Quem julga quem julga?

Amigos na comunidade Mário Cardim, na Vila Mariana, Gabriel Scarcelli Barbosa e Magno da Silva Nascimento, ambos de 28 anos, têm fotos de facebook utilizadas para incriminá-los como parte de uma quadrilha de assaltantes de carros, juntamente com outros rapazes da favela. Estão presos, mas são muitas as irregularidades desde a origem do processo, iniciado pela ação ilegal do delegado da Polícia Federal Kleber Massayoshi Isshiki, aparentemente inconformado com assalto de que fora vítima um ano e meio antes.

A presunção de inocência de jovens sem passagem pela polícia, com trabalho e residências fixas, foi jogada no lixo. Como sempre é feito em momentos da História submetidos a regimes autoritários, como querem muitos hoje na sua sanha de excluir os que consideram à margem da sociedade. Quarta maior população encarcerada no mundo, quase a metade dos aprisionados no Brasil não foram julgados e, destes, boa parte é inocente. O Judiciário que deveria garantir os direitos humanos, bem aplicar as leis, acaba sendo quem mais viola as liberdades individuais.
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A injustiça aqui é tão flagrante que o caso tem aparecido na mídia, também devido à mobilização que tem provocado. O abaixo assinado, que exige a apuração do processo cheio de irregularidades que incrimina o jovem Gabriel, já está com mais de 800 assinaturas. Iniciado pelo professor de direito penal da USP, Sergio Salomão Shecaira, tem levado a discussão do caso a diversas universidades do país; conselhos e organizações de defesa dos direitos humanos se agregam à luta pela liberdade de Gabriel e Magno. O primeiro é filho de professora da USP e engenheiro da GM, pais que logo perceberam a injustiça cruel que acontecia com seu filho e foram à luta.

Gabriel foi incriminado por fotos com jovens da favela, mas julgado por escolher conviver ali, ter um filho ali, sendo um rapaz de classe média, com outras oportunidades. O caso já recebeu moções de repúdio de entidades como a ADUSP (Assoc. Docentes da USP), Congregação do Instituto de Psicologia, ANDES – Sindicato Nacional de Docentes de Ensino Superior. O abaixo assinado congrega apoiadores de 18 estados brasileiros, 11 (onze) unidades da USP, 25 universidades públicas, além dos apoios de dramaturgos, jornalistas, atrizes, fotógrafos, psicanalistas, professores, assistentes administrativos e outros.

Magno foi incriminado da mesma maneira, mas não tem recursos para contratar bons advogados, tem família moradora na comunidade. Ele foi chefe dos motoboys da Pizzaria 1900, naquele bairro, e era considerado um dos melhores funcionários quando foi demitido e ninguém entendeu, mas já fazia parte da eficiência do delegado. Magno, de tão correto e ingênuo, quando recebeu a intimação, em abril, foi à polícia, com a certeza que reconheceriam sua inocência e nada aconteceria. Ficou preso, está arrolado em 10 processos e condenado em um deles à pena de seis anos e dois meses de reclusão. Antes dessa prisão, uma operação policial com grande aparato, dirigida pelo delegado em pessoa, invadiu a comunidade e também a casa de Gabriel, procurando os assaltantes, armas e mercadorias, assustando a todos.

Gabriel foi preso em junho deste ano, seqüestrado em pleno local de trabalho pelo mesmo delegado que iniciou esta história, à paisana e sem dizer aos seus colegas para onde o levariam. Três processos pesam sobre ele, sendo que no primeiro a ter audiência, foi pedida a absolvição pela promotoria. Foi concedido habeas corpus em outro, exatamente pela forma ilegal como se deu a ordem de prisão: “a decisão que decretou a prisão não pode subsistir, tendo em vista a ausência de atribuição da autoridade que requereu a prisão”, liminar concedida pelo Desembargador Freitas Filho. A assessoria jurídica que Gabriel vem tendo é a melhor possível, por isso as irregularidades aparecem e o caso ganha aspectos cada vez mais estranhos.

Relatório elaborado pelo CONDEPE – Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que entrevistou detalhadamente Gabriel e Magno em suas prisões (CDPs Pinheiros e Belenzinho), aponta “crimes de tortura e abuso da autoridade, violação dos direitos humanos dos dois rapazes pela ação direta do delegado, agindo acima de suas funções”, afirma Rildo Marques de Oliveira – Coordenador Geral do Movimento Nacional de Direitos Humanos. Pode-se chamar de tortura o estado em que se encontram os seus familiares, frente ao sofrimento a que estão sendo submetidos.

Pedido de liminar em Habeas Corpus a favor de Gabriel, impetrado com os mesmos argumentos do anterior foi negado porque o Desembargador era outro. Com fama de nunca conceder habeas corpus, o Desembargador Sérgio Ribas (5a Câmara do TJSP) demorou 44 dias para negá-lo, impedindo a defesa de recorrer à outra instância. Quando o abaixo assinado chegou até esse desembargador, sua resposta foi um texto pretensamente erudito, irônico, com quatro linhas espalhadas pela página, citações de Ortega y Gasset e La Harpe (sic), pondo em dúvida a seriedade das pessoas que solicitam apuração rigorosa do caso. Percebe-se que ele não leu o texto do pedido de HC, apesar de demorar tanto numa tarefa que se prevê cumprida em 48 horas.

O emblemático caso destas acusações irreais está revelando como se constroem quadrilhas e se encarceram inocentes, como vilipendiam as leis os que recebem do Estado para fazer cumpri-las; como parte da Polícia Civil e Federal age ao arrepio da lei e de qualquer ética de justiça para mostrar competências. As famílias de Gabriel e Magno, as pessoas próximas e agora também organizações e instituições, estão tendo a oportunidade de observar os meandros da ação de certos policiais e juristas de SP, vivenciar de perto o funcionamento da justiça num Estado que se diz de direito e democrático.

Este emblemático caso está mobilizando setores da sociedade acostumados a lutar por democracia e por direitos humanos. Exatamente os setores contra quem se dirige o ódio estimulado hoje pelo Congresso e pela mídia em nosso país, e contra os quais costuma agir essa parte das polícias, mas que não costumam curvar-se frente às injustiças. Estamos enfrentando a indústria do cárcere, que quer ampliar ainda mais leis punitivas e restritivas de direitos, uma estratégia que permite abusos e ilegalidades, e nos mostra diariamente policiais envolvidos em assassinatos, chacinas e quadrilhas. Estamos enfrentando a política de extermínio dos pobres, pretos e periféricos, a política de higienização da sociedade, estamos enfrentando os defensores de um Estado totalitário, seletivo e opressor!

(Publicada originalmente no Jornal Brasil de Fato edição 659 )

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