Na última quarta-feira (12/09), o primeiro-ministro da Rússia finalmente se pronunciou a favor da libertação das três integrantes da banda Pussy Riot, presas desde março e condenadas a três anos detrás das grades por “vandalismo motivado por ódio religioso”, ao cantar uma oração punk (de 40 segundos) na Catedral de Cristo o Salvador de Moscou, na qual pediam à Virgem Maria para livrar a Rússia do presidente Vladmir Putin. Tal pronunciamento, por si só, não significa a soltura imediata das moças, mas sinaliza que, ao que tudo indica, um desfecho feliz para essa trama pode se desenrolar em breve: não devido a um delírio de bom senso por parte das autoridades russas, mas sim pela intensa pressão popular e midiática que se espalhou internacionalmente sobre o caso.
Acostumados a preencher suas páginas com meia dúzia de bandas quase exclusivamente masculinas (muitas vezes em troca de jabá), abrindo brecha, é claro, pras mulheres maçã-uva-e-melancia da vez, os jornais passam a ceder longos minutos pra falar das novas super stars. Minutos esses que se tornam ainda mais longos se a gente lembrar que, segundo uma pesquisa da WACC (World Association for Christian Communication), as mulheres representam apenas 24% das fontes de informação no mundo. E etc, etc, etc. Pois então, de qual elixir lilás milagroso teriam tomado os bem-feitores, editores e prolet(r)ários, dos telejornais?
Se o punk não tem o rebuscamento musical necessário para tocar nas rádios, se o conteúdo político de suas letras o torna confrontador demais pra aparecer nos programas de tevê, por outro lado, a Pussy Riot carrega alguns elementos pop centrais para ser alçada à categoria de “tudo o que importa na música hoje”, segundo o jornal The Guardian. As balaclavas coloridas dão o requinte estético cool, e a ocultação estratégica de suas identidades, tais como o fazem as Guerrila Girls ou mesmo o Banksy, ao mesmo tempo em que as mantém (mantinham?) minimamente mais seguras no inóspito cenário político russo, também despertam curiosidade e interesse, dando-lhes um ar de super-heroínas-pós-modernas-riot. E se o mundo ainda não tinha parado pra ouvir suas músicas ou pra assistir aos vídeos de suas inusitadas performances, se as notícias que nos chegavam ainda eram esparsas, certamente se tornou praticamente impossível não topar com elas em qualquer noticiário depois de sua prisão. Além do fato noticioso em si e dos adornos pop, cabe relembrar ainda o cenário internacional favorável às manchetes.
Não tão de repente assim, a velha Rússia ex-socialista reaparece no cenário internacional como a segunda maior potência militar do mundo, possuidora de enormes reservas de petróleo e gás natural e com economia em forte crescimento. Ainda em março deste ano, a terra natal da feminista Alexandra Kollontai assistiu à retomada de Vladimir Putin, pela terceira vez, ao poder. Seu governo vem sendo criticado pela implantação de políticas que agravaram a pobreza e restringiram direitos civis no país. Após cumprir dois mandatos, Putin, então primeiro-ministro russo, foi eleito para seu terceiro governo de seis anos, em uma conturbada eleição. Grupos de oposição afirmaram que a votação contou com fraudes generalizadas, com muitas pessoas votando mais de uma vez. Fortes ondas de protesto se seguiram, culminando, inclusive, na prisão das Pussy Riot. A mídia passa então a celebrar, internamente, a peculiaridade estarrecedora de cada novo fato envolvendo as jovens, revertidos, diretamente, em mais acessos a seus portais.
Evidentemente arbitrária e absurda para nós, que desfrutamos de liberdades políticas relativamente maiores que as enfrentadas no contexto da Rússia de Putin, a prisão das Pussy Riot logo levou diversas celebridades a se posicionar, de Yoko Ono e Paul McCartney a Kim Gordon e Patti Smith. E considero haver dois momentos decisivos para a popularização definitiva da solidariedade internacional sobre as Pussy Riot: as declarações de Madonna e de Kathleen Hanna.
Durante seu show no Estádio Olímpico de Moscou, em sete de agosto, a diva máxima do pop Madonna, que já havia declarado apoio às jovens meses antes, apareceu com o corpo inscrito com o nome da banda que já havia virado palavra-de-ordem por todo o mundo, por meses a fio: #FREEPUSSYRIOT (“libertem as Pussy Riot”). Estavam borradas, definitivamente, as fronteiras entre o meio alternativo e o pop, entre o apoio inerente ao espírito de irmandade feminista e o assunto trivial na mesa de jantar.
No mesmo dia, Kathleen Hanna, líder da histórica banda punk feminista Bikini Kill (uma das fundadoras do movimento Riot Grrrl, nos Estados Unidos) e hoje à frente do Le Tigre, figura que também já havia declarado seu apoio às russas, lançou o seguinte comunicado em seu site:
Sério, elas estão na porra de uma gaiola!
(Tradução do original Seriously they are in a fucking cage!!!, por Srta. Bia)
Então, Pussy Riot está na prisão e o julgamento é uma farsa total. Madonna se pronunciou sobre o assunto junto com zilhões de pessoas de todo o mundo. Como alguém que esteve em bandas feministas, estou muito triste e indignada. Quando minha banda Le Tigre usava vestidos com a frase “STOP BUSH” e manifestou-se contra a homofobia, o racismo e o sexismo, não achávamos que receberíamos um tratamento justo na indústria da música e nem na cena underground, mas nunca imaginamos a prisão. Karen Finley perdeu seu NEA, uma concessão na década de 90, minha banda Bikini Kill foi muito vaiada, havia campanhas de ódio e violência contra nós, mas nós nunca sequer pensamos que iríamos parar na prisão por nossas crenças. As Guerilla Girls usam máscaras para proteger seus empregos e/ou status no mundo da arte e também para ter um grupo sem líder, mas não para se manter fora da cadeia.
As meninas me escrevem o tempo todo perguntando: “Como podemos reviver o Riot Grrrl”? E, finalmente tenho uma resposta … E se as pessoas em todo o mundo começarem seus próprios grupos de performance, bandas, coletivos de arte, etc … e batizá-los de coisas como Pussy Riot Olympia. Pussy Riot Atenas, Pussy Riot Paris, etc …. E talvez, se este julgamento acabar como os promotores querem que acabe, com as mulheres recebendo pelo menos 3 anos de prisão, podemos nos divertir e ir para a Rússia em massa sob a bandeira de que somos todas Pussy Riot, Yoko Ono poderia ser uma Pussy Riot, Patti Smith poderia usar uma máscara ao lado de uma trupe de meninas do Tennesee e adentrar a Catedral de Cristo Salvador gritando: “somos todas Pussy Riot!”
Quem sabe isso pode ser o início de uma coisa totalmente nova, uma nova fonte de motivação para uma arte punk feminista e musical, sem remorsos, globalmente conectada. Um catalisador, não importa como será chamado. Tudo é possível, no mínimo essa banda nos lembrou disso.
Finalmente, a voz que mudou a vida de gerações de meninas e influenciou centenas de bandas feministas por todo o mundo também se juntava ao coro, nos deliciando com a confirmação já óbvia de que estávamos tod@s do lado certo da trincheira. Efeito viral, ondas de protesto se intensificaram, ainda mais, em todas as partes, unidas sob o slogan we’re all pussy riot (somos tod@s pussy riot).
Integrantes da banda que conseguiram fugir.
Foto: Igor Mukhin
E então eu me pergunto: será mesmo, Kathleen, que é de Pussy Riot’s que precisamos pra dar o passo seguinte ao riot grrrl? Sem dúvida, foi através da enorme pressão internacional gerada que o primeiro-ministro da Rússia parece ter sido obrigado, no mínimo, a tomar cuidado com qualquer passo em falso daqui por diante, pisando no arenoso terreno da opinião pública em torno do absurdo todo da prisão das jovens. Mas a questão é: quantas outras pussy riots, menos russas e menos pop existiriam por aí? Por que elas não saem na mídia? E por que, de repente, até mesmo nós só estamos falando sobre elas e lhes dando tanta mídia?
Sabemos que existem diversas razões pra invisibilidade das mulheres na música. Mas passo então a fazer um outro questionamento: por que, quase duas décadas depois que o riot grrrl surgiu pra mudar a vida de tantas de nós, ainda nos deparamos com versões “pós-modernas” dos mesmos problemas na cena independente? Antes de tudo, porque a cena independente é a vida, e não uma versão mais ou menos descolada dela, então não dá pra achar que é só separar o nosso próprio lixo pra gente viver num mundo mais saudável. Quer dizer, as meninas continuam sendo minoria nas bandas, na produção cultural e na cena como um todo, continuam nas fileiras de trás nos shows e continuam, sobretudo, julgadas por sua aparência ou por seu comportamento sexual. Em tempos de “pós-capitalismo” e “pós-qualquer-coisa, eu me recuso a chamar de pós-feminista um mundo onde ainda exista patriarcado. E é a clara existência dessas desigualdades entre mulheres e homens que nos instigam e nos inspiram a fazer coisas como o Festival Mulheres no Volante e o Girls Rock Camp Brasil (acampamento de férias com vivencias musicais para meninas), a montar bandas como a Anti-Corpos ou a escrever em nossos humildes blogs. Estamos “fazendo a nossa parte”, até hoje, porque as coisas não mudaram, até hoje.
E a resposta pro “onde foi que erramos?”, pra mim, em primeiro lugar, é que não erramos. Se o mundo não mudou depois do riot grrrl, talvez seja porque a transformação não pode se dar apenas pela cultura: existe uma base material pra opressão das mulheres, e, enquanto o modelo econômico que a articula não for rompido, definitivamente, continuaremos comendo pelas bordas pra não nos queimar. É preciso romper com a divisão sexual do trabalho, que separa o que é “de homem” e o que é “de mulher” e diz que “trabalho de homem vale mais que de mulher” – e rompê-la como um todo, não SÓ educando noss@s própri@s filh@s de maneira não-sexista e vestindo balaclavas coloridas… É preciso construir um novo modelo de sociedade baseado em um novo modelo de economia: anti-capitalista, feminista e solidária, e pra todas e todos nós – não apenas pra quem conseguiu adentrar em nossas tão seguras bolhas lilases de sabão. Nossa saída continua sendo a auto-organização das mulheres contra o patriarcado reorganizado. Mas de forma ampla e permanente, sem perder de vista o largo horizonte que há pela frente e por todos os lados.