No dia 21 de julho, na presença de J. Ackermann, presidente do Deutsche Bank e representante do International Institute of Finance, foi anunciado acordo entre governos e banqueiros quanto ao fardo que caberia aos últimos no processo de reestruturação da dívida grega. Segundo este acordo, aos banqueiros caberiam até 21% de desconto sobre o valor de face dos títulos gregos, limitando-se perdas a níveis aparentemente toleráveis pelo setor financeiro privado.
Dado que a criação do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FESF, na sigla em francês) data o final do ano passado, após o anúncio de julho parecia restar como desafio às lideranças políticas européias: (i) dimensionamento correto do FESF, de maneira a garantir-se atratividade para novos títulos a serem emitidos pelo Estado Grego; (ii) “negociação” com contribuintes nacionais quanto ao fardo tributário resultante do aporte de recursos no referido fundo; e (iii) (re)dimensionamento adequado dos sacrifícios fiscais a serem impostos aos países da zona do Euro.
A partir daí, seria necessária troca de títulos impagáveis com vencimentos próximos por títulos novos, com maturidade de até 30 anos, evitando-se a tão temida moratória do Estado Grego. A inspiração para a estratégia financeira a ser adotada partiu da “bem sucedida” experiência latino-americana acumulada na segunda metade dos anos oitenta, quando Argentina, México e Brasil, três países periféricos em situação de default na “zona do dólar”, tiveram sucesso em restabelecerem-se como destino para capitais financeiros já no início dos anos noventa.
No sábado, dia 22.10.2011, três meses após parlamentos europeus terem ratificado o acordo anunciado, verifica-se mudança de rota. Em encontro em Bruxelas, a França defendeu perante Alemanha necessidade adicional de capitalização de bancos, não prevista no acordo de julho. O montante estimado chegaria a 108 milhões de euros e corresponderia a reparações pela necessidade de imposição de descontos adicionais aos bancos sobre o valor de face dos títulos da Grécia (cerca de 50%).
Pelos acordos de Maastricht (1993), encontra-se vedado ao Banco Central Europeu (BCE) aporte de recursos no FESF com finalidade de recapitalização do fundo em caso de utilização. Dessa maneira, o plano francês envolveria ainda a institucionalização do FESF como casa bancária autônoma, capaz de operacionalizar o alongamento da dívida grega segundo novas bases propostas. Segundo o Le Monde, para explicar o processo decisório em curso, N. Sarkozy teria afirmado que “o objeto é de uma complexidade técnica considerável. Demanda quantias enormes de dinheiro, compreende entes públicos e privados, com os quais se deve produzir incentivos para adesão voluntária”.
No presente artigo se procurará discutir desafios para condução do desenho do plano de reestruturação da dívida grega a curto-prazo. Da mesma maneira, se procurará argumentar que a ratificação esperada não se encontra livre de contradições a médio e longo prazo, aproximando-se o “dilema europeu” da recente reação conservadora sobre a dívida norte-americana. Ao menos no que se refere à crescente oposição nas democracias ocidentais às políticas expansionistas que não resultem em crescimento econômico.
O curto-prazo da crise européia
A percepção de urgência no encaminhamento da crise européia decorre mais da percepção de fragilidade dos balanços bancários franceses, se marcados a mercado, que propriamente do risco de inadimplência sobre dívidas soberanas. Dessa maneira, considerando-se que bancos atuam sistemicamente em ambientes de livres fluxos, o que é “problema” dos bancos franceses passa a ser dividido com demais bancos atuantes na zona do euro.
Neste sentido, Sarkosy parece defender os interesses financeiros franceses, porém sem grandes contradições com grupos industriais locais, dado que parte do esforço fiscal resultante do “socorro” será compartilhado com alemães. Com isso, não se impõe à indústria francesa perda de competitividade relativa via aumentos de impostos, dividindo-se o fardo com consumidores e produtores alemães.
Sob o ponto de vista alemão, contudo, a situação parece diversa. Tanto a banca quanto a indústria levantaram dúvidas quanto à necessidade do socorro bancário, reforçando-se consenso ortodoxo na aplicação das regras de mercado sem envolvimento adicional do tesouro.
Para essa posição conservadora concorrem ainda ao menos duas cicatrizes mal curadas no imaginário alemão. A primeira, o registro das reparações de guerra, quando a nação foi forçada a sacrifícios materiais extraordinários finda a IIa GGM. Essa memória fortalece politicamente posições conservadoras que exigem da Grécia e de todos as demais nações ajustes fiscais rigorosos (teto de 3% de déficit sobre produto). A hiperinflação dos anos 30 igualmente contribui para o fortalecimento da ortodoxia alemã, que defende a primazia das políticas antiinflacionárias e condena a priori qualquer emprego de políticas expansionistas.
Dessa maneira, premida pela urgência colocada na mesa pelas finanças francesas, a Alemanha pareceu aquiescer e concordar com o encaminhamento das negociações e o aumento de compromissos orçamentários. Neste momento, portanto, se reestabeleceu equivalência com a situação norte-americana, onde a velha indústria mostrou forças no estabelecimento de contrapartidas políticas para a continuidade da gestão da crise pelo executivo.
O devir da crise européia
A indústria européia encontra-se estagnada em parte pela aceitação, nos anos recentes, da valorização do euro em relação ao dólar. Mesmo mal que tem afetado o desempenho industrial em boa parte dos países com convertibilidade plena no dólar, incluindo-se o Brasil.
A China, que desde 1999 passou a ser destino líquido de recursos de investimento direto estrangeiro, até hoje não teve convertibilidade do iuan posta a prova. O comunismo chinês tem sido capaz de dar saltos de competitividade, aproveitando-se dos baixos salários relativos de operários não qualificados, mas também de engenhosidade e potencial inovador. Com isso, parece ter surpreendido grupos industriais na Alemanha, Japão e EUA, que esperavam que a entrada da China na OMC resultasse na ocupação ocidental do maior mercado consumidor potencial do planeta. No entanto, o tiro saiu pela culatra.
Efeito complicado sério é a necessidade de adesão de Espanha, Portugal e Itália ao processo de renegociação de dívidas soberanas.
Nestas circunstâncias, nos parece inevitável que a União européia passe a enfrentar dificuldades quase insuperáveis de manter-se unida.
Neste contexto, nos parece inevitável que a ortodoxia econômica seja derrotada na Alemanha no médio e longo prazo, permitindo-se que a Europa reconstrua, ainda que lentamente e sob ambiente de liquidez elevada em euros, os laços políticos e econômicos compatíveis com atuação federativa. Gastos fiscais, alocados segundo planejamento federativo e utilizando-se de estratégias de inclusão social podem contribuir para reversão da crise a médio e longo prazos. Neste meio do caminho, pode-se esperar protecionismo, inflação e muitos sobressaltos financeiros.