As ruas sempre foram o espaço por excelência da luta popular por mais direitos e democracia. Nesse sentido, jamais deixaram de estar ocupadas pelo povo, organizado ou não, em busca de mudanças. Mas nesse primeiro semestre, o clamor das ruas conquistou vitórias históricas derrubando velhas e caquéticas ditaduras corruptas no norte da África. No Oriente Médio, regimes igualmente despóticos ainda tentam se manter apoiados na repressão armada contra os manifestantes e/ou nas estruturas militares de parceiros no Ocidente. Na Grécia, as manifestações e greves paralisam há mais de um ano o governo que pretende entregar a economia nacional de bandeja para o FMI e o Banco Mundial com suas conhecidas receitas de “austeridade fiscal”, sinônimo de desemprego e arrocho. Na Espanha, centenas de milhares de “indignados” ocupam as praças das principais cidades. E isso tem se repetido, com maior ou menor atenção da mídia, por todo o planeta.
No Brasil, já há alguns anos as manifestações populares em várias cidades, na sua maioria pacíficas, pela gratuidade do transporte coletivo, ou “passe livre”, têm sido reprimidas com a violência dos cassetetes, balas de borracha, spray de pimenta e bombas de gás desferidas inclusive contra parlamentares. Algumas ficaram tristemente famosas como as revoltas em Salvador e Florianópolis. Da mesma forma, movimentos de funcionários públicos, estudantes, professores, sem-terra, sem-teto, impactados por barragens e até policiais civis e bombeiros têm sofrido na pele a repressão por armas letais ou não sem que isso tenha sido mostrado com o devido destaque nas grandes redes de televisão.
Mas talvez o uso claramente excessivo da força sobre poucas centenas de jovens que protestavam na Avenida Paulista, coração financeiro da maior cidade do País, contra a censura prévia à chamada “Marcha da Maconha”, em 21 maio, tenha sido a gota d’água: o Supremo Tribunal Federal finalmente resolveu julgar, dia 15 de junho passado, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada em julho de 2009 pela então procuradora-geral em exercício, Deborah Duprat. E, surpresa, por oito votos a zero o STF reconheceu que os cidadãos têm o direito de questionar pacificamente nas praças e ruas as leis com as quais não concordem, desde que essas manifestações não incitem o ódio contra outros grupos de pessoas, o que obviamente continua sendo crime. O voto exemplar do relator, Ministro Celso de Mello, seguido por todos os outros ministros, é claro quando diz que “A defesa da legalização das drogas (…) longe de significar ilícito penal (…) representa prática legítima da liberdade de expressão (…) [que] É um direito que não pode nos ser retirado por agentes do Estado”.
Com isso, “Marchas da Liberdade” ocorreram simultaneamente no sábado 18 de junho em 43 cidades do País. Mais do que apenas manifestantes defendendo o uso de uma droga ancestral (a agora especificamente liberada “Marcha da Maconha” de São Paulo deve ocorrer no dia 2 de julho para não se confundir com a “Parada Gay” do dia 26 de junho) os eventos reuniram ativistas das mais diversas causas. O pessoal do Passe Livre estava presente, assim como militantes contra a homofobia (que puxaram as palavras de ordem do título desse artigo), do vegetarianismo, feministas, por mais bicicletas, pela adoção responsável de animais, contra os rodeios, a favor do direito ao aborto, pela criação de um Estado Palestino, contra a construção da Usina de Belo Monte, pelo respeito aos torcedores de futebol, em apoio aos bombeiros do Rio de Janeiro, contra os bombeiros do Rio de Janeiro (por fazerem parte da PM e, portanto, contribuírem com a militarização), pela derrubada do novo Código Florestal, contra os diplomas universitários, por melhores salários para os professores, por uma internet mais rápida e barata, contra a repressão às festas de música eletrônica (raves), anarquistas, punks, anticapitalistas e por aí afora.
Como também não podia deixar de ser, alguns partidos e políticos resolveram aproveitar a onda para dar uma “surfadinha de leve”. Um deputado do PSDB, partido que governa São Paulo e assim é o responsável pela brutal repressão da PM, conseguiu o apoio da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Associação dos Juízes para a Democracia, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese e do Grupo Tortura Nunca Mais para ter seu projeto de lei que regulamenta o uso das armas não-letais pelas polícias discutido pela população em uma audiência pública na Assembleia Legislativa no dia 30 de junho.
Outra figura que estava um tanto sumida da mídia e voltou aos holofotes agarrando-se à tábua de salvação da maconha foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Além de ter completado 80 anos (recebendo homenagens nos telejornais e reclamado que “o Lula nunca ligou” pra ele nos aniversários) na mesma semana da votação no STF e ter sido citado no voto do relator, ele conduz o recém-lançado documentário “Quebrando o Tabu”, de Fernando Grostein Andrade, “coincidentemente” irmão do apresentador da Globo Luciano Huck. Logo nas cenas iniciais FHC diz uma frase lapidar: “Só quem é burro que não muda de opinião diante de fatos novos. Eu não tinha consciência da gravidade e do que significava essa questão, naquela época como tenho hoje” (sic). Entretanto, nenhuma das experiências apresentadas no documentário, tanto do lado da repressão como da descriminalização, tem menos de dez anos, época em que ele era o mandatário maior da nação. O jurista Wálter Maierovitch, que foi chefe da agência antidrogas de FHC, publicou em um artigo de 2009 na Carta Capital que “não lhe faltou insistente proposta para seguir o então progressista modelo português, segundo o qual o porte de drogas para uso próprio era enquadrado como infração meramente administrativa, ou seja, não criminal”. A experiência portuguesa é agora, aliás, apresentada no filme sob elogios de FHC.
Hipocrisias à parte, se toda essa movimentação levar a mais liberdade e menos violência (tanto policial quanto de grupos criminosos que se financiam no tráfico), a sociedade democrática só tem a ganhar com a mobilização, a conscientização e, por que não?, a politização da juventude. Às ruas então, pois “a praça é do povo como o céu é do condor”.