadas: foram redistribuídas. Estamos ampliando a agricultura que respeita a terra. Utilizávamos muitos químicos também: era moda. Com a desaparição do campo socialista europeu, não tínhamos mais petróleo, portanto as máquinas agrícolas não podiam mais ser usadas. Sorte que não nos faltaram alternativas – nos demos conta que somente plantando pequenos cultivos rodeados de outros que o protegessem podíamos dispensar os químicos, que acabavam com a terra. Isso ajudou a recuperar o solo, melhorou a produção, a quantidade e a qualidade dos produtos.

Ainda falta, ainda é necessário recuperar terras em Cuba. A colonização acabou com nossos bosques, a Espanha nunca nos pagou um centavo por toda a madeira roubada, e nem vão pagar. Quando fui a Portugal, na biblioteca de uma das melhores universidades do mundo, me disseram que não precisam de químicos para proteger seus livros, porque as estantes são feitas com madeira muito especial, preciosa. E de onde pegaram essa madeira? Do Brasil! E quando vão pagar ao Brasil? Nunca! Não queremos dinheiro, queremos respeito. Queremos que comecem a negociar com nossos produtos com respeito, pagando-nos o que realmente valem. Isso que queremos e vamos conseguir, pouco a pouco.

Há muito o que aprender com o campesinato. E com as populações autóctones também. Cuba não tem essa sorte – praticamente toda a população originária foi massacrada. Mas o Brasil tem, a Bolívia tem, Equador, Venezuela. Agora, com essa unidade latino-americana, a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), estamos aprendendo mais sobre nossas raízes culturais, a proteger melhor a terra, por exemplo. Quando se tira da terra uma cebola, a que horas? Os quéchuas tiram a cebola da terra entre as 4h e as 6h da manhã, porque nesse horário o sol ainda não incide sobre a terra e a cebola guarda suas substâncias – a cebola é muito rica em vitamina C. Temos que aprender a respeitar a terra, os cultivos, para saber para quando podemos tirar o melhor para o ser humano respeitando a terra. Essas coisas podemos aprender do nosso passado, com nossos povos autóctones, usando a tecnologia, as novas técnicas, mas respeitando aqueles que souberam utilizar nossa terra durante séculos.

Mas às vezes é difícil convencer os campesinos, porque por muito tempo eles foram ensinados de outra forma, foram pressionados por transnacionais para produzir de determinada maneira. E agora se está dizendo “não, é melhor de outra forma”. É necessário convencê-los, e nunca se convence a uma gente impondo algo, mas mostrando como se faz melhor. Isso leva tempo.

Contribuição do MST e da Via Campesina na construção do socialismo na América Latina

Eu, como estudante universitária, quando estava cursando medicina, fui um dia, somente um dia trabalhar no corte de cana de açúcar. A partir desse dia comecei a beijar o chão por onde caminha um cortador de cana, comecei a respeitar o esforço que faz o trabalhador do campo. Pude perceber o esforço às vezes desumano – isso não se paga com nada, não há como pagar. O único que podemos fazer é ajudar esse trabalhador a melhorar suas condições de vida. Habitação, saúde, educação – são coisas básicas que o camponês necessita.

Eu vi isso no Movimento Sem Terra do Brasil. Vi o rosto de homens e mulheres desesperados porque não têm nada, nenhum alimento para dar a seus filhos. Os vi em acampamentos de lonas pretas, esperando uma oportunidade para poder fazer produzir essa terra que lhes estão negando e que ninguém está utilizando. Eu estive ali com eles, e estive também quando conquistaram a terra e a fizeram produzir. E não somente para eles, mas para todos. Usam um pouco para sua alimentação, um outro pouco vai de forma solidária para quem ainda não tem a terra, e um outro pouco é usado para vender e gerar renda.

O Movimento Sem Terra conseguiu transformar os sonhos mais simples e mais profundos – como um pedaço de terra para produzir, uma casa digna pra morar e uma escola para os filhos – em realidade. Por isso eu admiro o Movimento Sem Terra do Brasil, a coerência, a unidade e a solidariedade que tem mostrado com o seu povo e com outros povos do mundo.

Solidariedade não é dar aquilo que te sobra. Solidariedade é dar o que o outro necessita, mesmo que isso te custe. Eu já vi isso na prática no MST, por isso tenho muito orgulho em ser parte desse movimento.

Comunicação

Não sou nenhuma mestre em comunicação, mas é sofrido, como povo, como mulher cubana, a desinformação e a má informação sobre a realidade que vivemos em Cuba. Há jornalistas que são simplesmente papagaios, que repetem o que dizem as transnacionais de comunicação sem investigar qual é a origem dessa notícia. Isso é uma irresponsabilidade tremenda de um profissional de comunicação, porque sobre os ombros de vocês está a grande responsabilidade de fazer com o povo saiba o que está acontecendo ao seu redor. Eu acredito que esse é o objetivo de qualquer meio de comunicação, dar uma informação adequada para que as pessoas possam reagir diante do que está acontecendo. Se não se dá essa informação, as pessoas vivem de costas à realidade. Neste país, por exemplo, existem meios importantíssimos, que poderiam dar essa informação adequada e não o fazem. Te dou um exemplo: a Globo, com suas grandes novelas. Esse é um povo consumidor de novelas, o meu também. Que melhor meio para informar de uma realidade cotidiana do que uma novela, que a vê milhares de pessoas? Em vez de colocar esquemas e preconceitos na mente das pessoas, há que ajudar a abrir essas mentes. Há que ajudar que se possa virar as costas e olhar o que está atrás. Isso se pode fazer por meio desse tipo de comunicação massiva. Mas é muito importante a capacidade de um povo de conseguir entender a notícia.

O que faz falta? Um povo culto. Nos faz falta a alfabetização de nossa gente, que a educação seja realmente gratuita, que as escolas públicas tenham a melhor qualidade, e não as privadas, as escolas públicas que têm que ter os melhores professores. Sabe por quê? Depois as universidades públicas começam a receber gente das escolas privadas, que estão melhor preparadas. Não é um problema de fazer com que os negros, os índios, possam entrar na universidade, não. Tem que se fazer um educação pública que tenha um nível suficiente que todos tenham a mesma chance de entrar na universidade. Não por cor de pele, não por origem étnica, não; pelo seu direito como ser humano. Temos que conseguir isso em todos os povos, ou não teremos profissionais que realmente representem os interesses do povo. Teremos médicos de elite, engenheiros de elite, que o único que querem é aumentar o nível do seu bolso, de seu dinheiro. Faz falta educação para que as pessoas consigam se comunicar melhor também.

Os profissionais desse país, que conhecem as deficiências, as carências de seu povo, têm que aprender a modificar sua linguagem, a chegar a essa gente, a respeitar uns aos outros. O verdadeiro graduado universitário não é o que tem um título, o verdadeiro universitário é graduado no povo. Quando você, com pouco recurso, consegue melhorar uma favela, você se graduou em engenheiro e arquiteto. Quando decide cuidar da vida e da saúde de gente que vive na favela, você se graduou em medicina. Em hospitais, qualquer um trabalha. Em clínicas particulares, qualquer um trabalha. Ao lado povo, com poucos recursos e prevenindo doenças, só o verdadeiro médico. Esses são os que precisamos formar. Quando tu investigas uma informação e és capaz de dar essa informação a um nível acessível, tanto a um científico como a um indígena, então és um verdadeiro comunicador. Essas coisas são as necessárias para seguir avançando.

O que o Estado Brasileiro representa para a América Latina?

O Estado brasileiro, nada. O povo brasileiro, sim, é muito importante para a América Latina (AL). O povo que tome o caminho para a construção de uma sociedade diferente, solidário à AL, esse é o melhor exemplo que poderia ter a AL. A produção desse povo, em benefício aos outros povos da AL, e não às multinacionais europeias, é o melhor que poderia acontecer. Vocês tem muita força como povo, o dia que decidam usar essa força em benefício de vocês, então estarão lutando pelo benefício de toda a AL. Um povo muito grande, que tem a possibilidade de mudar a história americana.

O povo que elege seu Estado. Se vocês realmente se sentem representados e são participantes desse Estado, aleluia. São vocês que dizem o que querem, como querem e como alcançar. Por isso não falo de Estado, mas de poder do povo. Quando um povo enérgico e viril chora, disse Fidel, a justiça treme. Nós fizemos disso realidade. Vocês também podem. A diferença de um povo para o outro é a decisão de lutar até as últimas consequências. É uma decisão do povo brasileiro, mas é muito importante esse povo decidir lutar pela América Latina.

Socialismo em Cuba

Cuba continuará sendo socialista até as últimas consequências. Nesse momento, Cuba tem que buscar soluções a problemas reais. O Estado cubano se viu na necessidade de deixar livres a milhares de pessoas que já não trabalhavam para ele. Mas, ao mesmo tempo, isso seria desampará-los. E isso uma sociedade socialista não o pode fazer. Tivemos que buscar alternativas para isso: a gestão privada, de pequena empresa. Eu prefiro as cooperativas que as iniciativas individuais, mas isso o povo pouco a pouco vai escolhendo, e tem que se deixar o povo escolher. O risco onde está: na consciência social. Se vive como se pensa e se pensa como se vive. Se você começa a viver só para si, para o seu bolso, você perde essa consciência social. Teremos que enfrentar isso nos próximos anos.

Tivemos que buscar uma saída à situação econômica real que vivemos em Cuba. E uma solução traz seus problemas. Será a melhor? Ainda não temos certeza. Tem que se ver na prática, deixar evoluir. Cuba continua sendo constitucionalmente um país socialista. Em última instância, retificamos nossos erros e seguimos adiante. Mas sempre com o socialismo, não há outro caminho para Cuba. O dia em que perdermos isso, deixamos de existir.

Embargo

Nós chamamos de bloqueio, porque embargo seria direito dos EUA – deixar de ter comércio com Cuba, embargar-nos, é seu direito. Mas eles não fazem isso, eles tentam que nenhum país do mundo comercialize livremente com Cuba. Usemos um exemplo simples: a aviação cubana. Praticamente não possuímos aviões no momento, porque se o produto tem 10% de elementos dos EUA, eles podem por lei sancionar essa empresa, impedir que esse produto entre nos EUA, e tirar o capital deles dessa empresa. Ou multá-la com 5 a 10 milhões de dólares por fazer comércio com Cuba. Essa é a lei do bloqueio, que é muito dura para Cuba.

Mas temos resistido, por meio da solidariedade. Por isso Cuba é um país solidário. Nós dizemos que mais feliz é aquele que sabe receber sem esquecer, e dar sem lembrar. E tratamos de fazer isso na prática todos os dias. É difícil a situação econômica, mas vamos buscando alternativas. A ALBA é a última alternativa que vimos, e está dando frutos. A unidade latino americana nos faz mais fortes, mais auto-suficientes. Somos capazes de viver independentes do resto do mundo. Como o Equador: é um país pequeno, mas que tem todos os climas, muita produção de todo tipo de alimento. Nós temos médicos, trabalhadores sociais, engenheiros. Nós podemos ajudar com aquilo que o Equador necessita, e podemos receber o que nos faz falta. Respeitamos nossas diferenças, não impomos critérios a ninguém, só mostramos o que somos capazes de fazer. Se queres, podes eleger ou não esse caminho, é tua decisão. Enquanto isso, ajudo com aquilo que tu necessitas, e tu me pagas com tua solidariedade. E vamos caminhando.

Elite brasileira e a “Cuba decadente”

Me dá pena, muita pena dessa elite. Primeiro, porque não se dá conta do povo que tem. Segundo, porque essa elite brasileira é muito artificial, foi feita num momento determinado por uma influência de capital dosEUA, diretamente. Se não sabe valorizar o que tem como povo, não tem perspectivas de desenvolvimento. Me dá pena realmente essa elite. Só cuida do seu bolso, da sua qualidade de vida, mas não se dá conta que é impossível manter isso se não há um povo capaz de a sustentar. Se esse povo é maltratado, humilhado e, além do mais, manipulado e enganado, um dia tomará consciência disso. Quando o povo unir esse poder que tem, veremos o que acontecerá com essa elite brasileira.

Cuba continua socialista sem Fidel?

Raul é agora o presidente, mas ele também deixará o cargo mais cedo ou mais tarde. Não temos homens que possamos dizer que sejam iguais a Fidel ou a Raul, porque só nascem uma vez no século. Mas temos muitos homens e mulheres no país preparados para continuar o que o povo decidiu. Se o povo não está decidido, a revolução não se sustenta, a mudança não se sustenta – não se desenvolve, não melhora. O povo tem que estar convencido para poder avançar. Não é uma questão de Raul ou de Fidel, mas da decisão da maioria dos cubanos.

Há que se seguir trabalhando ideologicamente, politicamente, porque o inimigo é muito poderoso, e tem vários meios para tentar enganar as pessoas. Por isso temos que ir sempre mostrando nossas verdade, como disse Che Guevara, com nossa própria vida. A única maneira de ter um povo que te apoia e que continua o caminho é quando ele está convencido de que está fazendo para seu próprio bem, é para sua própria vida.

A primeira vez que vim ao Brasil disse que não é possível que um país tão rico, com tanta riqueza econômica, tenha uma criança passando fome nas ruas. Não é justo, não é admissível. Depois pensei, o povo tem que decidir entre morrer de fome ou morrer tentando mudar essa realidade, isso é uma decisão do povo. Você pode dizer “isso é o que fala uma mulher que tem leitura social diferente, que tem certo nível intelectual, que é uma profissional, que participa do Partido Comunista, isso faz com que ela pense isso”. Fui ao sul do país, no Rio Grande do Sul, e conheci uma mulher simples do povo, não tinha segundo grau, não tinha minha ideologia. Havia nascido aqui, não em Cuba. Essa senhora era integrante do MST e disse exatamente o que eu havia dito, e ainda mais, fez disso realidade: morreu defendendo um pedaço de terra para dar alimento a seus filhos. Por isso não importa a ideologia, nem o nível cultural, nem de onde você vem. Importa que somos todos seres humanos e precisamos viver com dignidade. Chega um momento em que o povo diz “basta!” e começa a marchar. Esse momento inevitavelmente vai chegar.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *