Florianópolis é uma cidade que vive da beleza. Esse é o principal “produto” que seus governantes põem à venda para atrair milhares de turistas em todas as temporadas de verão. Não é sem razão que ano após ano as gentes veem subir dezenas de prédios e hotéis, destinados a abrigar aqueles que vêm para a ilha em busca da beleza. E assim, tal qual Hípias na Grécia antiga, os agentes de turismo vendem a beleza de Florianópolis como coisa. “A praia bela, a areia bela, a paisagem bela, a comida bela”. Mas, quem nasceu aqui ou os que aprenderam a amar a cidade como um espaço onde se vive a vida cotidiana, a beleza tem outro sentido. Não é coisa, é ser. Assim, para esses, o que é belo não é a praia, a areia, a paisagem ou a comida, mas sim a ideia que comunica o caráter das coisas. E se beleza é ideia, não pode ser objetivada, nem vendida.
Ainda assim, o que acontece é que os que amam a cidade precisam conviver/com e batalhar contra com os vendilhões capitalistas, os que apenas enxergam a coisa a ser vendida, sem se preocupar com aqueles que vivem e sofrem a cidade no dia-a-dia. Vai daí que aparecem os conflitos.
Um deles acontece bem agora, nesses dias de quase verão. De novo, os vendilhões decidiram atacar mais um espaço de beleza da cidade, transformá-lo em coisa e vendê-lo aos que também só conseguem conceber a beleza como um objeto. A ponta do Coral. Esse lugar é uma pequena ponta de terra que avança sobre a Baia da Beira Mar, isolada da cidade pela via-expressa e os arranha-céus. Ali, desde os anos 80, os movimentos sociais, estudantes e militantes de toda a ordem vêm lutando para que seja construído um parque e um espaço de atividades culturais. Ou seja, é a proposta da beleza democratizada, entregue a toda cidade. Uma coisa muito justa uma vez que o aterro da Baia é hoje o espaço de moradia da classe alta, que acabou privatizando a vista, a terra e tudo mais.
Pois não satisfeitas com isso, agora as forças do capital querem se apropriar da Ponta do Coral, lugar que historicamente pertenceu aos pescadores, às gentes simples da cidade. O projeto das empreiteiras – tendo a frente a empresa Hantei, é fazer um aterro, descaracterizando completamente o lugar, e construir ali uma marina para que os iates e barcos de turismo possam atracar. Também propõem, no lugar do centro cultural público – como é desejo dos movimentos – construir um hotel de luxo. Será o Parque Marina Hotel.
Hoje a Ponta do Coral é espaço conflagrado, uma vez que a cidade luta há décadas para que aqueles 14 mil metros quadrados, onde vive uma fauna exuberante (garça-branca, biguá, baiacu, garça-azul, socó-dorminhoco, bem-te-vi, quero-quero) possa ser utilizado pela comunidade, de forma livre e democrática. Ninguém aceita a conversa de que aquela é uma área privada e que, portanto, o dono pode fazer o que quiser. Não é assim. A propriedade também deve cumprir uma função pública.
A Ponta do Coral, por ser um terreno à beira-mar, deveria ser terreno de marinha, embora conste em documentos que o dono é Realdo Guglielme, empresário de Criciúma. No passado esse terreno pertenceu a Standart Oil Company que ali tinha um depósito, o qual as entidades queriam ver tombado para a concretização da proposta de um casarão cultural. Com a construção do aterro da Beira Mar (nos anos 80), o Estado acabou comprando o lugar e, depois, com a via expressa concluída, a ponta ficou afastada do resto da cidade e foi vendida outra vez. Mas, a população queria preservar o lugar como área verde e fez um grande movimento. Tudo isso foi em vão. A Ponta do Coral seguiu em mãos privadas e logo já apareceu o projeto da construção de um hotel. Houve manifestações, protestos, luta, mas, como quem manda na cidade é o dinheiro, em 1998 Guglielme conseguiu derrubar o prédio da Standart Oil e frustrar uma luta de anos. Ainda assim, os movimentos sociais seguiram lutando e inviabilizando a construção do hotel.
Agora, a queda de braço é com a construtora Hantei, contratada para levar adiante a proposta do hotel e da marina. A Ponta do Coral, velho espaço de pescadores e área de lazer do povo da Agronômica é coisa vendável, é paisagem/objeto, é privilégio para poucos. Na cidade, os movimentos que se levantam contra o empreendimento são tratados como os “inimigos do progresso” ou os “do contra”, como é comum aos capachos do poder tentar ridicularizar e diminuir aqueles que pensam no bem público. O fato é que o “progresso” que a marina e o hotel se propõem a trazer não será para todos. Apenas os donos do empreendimento se encherão de dinheiro com a proposta. O que as empresas envolvidas no processo dizem é que o povo de Florianópolis vai ganhar porque haverá muitos empregos. Outra bobagem. Os empregos que um empreendimento como esse geram podem ser gerados em outros lugares e o serão, uma vez que a vocação da ilha é o turismo. Assim, a vida de nenhuma pessoa será inviabilizada se o projeto não vingar. Pelo contrário. Com um parque cultural, toda a gente da cidade poderá se favorecer e desfrutar de qualidade de vida.
A compra das consciências e as ilegalidades
Como sempre acontece em situações como essas, a empresa construtora iniciou um trabalho de compra de consciências. Contando (ou comprando?) com o apoio de grandes empresas de comunicação a empresa fez um agressivo trabalho de relações públicas, afirmando que a Ponta do Coral não será um espaço privado. Será construído o hotel de luxo e a marina, mas o povo poderá disfrutar de uma série de equipamentos públicos como pracinha para crianças, anfiteatro e praça. O que a empresa não diz é que esse espaço público ficará de cara para a rua, ou seja, completamente desprovido da beleza do lugar. As pessoas terão um lugar, mas ele será de segunda categoria. A beleza da ponta ficará de uso exclusivo dos turistas, hóspedes e navegadores. Para os empresários da construção “a plebe” deve ficar satisfeita com esse acordo e pegar o que pode.
Não bastasse esse engodo de “espaço público”, a empresa ainda anda pela comunidade espalhando a promessa de emprego, o que não deixa de ser algo tremendamente cruel, uma vez que é óbvio que não haverá empregos para todos, e os oferecidos não passarão dos cargos de arrumadeira, garçom ou, quem sabe, de atracadores de barco. E, as gentes, premidas pelas necessidades da vida, acabam embarcando nessa conversa furada.
Isso ficou patente na última audiência pública que aconteceu no dia 22 de novembro, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. A Hantei, buscando criar falsa uma empatia junto aos deputados convocou moradores da Agronômica, empregados da construtora e até das imobiliárias para se manifestarem favoravelmente ao projeto. E o povo lotou a sala. Mas, para surpresa de todos, três horas depois do início da audiência foi descoberta a razão de tanta gente. A maioria havia recebido dinheiro para comparecer. As mulheres levaram 15 reais e os homens 20. Boa parte das pessoas não sabia absolutamente nada do que estava acontecendo ali, apenas seguiam as instruções para bater palma ou se manifestar quando alguém mandasse. Tiveram até direito a um lanche. O blogueiro Mosquito conseguiu a gravação da fala de um grupo de mulheres e denunciou a trama.
A audiência acabou sendo uma rica experiência de desvendamento de máscaras, como bem lembra Loureci Ribeiro, um dos estudantes que participou dos primeiros atos em defesa da Ponta do Coral e que, hoje, como arquiteto, segue defendendo a proposta comunitária. Poucos políticos da cidade compareceram (nenhum vereador), mostrando o quão pouco se importam com os assuntos da comunidade. E o que se viu foi o claro conluio que existe entre os grandes empreendimentos, a mídia, a administração municipal e os órgãos ambientais para o loteamento geral da cidade e da beleza.
Além dos movimentos sociais que historicamente tem lutado contra o projeto de privatização da beleza da Ponta do Coral, apenas a voz solitária da representante do Ministério do Planejamento, Isolde Espíndola, se fez ouvir, dizendo que a lei 180/2005 – que doa 12 mil metros de terra para a Hantei e permite o aterro de mais 30 mil – é ilegal e precisa ser anulada. “A área onde será feita o aterro é federal. A câmara de vereadores não tem ingerência. Essa é uma lei ilegal”. Mas, ainda assim, foi ignorada.
Enfim, a audiência cumpriu seu papel, expôs as feridas, as ilegalidades, as irresponsabilidades e os desejos obscuros das empreiteiras e dos maus políticos. Agora, é hora de a cidade se posicionar. Mas, essa posição precisa ser precedida do conhecimento. Ninguém pode acusar os movimentos sociais de ser “do contra”, sem saber antes contra o quê eles estão.
Nesse caso, os militantes sociais estão contra a apropriação indevida da beleza da Ponta do Coral por um pequeno grupo de empresários. O que os movimentos sociais querem é que aquele seja um lugar de todos, com todo o seu esplendor de flora e fauna, e não apenas uma praça perdida no meio do asfalto. A Ponta do Coral é um pequeno trecho de terra que avança na baia e que condensa uma vida rica e farta. É um lugar de beleza, de simplicidade, de ternura. É um vestígio isolado da velha cidade que foi cedendo passo aos arranha-céus, ao asfalto, aos espaços privados e elitizados. E por isso mesmo deve ser preservada como um patrimônio das gentes, de todos.
Agora, a luta segue, e precisa se encarnar na vida de todas as pessoas que amam de verdade essa cidade “perdida no mar”. Todo o esforço deve ser empreendido para a anulação da lei que entrega a ponta para a Hantei. E lá, naquele ínfimo espaço de pura beleza deve nascer o Parque há tanto tempo sonhado. Porque é direito do povo desfrutar da beleza que essa ilha tem. E que venham muito mais daqueles que são contra o progresso dos bandidos/grileiros do mar e da beleza.