Estimado Barack Obama,
Mais do que uma carta, a intenção é tentar ‘dar-te uma mão’ desde a América Latina frente à crise econômica, política e de valores que atinge os Estados Unidos, a Europa, a Grécia e outros países do mal chamado “primeiro mundo”. Sempre afirmei que somos um só mundo mal distribuído e agora a crise toca aos intocáveis.
Como Fausto que, por um amor, vendeu sua alma ao diabo, o grave é que alguns países venderam sua alma à Bolsa que os embolsou e lhes reclama o pagamento da dívida e os juros; semelhante ao Mercador de Veneza que reclama o pagamento da dívida com uma libra de carne de seu próprio corpo.
Esclareçamos as coisas, Barack. A América Latina não pode dar-te crédito algum; está desfalcada graças à gentileza do FMI e do Banco Mundial, com suas receitas. O primeiro conselho é que não aceites receitas de organismos tóxicos. O que, sim, podemos fazer é transmitir-te algumas experiências que podem ajudar.
Temos que aprender a viver com a crise; nós a assumimos quase que como uma irmã mais velha. Algumas vezes a amamos e, outras vezes, a odiamos; são como problemas de família.
Temos que revisar e ver “que o armário de ideias está vazio”, como dizia alguém cujo nome não recordo; portanto, deves gerar ideias superadoras e aprender os mecanismos impostos pela dívida externa como instrumento de dominação. Nisso, vocês são mestres.
Porém, os latino-americanos sabemos bastante sobre as pragas bíblicas que são “esse monstro grande que pisa forte toda a inocência das pessoas”, como canta León.
Heráclito dizia que nunca nos banhamos nas mesmas águas, apesar de ser o mesmo rio.
Tudo muda. Até teu país, que se cria poderoso amo do mundo, hoje, deve enfrentar a maior dívida externa do mundo, que deixa aos norte-americanos com a boca aberta e o bolso tremendo na angústia existencial, quando a Standard & Poor’s faz sinal de negativo nas qualificações, no melhor estilo imperial.
Tenho que dizer-te que não tenho suficientes dedos nas mãos e nos pés para contar a dívida de teu país em bilhões, trilhões; cifras que não entram em minha cabeça, e tento compreender que o impossível é possível.
É demais para meus neurônios comprovar que o maior credor dos Estados Unidos é a China “capicomunista” e, entre os mistérios desse legendário país, é saber como fará para cobrar aos Estados Unidos a dívida externa. Porém, a China também controla o mercado de metais para alta tecnologia, o que torna os EUA mais dependentes da China. Tudo isso me parece um ‘conto chinês’.
Me pergunto: Os chineses terão que convocar aos seus deuses e magos de todas as dinastias e ao sábio Confúcio, que deve estar bem confuso com o que acontece em teu país? Quem sabe! Nisso não podemos ajudar-te. O que, sim, podemos, é ensinar-te o jogo da dívida externa:
1. Deves saber que as regras são postas pelos que mandam e não por teu país, que passou a ser membro do clube dos devedores. Portanto: “Bem vindo ao clube dos devedores!”
2. No jogo, os credores usam dados viciados e o resultado será sempre o mesmo: “quanto mais pagas, mais deves e menos tens”. Jogar é uma forma de fazer-te acreditar que podes ganhar.
3. Não te desesperes; o jogo vem com surpresas. Estás condenado à perpetuidade, como o mítico Sísifo: nunca chegarás ao cume; uma e outra vezes deves carregar o peso da dívida que, passo a passo, pesa mais e mais.
Pega o lápis, estimado Barack, e anota; porém, não te desesperes; coloca todos os números que queiras e sempre obterás o mesmo resultado.
Até o momento, aplicaste um duro programa de ajuste fiscal em gastos sociais, educação, saúde, alimentação por 2,5 bilhões de dólares e aumentaste o gasto militar com a cumplicidade do Congresso para elevar o endividamento até 16,4 bilhões de dólares, cifra superior em uns dois bilhões ao PIB de teu país. Segundo os dados que o politólogo Atilio Borón recolhe em sua nota “Uma estafa de 16 bilhões de dólares”. Não perderei tempo em colocar dados que já tens.
Se continuas com essa loucura, esperando resolver o déficit, é como colocar a cabeça na guilhotina para que tu mesmo a cortes. Estimado Barack, por favor, não sejas suicida. Tenta encarar políticas públicas a favor de teu povo para evitar que o país pegue fogo, como está acontecendo na Europa e em outras latitudes, com os indignados… indignadíssimos…
Em vez de enfrentar a pobreza, a fome e o desemprego que atinge a mais de 54 milhões de pessoas, envias milhões de dólares para salvar aos que mais têm. São 659 milhões de dólares que foram abonados a instituições bancárias e a empresas financeiras. Algo cheira mal, Barack, e pode apodrecer.
Teu governo decidiu continuar aumentando o gasto militar, as bases em diversas partes do mundo, para promover guerras e conflitos à custa do direito de teu povo e de outros povos, vítimas de teu país. Se crês que apoiando o complexo industrial-militar resolverás a crise, chegarás a um ponto sem retorno.
Não deves esquecer que quem semeia violência recolhe mais violência; teu país suportando o bumerangue das receitas neoliberais que impuseram a outros povos. Tens uma possibilidade: nos EUA há pessoas sábias e com ideias que têm propostas para teu armário vazio e podem ajudar a superar a crise.
Porém, vamos ao concreto e tentemos visualizar algumas soluções. Como o problema é muito mais complexo, se necessita ter pensamento holístico:
Quanto custa aos Estados Unidos a guerra no Iraque?
Teu antecessor, George W. Bush, mais mentiroso do que Pinóquio, disse que a guerra no Iraque custaria 50 bilhões de dólares. Os EUA estão gastando essa quantia no Iraque a cada três meses, como diz o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz: “Se situamos essa quantidade em seu marco, o resultado é que por uma sexta parte do custo da guerra dos EUA, seu sistema de seguridade social poderia ser dotado de uma sólida base econômica durante mais de meio século, sem reduzir as prestações sociais e nem aumentar as contribuições”. Mais claro, impossível.
Quanto custa uma bomba que teu exército e teus aliados detonam sobre a Líbia, o Iraque e o Afeganistão?
Te recordo que 146 entidades financeiras de 16 países investiram e prestaram serviços financeiros pelo valor de 43 bilhões de dólares para fabricar bombas de fragmentação entre os anos de 2007 e 2009.
Um míssil Trident DII5, de longo alcance, pode transportar uma cabeça nuclear e seu custo é de 30.9 milhões de dólares. A empresa Lockheed Martín é a contratista ganhadora a um custo de 789,9 milhões de dólares.
Quanto custa um tanque de guerra e um avião de combate?
Anota, Barack, para não esquecer e soma as cifras inimagináveis para promover a morte e a destruição.
Outra pergunta: Te povo sabe quanto o governo gasta em guerras que desencadeiam em diversas partes do mundo e para onde vão os impostos que pagam?
O AH-Apache, usado pelos Estados Unidos no Iraque, é um helicóptero de ataque utilizado pelos britânicos, por Israel, pelo Japão e outros; o custo do programa foi de 10 bilhões e 500 milhões de dólares. O custo de despegue é de 18 milhões de dólares e o custo de compra da versão AH-64D, em 2003, era de 56 milhões de dólares.
Aqui vem o prato principal: Segundo a TIME, na lista de 2009, um simples caça de combate costa 94 milhões de dólares e soma até o poderoso e letal bombardeio avaliado em 2.400 milhões de dólares o B-2 SPIRIT.
Nem falar dos porta-aviões que entram no imaginário do incrível; porém, dolorosamente certo, como a classe NIMITZ, que alcançam por unidade os 4.000 milhões de dólares; que necessita um equipamento anual de 150 milhões de dólares. Isso sem contar os 80 aviões que podem aumentar sua capacidade até 100.
Me cansei, Barack; estou esgotado com tanta loucura e irresponsabilidade… Necessito respirar.
Porém, temos que continuar. Outras medidas que podes utilizar para reduzir o déficit de teu país –medidas que prometeste; porém, não cumpriste- é fechar as prisões de Abu-Graib (Iraque) de Guantánamo (Cuba). E levantar o bloqueio a Cuba e liberar aos cinco cubanos que manténs presos por mais de 10 anos. Isso permitiria que teu país economizasse milhões de dólares.
Me diz, Barack: Quanto custa ao teu país o salário dos torturadores, assassinos e carcereiros formados na Escola das Américas, que, mesmo tendo mudado de nome, continua usando os mesmos métodos?
O problema mais grave que atinge ao teu país é o medo. Medo dos demais e medo de si mesmo. Porém, se empenha em aferrar-se ao salva vidas de chumbo e inventa mecanismos de segurança que torna a vida mais insegura e angustiante. O orçamento militar de teu país para 2011 supera os 700 bilhões de dólares.
As guerras, o petróleo, os minérios, a água, o poder político e econômico custam milhares de vidas humanas; provocam fome e violência. Porém, para os que mandam, negócios são negócios; e a humanidade passa a ser uma abstração.
Hoje é a Líbia; a guerra pelo petróleo. Amanhã? Será pela água, pelos recursos e bens naturais? Quem sabe! O que, sim, sabemos é que estás hipotecando o presente e destruindo o futuro de teu povo e de outros povos do mundo.
Não podemos continuar lamentando a situação em que vivemos; devemos construir na esperança. Te proponho o seguinte:
Doa o valor de um dos aviões de combate e, como dizia Raoul Follereau, poderás ver quantos hospitais, escolas e empregos dignos podem ser construídos para os povos.
Com o valor de uma das bombas que teu exército joga sobre o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia podem ser construídos centros de saúde e dar de comer e educar a milhões de crianças, que te oferecerão um sorriso e esperança de vida.
Se fossem somados todos os milhões investidos para a morte, quanto mais teu país poderia fazer para a vida de teu povo e da humanidade? Poderias pagar a dívida externa e interna.
Minha saudação de Paz e Bem.
Adolfo Pérez Esquivel, escritor – Prêmio Nobel da Paz
Tradução: Adital