Cruzar fronteiras como práticas corporais e relacionais

Pessoas que atravessam fronteiras a pé, em botes, de avião, de ônibus, de caminhão, em pequenos grupos, sozinhas, em caravanas, em famílias. Uma experiência sempre mais ou menos violenta. Em busca de sonhos, fugindo de horrores.

A recém fundada Rede de Acadêmicos Sem Fronteiras propôs a atividade “Experiências de cruces fronterizos cómo prácticas corporales y relacionales” no Fórum Social Mundial de Migrações, que ocorreu de 02 a 05 de novembro na Cidade do México, com o objetivo de compartilhar experiências migratórias a partir de casos e sensações concretas. Participaram investigadoras, ativistas e migrantes de Venezuela, Brasil, México, Chile, Itália, França e Bélgica.

A venezuelana Masaya Blanco e a belga Catherine Bourgeois pesquisam fluxos de migração de Honduras para a República Dominicana, e contaram da “pegajosa” fronteira pela qual milhares de hondurenhos passam diariamente para trabalhar no país vizinho, dos banalizados e constantes assédios às mulheres, do preconceito que os hondurenhos sofrem. Experiências nunca fluidas, nunca fáceis, mas cotidianas. Suportáveis apenas graças às redes de solidariedade que se criam entre os migrantes.

A antropóloga italiana Carla Vidussi trouxe o caso de uma comunidade de Yucatán, estado do sudeste mexicano, em que homens jovens migram em massa para trabalhar nas cozinhas de San Francisco, Califórnia. Eles pagam 10 mil dólares para ir de avião até o norte do México e de lá caminhar cinco dias pelo deserto, guiados pelos afamados e muitas vezes perigosos “coiotes”, até a terra prometida.

Carla conta que tinha a expectativa de ouvir histórias de dor e sofrimento em relação a essa travessia, e se surpreendeu ao perceber que os protagonistas minimizam sua dificuldade. “É como quando você vai acampar, você vai preparado, leva sua barraca, sua água, seu saco de dormir”, comparou um dos migrantes em conversa com a antropóloga. Também lhe contaram que, quando chegam, alguém da família ou da comunidade de origem já conseguiu um emprego para eles no novo destino. Eles dividem apartamentos e cerca de 5 pessoas ocupam um mesmo quarto e, dessa maneira, conseguem reaver o que investiram em cerca de seis meses – e, a partir de então, juntam dinheiro para enviar para família, normalmente utilizado para construir casas e comprar carros.

A chilena Marcela Tepem, além de compartilhar sua própria experiência de migrante, por motivos explicitamente políticos durante a ditadura de Pinochet, contou sobre o caso das mulheres tailandesas, que migram com a oferta de trabalho sexual mundo afora. Nas suas comunidades são empoderadas, admiradas, tidas como exemplo. Já Marcela, que trabalha há décadas com organizações que atuam com migrantes, contou do protagonismo das mulheres chilenas no enfrentamento ao regime ditatorial. Ela encontrou exílio na Suécia, como muitos conterrâneos e outros sulamericanos que fugiam das ditaduras.

A conversa passou também pelas fronteiras europeias, cada vez mais militarizadas e violentas, em destaque a da Itália para França e de França para Inglaterra. Contou-se das prisões que confinam africanos na Itália e das diversas organizações de solidariedade aos migrantes.

A mexicana Lourdes, que vive em Tapachula, porta de entrada ao México desde Centroamérica no estado de Chiapas, destaca que o êxodo por esse corredor costuma ser uma experiência bastante corporal, realizada à pé. Outro caso recente é a migração em massa da Venezuela, com destino a Colômbia, Peru, Panamá, Equador, Chile e Brasil.

Durante as reflexões finais, comentou-se da necessidade, principalmente no meio acadêmico, de cuidar para não cair no vitimismo, porém reconhecer que se tratam de experiências muitas vezes injustas e complexas. Se migrar é inerente à trajetória humana nesse planeta, e muitas vezes parte da vontade dos indivíduos, é importante considerar as causas estruturais e sociais dos fluxos migratórios e a construção coletiva dos desejos individuais.

Ninguém é, ou deveria ser, ilegal, mas todos fazemos parte de um mesmo sistema desigual em que os sonhos e até mesmo a possibilidade de sobrevivência estão em lugares distantes para alguns. As fronteiras entre vontade e necessidade não são tão rígidas e há muitos motivos para migrar e formas de fazê-lo, algumas mais privilegiadas, outras desesperadas.

É urgente criar e fortalecer redes de cuidado, resistência e solidariedade para dar conta dessa temática que atravessa as dinâmicas locais e global – e acolher as pessoas diretamente impactadas. Redes tais como a de Acadêmicos Sem Fronteiras, tais como o Fórum Social Mundial de Migrações.

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