No coletivo de presos políticos do Hipódromo, em São Paulo, entre 1968 e 1975, havia 1 (um) negro, 1 (um) caboclo e 1 (um) mulato. O mulato saiu em condicional e viajou para rever a família em Minas, foi tomar banho num açude e se afogou. O caboclo, antigo e lendário militante do campo, e o negro que sobraram não se davam bem; O negro tentou se aproximar, em vão: o caboclo não acreditava em intelectual revolucionário (o negro era professor de História).
Nesse pequeno parágrafo, aparecem vários aspectos da contradição racial brasileira. Fiquemos no primeiro : eram raríssimos os negros na luta urbana contra a ditadura. A não ser que tivessem mais capacidade de escapar à queda que os outros, o que é improvável. A melhor explicação talvez seja a posição social da militância de esquerda – os combatentes contra a ditadura saíram, quase totalmente, das classes médias e altas. A classe trabalhadora foi plateia – às vezes a favor, às vezes contra ou indiferente – da terrível e, já no fim, desesperada luta da militância contra a repressão.
Os negros da repressão eram, proporcionalmente, mais numerosos que os do nosso lado. Nas três equipes de tortura do Doi-Codi de São Paulo, havia um negro (e aliás, também, um asiático e, pelo menos, um judeu). Ouvi esse negro (o tenente ou doutor Mário) se queixar de forma indireta do preconceito que sofria no seu trabalho. Ao me interrogar, parava para me ameaçar: “Não pense que por causa disso – e passava
o indicador no braço, um gesto característico dos negros paulistas – vou te aliviar. Você pode ser mais inteligente do que eu, mas não é mais inteligente do que a minha equipe”. Nada tão bandeiroso.
Isso nas equipes de tortura. Quando passava para a seção de buscas, aumentava muito o número de negros e mulatos. Eram a linha de frente, e muitas vezes, de fogo da repressão – tiroteios, emboscadas, assassinatos, sumiços de corpos… (Certa manhã em que o major Ustra mandou uma equipe me levar ao Largo de São Francisco, com o aviso de que não precisava me trazer de volta, um negro da busca me acalmou da mesma forma que o torturador Mário, deslizando o indicador so
bre o braço: “É grupo, fique calmo, não vai lhe acontecer nada”. Nada mais insólito).
Já na seção de serviços – limpeza, frequentemente de sangue, vômito, mênstruo, merda, massa cerebral; limpeza geral do DOI-CODI; carceragem; enfermaria; reanimação de torturados e transferência de celas; guarda da unidade; portaria; etc. – prevaleciam os negros e mestiços variados. Havia funcionários calejados em sadismo, como um certo Casadei, que ao retirar-nos da cela para interrogatórios, ria e cantava, Marechal, rosto de moribundo, voz de moribundo, guia do Inferno, e Gabriel, apelido Boneca, pois chorara assistindo suas primeiras torturas, e Índio, enfermeiro evangélico recitando salmos enquanto pensava feridos.
Em suma, o DOI-CODI de São Paulo reproduzia a distribuição de papéis da sociedade brasileira. Brancos em cima, negros em baixo, com uma peculiaridade: o trabalho mais sujo dessa vez era feito por brancos.
Pádua Fernandes lê o depoimento no Teatro Heleny Guariba
Cumpri a trajetória dos presos políticos: Inferno (DOI-CODI), Purgatório (DOPS, onde fazíamos cartório) e Paraíso, o presídio, na falta de outra palavra, onde lambíamos as feridas, recarregando as pilhas, tendo pesadelos de retorno à Rua Tutóia.
Muitas vezes quis compreender – nos presídios que me couberam, o Tiradentes, até a sua demolição, e o Hipódromo – os companheiros presos comuns: ladrões, pequenos trambiqueiros e assaltantes, assassinos, estupradores, traficantes, nem um sequer de colarinho branco. Poucos eram conversáveis: desconfiávamos deles
e eles de nós. Hoje penso que a capacidade de conversarmos era inversamente proporcional à falta de ilusão do delinquente sobre o funcionamento da sociedade.
Os que tinham pena de si, os que se achavam culpados (perante Deus e os homens), os que acreditavam na Justiça dos homens, os que aferraram a máscara de maus porque desde meninos os convenceram de que eram maus, estes não eram conversáveis. (Pelezinho “ficou de mal” comigo uns dias porque durante uma
visita lhe apresentei meu filho de oito anos: “Porra, professor, quer me desmoralizar…”. Eram homens alienados, no sentido que Hegel formulou há
duzentos anos. Os fariseus são homens em si, não para si. (Mais de um
assaltante me ensinou que a pessoa assaltada só não deve dizer uma coisa:
“Não me mate, sou pai de família, tenho crianças em casa me esperando…” É,
para o assaltante, uma humilhação tão grande, que provavelmente ele atirará).
Um daqueles conversáveis do Hipódromo, Cidão, sempre cheirando a éter, abriu conversa comigo. Na escada para o solário (na cobertura do prédio) quis saber: “Neguinho, qual a tua manha pra ficar com os terroristas?”
De fato, os “terroristas” tinham direitos negados aos presos comuns. Íamos ao médico e ao dentista quando pedíamos, tínhamos nossa própria cozinha (com mantimentos trazidos pelas famílias), banho quente, tranca aberta até às 21 horas, podendo circular entre as celas, etc. Os presos comuns viam tais direitos como privilégios, conseguidos com jeitinho ou manha. Invejavam-nos e, provavelmente, nos viam como colaboradores da direção. Cidão, do alto de seus dois metros, queria a fórmula.
Para manter a conversa, comecei por lhe explicar que terrorista era quem nos chamava. Éramos combatentes contra a ditadura, fôramos presos, torturados e condenados por rebelião contra a exploração do homem pelo homem. (Um outro preso, Pelezinho, já me perguntara o que fazíamos para “lutar pelo povo” e, ao lhe dizer que, por exemplo, expropriávamos bancos para financiar a luta pelos trabalhadores, perdeu o pouco de respeito que nos tinha: “vocês são tudo bunda mole”. Expropriar tinha para ele apenas um sinônimo: roubar. Um sinônimo perfeito).
Seu respeito por trabalhador era zero. O pai vinha vê-lo todo sábado. Ficava no pátio esperando com um embrulho sujo no colo (macarronada com frango, virado à paulista, canjica com canela). Pelé descia no último minuto, pegava a iguaria. “Não tem pena do velho”, perguntei. “É sapateiro. Bunda mole”.
Os diálogos com Cidão eram de surdos. Cada frase minha teria de se decompor em muitas outras, tantas que nunca cheguei a lhe dar a resposta que queria. Para ele fui um crioulo manhoso com quem cruzava na escada do sétimo. A questão principal, escondida na minha relação com Cidões e Pelezinhos, é a dialética negro/branco no Ocidente, desenvolvida com a dominação dos povos claros sobre os não-claros – ameríndios, asiáticos, africanos e outros. Elisabeth Roudinesco, em A parte obscura de nós mesmos, Uma história dos perversos, como fizera Franz Fanon na metade do século XX, mostra a complexidade dos fenômenos subjetivos – complexos porque entrelaçam história e símbolo. Branco é senhor porque é inteligente, embora
conheçamos brancos burros e negros inteligentes. Quando povos brancos e não-brancos se encontraram no século 14 – a penetração na África e a
“descoberta” da América – os europeus tinham duas vantagens tecnológicas
sobre os outros, os meios de matar (armas de fogo, espadas) e de viajar (cavalo, barco), mas esses simples fatos são desprezados na escola quando se explica a escravização de índios e africanos. Estes já entram com papel marcado na História: não podem fazer História. Nenhum partido revolucionário, no Brasil, por isso mesmo,
se caracterizou por massas de negros. As rebeliões negras do tempo colonial-escravista foram, sintomaticamente, solitárias, ninguém lhes deu apoio ou simpatizou com elas.
Os proletários no Brasil sempre foram negros por definição: eram os “etíopes da América” (índios) ou os “gentios da Etiópia” (negros). Os partidos revolucionários eram da pequeno-burguesia, da intelectualidade, do jornalismo, do estudantado, das forças armadas.
Muito já se especulou sobre isso, são diversas as razões e consequências dessa disfunção, uma delas é a raridade de negros entre os revolucionários. Tiradentes, cercado pela polícia, no centro do Rio, vendeu, para fazer finança, o moleque escravo que o servia. O branco representa o negro e ponto final. Os negros revolucionários aceitaram, geralmente, este dogma, enquanto os demais, a partir dos
anos 70, do século XX, tratavam de lutar como negros – nos movimentos negros que, então, se iniciaram.
Foi assim que, ao sair da prisão, em meados de 1974, me surpreendi com um verdadeiro movimento de massas, os movimentos negros.
Cabeludões, sapatudos, túnicas, se comunicando em um novo vocabulário, atrevidos, encrenqueiros, imitando Shaft, soul, dançando reggae, pareciam ter
ocupado a cidade que eu conhecera. Não eram também classe operária, mas
filhos de operários, encurralados em guetos da Grande São Paulo, da Baixada
Fluminense, em São Luís, Salvador, Recife… Sem continuada instrução formal
sabiam, no entanto de Samora Machel, Agostinho Neto, Amilcar Cabral,
Jommo Kenniata, N’Krumma e do maior de todos, Nelson Mandela, Carmichel,
Angela Davis e militantes da descolonização externa e interna dos povos negros.
Os partidos progressistas que surgiram na transição democrática, dos anos 70 em diante – o PT, o PDT, o PSB e, logo, suas dissidências – compreenderam a necessidade de incorporar os negros ou suas reivindicações, assim como o movimento de mulheres e os das nações indígenas. Um raio não cai duas vezes
no mesmo lugar – se um golpe de direita infelicitar de novo a sociedade brasileira, no começo do século XXI, teremos ao menos um triste consolo: as prisões serão seguramente mais negras e mestiças.
Este depoimento não está à altura do que seu autor gostaria de dar. Se o desse com menos idade, com mais energia e saúde, emergiriam outros fatos significativos do racismo (ou do que nos habituamos a chamar assim) na repressão aos que lutaram contra a ditadura. Já esqueci muito, embora não tenha superado as sessões de choque, em mim e na minha mulher na época, despidos para acentuar a solidão, os gritos e gemidos das noites infernais, os revólveres engatilhados em nossas cabeças, a morte de jovens como nós, seus choros, gritos e excrementos, suas palmas como
troncos produzidos por palmatórias furadas.
Inexplicavelmente, ao concluir, me veem duas imagens de pretos. Levando sanduíches para mim, no DOPS, trazidos por minha irmã, um carcereiro negro impôs como condição ficar com um e, ali, na nossa frente, abriu o pão e engoliu, como um rato o bife que havia dentro.
Outra foi no DOI-Codi. Estava mofando em nossa cela, a 4, um garoto que assaltara, sem saber, um oficial do Exército. Não sabia nada de nós, nunca lera qualquer notícia política, mas encontrou uma forma de comunicação com os “terroristas”, uma bola de trapos que tenteava nos dois pés, no joelho, no peito. Se exibia diariamente pra nós, nos convidada a jogar com ele. De repente nos batia a tristeza: vão executá-lo. Era um neguinho morto jogando bola.